Doutrina

Paulo de Pitta e Cunha - A integração europeia no mundo globalizado
 

A INTEGRAÇÃO EUROPEIA
NO MUNDO GLOBALIZADO (*)

Pelo Prof. Doutor Paulo de Pitta e Cunha (**)

1. No processo de aceleração da História, que caracteriza a evolução política e económica mundial da época contemporânea, os eventos sucedem-se a ritmo muito mais rápido do que no passado.

A revolução tecnológica a que se assiste assinala uma nova fase do fenómeno da globalização ou mundialização das relações económicas.

O arranque da globalização ter-se-á verificado no século XVI, com o impulso dado pelas descobertas marítimas — campo em que Portugal foi pioneiro. O fenómeno viria a assumir particular consistência com a revolução industrial e a expansão dos sectores do “hardware” (caminhos de ferro, indústria automóvel, aviação, etc.), culminando na parte final da segunda metade do século XX com a generalização do computador pessoal.

No dealbar do século XXl abre-se uma nova fase, em que as tecnologias da informação se tornam dominantes, registando-se o triunfo do “software”, e atingindo-se aquilo que um autor norte-americano descreveu sugestivamente como o “mundo plano” — as modernas tecnologias passam a estar disponíveis em todos os pontos do globo, expandindo-se, designadamente em países como a Índia e a China, actividades de “outsourcing”, que envolvem o tratamento informático de dados através de fórmulas de subcontratação (como aconteceu no caso, que se apresenta como curiosidade semântica, a fazer recordar as convicções de Colombo, da cooperação entre uma multinacional com origem na Índia e o Estado norte-americano de Indiana).

2. Esta globalização intensificada corresponde à visão do “borderless world”: delidas as fronteiras, os Estados vêem-se destituídos dos poderes de gestão e de decisão que detinham sobre as economias nacionais. Durante muito tempo, fora dominante a figura clássica do Estado, na acepção de Estado vestefaliano (por referência aos Tratados que, nos meados do século XVII, consagraram a tese da soberania plena dos Estados e a sua actuação como entes autónomos nas relações internacionais).

Ora, com a globalização, está a desmoronar-se a concepção do Estado vestefaliano. As fronteiras tendem a evaporar-se; estabelecem-se ligações instantâneas por meio das novas técnicas informáticas; os movimentos de capitais, ultrapassando largamente os movimentos reais da economia, crescem em termos exponenciais; estabelecem-se redes electrónicas ligando o mundo inteiro; dá-se a diluição do que podia qualificar-se como “a ancoragem territorial dos Estados”.

Os Estados perdem as tradicionais capacidades de controlo, embora por vezes tenham a ilusão de que mantêm o poder decisório. Quando os Governos, ainda imbuídos de ideias territorialistas ou fiscalistas, se apegam à regulação autónoma da economia, não o conseguem fazer. Tornou-se fácil para os investidores deslocarem-se para centros internacionais ágeis e competitivos, onde melhor satisfarão os objectivos das suas aplicações, fugindo aos controlos do Estado de origem.

Aliás, tende a falar-se cada vez menos de governo e cada vez mais de governação. É um conceito mais amplo do que o de governo. Está muito em voga a visão da governação em múltiplos níveis, a “multi level governance”, em cujo âmbito se move toda uma diversidade de actores, e onde os governos nacionais passam a ser apenas uma das figuras que actuam no novo contexto hipercomplexo das sociedades do nosso tempo.

3. O problema da regulação da economia mundializada é enfrentado em dois planos: à escala universal e no âmbito de blocos regionais de Estados.

No domínio mundial são criadas organizações internacionais especializadas na regulação normativa dos processos de abertura geral dos mercados: refira-se, além das instituições de Bretton Woods, o GATT, que viria a fundir-se no quadro institucional da Organização Mundial do Comércio.

A Organização Mundial do Comércio integrou e superou o GATT não só pelo estabelecimento de um quadro institucional estável, acolhendo as bases normativas do Acordo Geral, como pela instauração de um sistema de resolução de litígios muito mais eficaz do que o anteriormente praticado.

No velho GATT, as decisões dos painéis quanto aos conflitos internacionais de comércio só se tornavam efectivas se se formasse um consenso nesse sentido: bastava que a parte avessa à solução proposta se opusesse para que o mecanismo sancionatório ficasse paralisado. Ora, na OMC inverteram-se os termos do problema, operando agora o “consenso negativo”: só na implausível hipótese de todas as partes se pronunciarem pela rejeição é que esta se verificará.

4. No plano global, o mundo altera-se. Há factos e aspectos novos: o fim da guerra fria; a implosão do segundo mundo e a fragmentação do terceiro; a renovada amplitude e intensidade do processo de globalização nos fins do século XX e começos do século XXI; a emergência de ameaças que os Estados não têm capacidade de enfrentar por forma isolada, desde os atentados ao ambiente ao terrorismo internacional.

Até os protagonistas da economia mundial estão a mudar. Há uns quinze ou vinte anos, as negociações comerciais internacionais desenvolviam-se entre três grandes parceiros, todos eles economias altamente desenvolvidas: Estados Unidos, Comunidade Europeia e Japão.

No presente, o Japão regista certo declínio de influência, mas irrompem cem ímpeto novos actores na vida económica internacional: a Índia, a China (que já temos visto referidas em conjunto por “Chindia”), e também o Brasil, que tende a apresentar-se como um catalisador nas negociações dos ciclos do GATT/OMC. O Brasil dá mesmo a inicial ao conjunto ascendente “BRIC”, onde o “R”, de Rússia, interessa mais, por agora, à política energética do que propriamente às negociações comerciais internacionais; nestas, a Índia e o maior país da América Latina assumem papel preponderante, seguidas, ainda a alguma distância, pela China.

A Organização Mundial do Comércio acolheu há alguns meses o seu 150.° membro, tendo-se antes processado o ingresso da China continental (a par do da Formosa (Taiwan), acolhida como território dotado de autonomia e não propriamente como Estado), e sendo de prever a próxima entrada da Rússia. As negociações comerciais internacionais continuam a desenvolver-se por ciclos, ou “rondas” (“rodadas”, como se diz no Brasil): o último é o “Doha Round”, por referência à capital do Qatar, pais onde em 2001 se abriu a conferência ministerial que lançou o novo ciclo – no qual a questão central é em torno da revisão da protecção agrícola dos países europeus e dos Estados Unidos em relação às produções provenientes do mundo exterior. Ao conjunto triforme constituído pelos Estados Unidos, Comunidade Europeia e Japão está a suceder um quadrângulo (Estados Unidos, União Europeia, Brasil, Índia), como pólo de referência política nas relações comerciais internacionais.

Entrou-se, pois, no ciclo de Doha, também conhecido por “Ciclo do Milénio”, o qual passou por altos e baixos, até à recente suspensão das negociações comerciais, por desentendimento entre os principais parceiros.

5. Em outro plano, processa-se a criação de blocos económicos regionais, como foi o caso da Comunidade Económica Europeia (transmutada em União Europeia, com importante conteúdo político, a partir do Tratado de Maastricht) e é também o do Mercosul. Nestes, a integração pode ser vista de dois ângulos, aparentemente contraditórios: ou como protecção contra a globalização, ou como ampliação do próprio fenómeno da globalização.

Por um lado, a integração acelera a globalização, na medida em que, por via normativa, decalca no interior do espaço em que se processa o teor de liberalização em que a globalização se traduz. Mas, ao mesmo tempo, representa uma defesa contra o fenómeno da globalização, defesa em que se invoca a preservação de específico modelo social (aspecto que poderá ter sido determinante na rejeição da Constituição Europeia pelo eleitorado francês e na contestação à Directiva Bolkestein), a salvaguarda do ambiente, a protecção da saúde, etc.

No centro das preocupações está a discussão em torno do que restará do poder do Estado-nação perante todo este problema. Em si mesma, a globalização, como fenómeno universal, já supõe a condição do Estado sem fronteiras; mas a desvalorização do Estado ainda mais sobressai quando a liberalização se processa dentro de blocos regionais em cuja formação e desenvolvimento se incluem factores supranacionais, como é o caso da União Europeia. Há blocos, como o Mercosul, em que o acento está ainda posto no simples plano das relações económicas. Mas o desafio dirigido ao Estado-nação assume particular intensidade no conjunto europeu, onde o fenómeno supranacional regista acentuação crescente.

6. Não obstante os progressos na via do integracionismo na Europa, cabe reconhecer que o Estado-nação vai denotando uma capacidade de resistência muito superior à que, em passado não muito distante, se antevia. A tendência para a federalização na Europa não incide uniformemente sobre todos os planos da problemática em causa.

Há específicos picos de supranacionalidade, como são os casos da supremacia do ordenamento europeu e da instauração da moeda única (esta introduzida apenas, por enquanto, em menos de metade dos países membros) — e como, em certa medida, tende a ser o caso da política comercial exterior. Mas em outros aspectos os Estados mantêm apreciável vitalidade e conservam o seu poder individual de decisão.

Não foi gerado o “demos” a nível europeu; não existe um povo europeu unido em torno de percepções, sentimentos e aspirações comuns. Registam-se, é certo, progressos no intercâmbio cultural: veja-se o programa Erasmus, possibilitando contactos entre universitários dos vários países europeus; a utilização irreprimível das tecnologias da comunicação instantânea; o embaratecimento e popularização das viagens aéreas. Tudo isso vai ajudar, decerto, mas levará muito tempo até que se crie uma verdadeira opinião pública da Europa, que sirva de alicerce para uma construção nacional à escala deste Continente (se é que venha a poder determinar-se onde se situam os seus confins).

7. Na perspectiva do referendo francês de 29 de Maio de 2005, o debate centrou-se em torno da preferência por determinada concepção global da política económica: a visão neoliberal da economia de mercado e de livre concorrência, que desde o início constitui a linha inspiradora dos Tratados relativos à integração europeia, e a óptica favorável a uma política económica com fortes objectivos sociais, visando primordialmente o pleno emprego e o crescimento, ainda que à custa da introdução de certa medida de proteccionismo nas economias nacionais.

A partir do Tratado da União Europeia, a perspectiva neoliberal foi ainda acentuada pela mensagem de estabilidade monetária praticamente absoluta contida na ideia da moeda única — em relação à qual era de prever, como se assinalou assim que o projecto de Maastricht foi conhecido, que se afirmasse uma linha deflacionista na evolução da união monetária, o que na realidade veio a suceder.

O problema em relação à segunda corrente é que os seus naturais desenvolvimentos podem levar à rejeição do próprio desígnio de integração.

A experiência mostrou que um país, mesmo que se situe entre os grandes, não tem possibilidade de enveredar isoladamente por esta solução, colocando-se em contraste com a ortodoxia observada pelos seus parceiros no processo integrativo. A França — precisamente a França — tentou-o, no início dos anos 80, seguindo uma política intervencionista que redundou em sucessivas desvalorizações da sua moeda, o que pôs em perigo o Sistema Monetário Europeu, até que se rendeu à ortodoxia dos seus parceiros, abandonando a posição que era referida, em contraposição à fórmula da liberalização, como correspondendo ao que se qualificou como “l’autre logique”.

Pôs termo, assim, à experiência do modelo social de esquerda e alinhou pela visão de política económica neoliberal da Alemanha e da generalidade dos seus parceiros.

8. A contestação movida em França, por largos sectores de opinião, à Constituição europeia, reconduz-se à mesma raiz, tendo sido fortemente estimulada pelas dificuldades que a economia francesa enfrentou, desde a lentidão do crescimento à estagnação dos salários. Estes sectores terão visto no exercício de constitucionalização dos Tratados europeus a oportunidade para moderar o neoliberalismo, temperando-o com a introdução de elementos do outro modelo. Mas, em vez disso, depararam com a permanência da mesma visão dos equilíbrios e da plena entrega às forças do mercado, que já vinha de Tratados anteriores.

O conhecimento público que foi dado à Directiva sobre a livre prestação de serviços (Directiva Bolkestein), em que, na versão original, se consagrava o princípio da aplicação do regime no país de origem, com a consequente ameaça de “dumping social” vindo de Leste e de ainda maior agravamento da situação do emprego em países como a França, reforçou as forças favoráveis à recusa da Constituição europeia.

Passou quase despercebido o facto de no interior de um dos partidos que enformam o arco central da política alemã, o SPD, se ter cedido à tentação de rever a linha de repúdio das concepções marxistas e das teses da luta de classes, linha que se vem seguindo ao longo de quase meio século. Personalidades influentes daquele partido, retomaram, há dias, a retórica há muito enterrada.

Esta posição, traduzindo um manifesto mal-estar pela falta de progressos na resolução dos graves problemas económicos e sociais concretos, não deve ser encarada de ânimo leve.

Na verdade, trata-se de um sinal importante de contestação do próprio modelo de sistema económico — a economia de mercado aberta e de livre concorrência —consagrado nos Tratados europeus vigentes, e agora retomado sem alteração na proposta do Tratado constitucional, modelo que se tem identificado com a “mainstream” na análise do fenómeno de integração.

9. Nesta perspectiva, a integração europeia é vista como uma espécie de globalização, a qual difere do fenómeno mundial pela escala mais reduzida em que se processa (a de um só continente), e pelo facto de dimanar de acordos explícitos entre os Governos, e não já de um impulso mais ou menos espontâneo, ligado, entre outros factores, à difusão das novas tecnologias de transmissão da informação e à expansão de movimentos de capitais do sector privado.

Ambas as formas—a da mundialização e a do mercado interno europeu—, apontam, no respectivo âmbito, para um mercado global de plena concorrência. Não surpreende, assim, que o movimento globalizador suscite reacções por parte da franja crescente dos descontentes, como se tem verificado na ruidosa contestação às regras da OMC e do FMI, e se vá traduzindo, na União Europeia, na oposição dos grupos e sectores mais afectados pela abertura à concorrência, e inconformados com a sua situação económica.

A conjuntura económica recessiva que afecta alguns dos grandes Estados membros, mormente aqueles que pertencem à zona do euro, reforçando os receios do já referido “dumping social” suscitado a partir de países parceiros em que se concedem menos amplos benefícios aos trabalhadores, ou a partir de terceiros países que se aproveitem da liberalização das importações à escala mundial (caso dos têxteis chineses), faz nascer críticas que se dirigem ao próprio modelo “ultraliberal” do sistema instituído. Neste, à plena liberalização correspondente ao conceito de mercado interno agrega-se, no plano da moeda única, a visão unilateralista expressa no extremo rigor monetário das directrizes da acção do Banco Central Europeu, culminando nas exigências irrealistas do Pacto de Estabilidade.

A Constituição europeia é, assim, não só contestada pelo que apresenta de novo (em especial, a visão implícita do superEstado, nunca abertamente reconhecido, mas visivelmente infiltrado), mas também por aquilo que não apresenta: quanto a este aspecto, é manifesta a ausência de revisão do modelo de plena liberalização que, no seu desinteresse quanto ao ângulo económico da integração, a Convenção de Bruxelas e os Estados participantes na CIG não procuraram temperar ou sequer considerar.

10. Às oposições, no plano mundial, à plenitude do triunfo do capitalismo liberal, e cuja coexistência faz abalar a convicção expressa por Fukuyama do “fim da História”, tendem a acrescer, no próprio âmbito das experiências de integração à escala continental, como é o caso da que se processa no plano da União Europeia, críticas à fórmula que está na raiz do próprio fenómeno da integração, e que cada vez mais advêm não já de sectores politicamente irrelevantes, mas do próprio âmbito de formações partidárias presentemente no poder, ou vocacionadas para tal nos respectivos países.

Foi precisamente por não ter havido alteração do modelo, e por não se ter aproveitado o momento do estabelecimento da Constituição e a “interioridade” que introduz no processo de integração para se temperar o cariz neoliberal da construção (consagrando soluções que, comparadas com a secura da união monetária de Maastricht, vêm ao encontro das tão sentidas “saudades de Keynes” (1)), que despertou a crescente onda de críticas em França.

À clivagem entre os partidários da solução federal e os defensores da via confederal — a qual se previa que viria a ser o elemento central da discussão no Reino Unido, e porventura em outros países, como a Dinamarca, em torno do Tratado constitucional—, acresceu, assim, o antagonismo, particularmente sensível em França, entre os defensores da plena economia de mercado e das fórmulas monetaristas e os adeptos do modelo de intervencionismo com forte marca social.

11. A tese de que com o Tratado de Nice a União Europeia a 25 não pode funcionar é desmentida pelos factos. Com efeito, as instituições europeias encontram-se em plena actividade, e não consta que a actual regulação institucional represente um obstáculo ao funcionamento dos orgãos da União. A alegada insuficiência do Tratado de Nice visa predispor à aceitação das modificações na orgânica da União que são propostas no Tratado constitucional. Mas, pelo menos por agora, as instituições funcionam regularmente e não surgiu qualquer obstáculo aos processos de decisão. O Conselho Europeu, o Conselho, a Comissão, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça — e também, a nível especializado, o Banco Central Europeu — cumprem cabalmente as suas funções.

Sem embargo de se admitir que se efectuem ajustamentos nas atribuições e interconexões dos orgãos da União, sobretudo por efeito dos anunciados alargamentos, parece que os problemas que afectam o desenrolar do processo de integração na Europa têm diferente origem, ligando-se fundamentalmente à menor atenção que vem sendo prestada aos aspectos da integração económica, em contraste com o empenhamento obsessivo na integração política. E aqui ressaltam as diaparidades entre a vertente monetária e a vertente económica da integração (aquela em contexto supranacional, esta em plano intergovernamental), e bem assim o descontentamento suscitado pelo já referido contraste entre as fórmulas neoliberais da integração e os ingredientes do que já tem sido designado por “modelo social europeu”.

12. É em face da crise do modelo constitucional que assume renovado interesse uma outra perspectiva do processo de integração europeia, conhecida como a “estratégia de Lisboa” (o nome resulta do Conselho Europeu realizado na capital portuguesa, em Março de 2000, no qual o objectivo foi definido).

Trata-se basicamente de enfrentar um novo desafio, com data marcada, como tinha sucedido no passado com a visão do mercado interno e, anos depois, a da moeda única. Só que os objectivos destas duas realizações foram solenizados em modificações do próprio Tratado de Roma, enquanto, agora, o processo se desenvolve com base em deliberações do Conselho Europeu, assumindo, assim, uma forma de “soft law”. Por outro lado, contrariamente aos citados desafios do passado, em que se visavam alcançar novos patamares de integração, sem a pretensão de igualar ou suplantar qualquer entidade exterior, a estratégia de Lisboa assume abertamente a emulação em relação aos Estados Unidos, na medida em que se afirma o objectivo de, em 2010, como data de referência, tornar a União Europeia na “economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo”.

A estratégia de Lisboa, envolvendo múltiplos planos de acção e interrelacionando objectivos de promoção do crescimento e do emprego, de coesão e de sustentabilidade ambiental e conferindo prioridade à promoção da investigação e ao desenvolvimento das novas tecnologias da informação, baseou-se num diagnóstico correcto das insuficiências básicas na economia europeia, pecando, todavia, pela falta de credibilidade do desafio com data de referência (não seria razoável pensar que em tão pouco tempo a Europa pudesse deixar para trás os Estados Unidos), como pela indisponibilidade de dispositivos operacionais coordenados, capazes de gerar as modificações requeridas.

A matéria das políticas de emprego e de crescimento continua centrada nas autoridades nacionais, sendo meramente complementar a acção que possa ser assumida pelas instituições comunitárias. O programa configura-se mais com uma realização a cargo de cada país membro, e dependendo da sua determinação e capacidade individual, do que propriamente como efeito directo de uma iniciativa dos orgãos da União Europeia.

13. Ora, não pôde deixar de reconhecer-se, quase meio caminho percorrido em direcção à data de referência, que a estratégia de Lisboa estava a ter resultados decepcionantes. Os objectivos fixados não haviam alcançado sensível teor de realização.

Em Dezembro de 2004, um “Grupo de Alto Nível”, liderado por Wim Kok, reconheceu, num relatório que revelava inegável lucidez, o insatisfatório grau de realização do programa. Acentuou a importância dos desafios postos à Europa, quer de fora, com realce para a intensificação da concorrência mundial (com expressa alusão ao domínio da economia do conhecimento pelos Estados Unidos e à ascensão vertiginosa das potências emergentes, China e Índia), quer de dentro, pelo envelhecimento demográfico, que leva a aumentar, com os consequentes acréscimos em encargos de pensões e de saúde, o rácio do número de reformados em relação aos activos, o qual poderá passar de 24% para 50% em 2050.

Abstendo-se de relembrar a data de referência proclamada no Conselho de Lisboa de 2000, o Relatório Kok frisou a necessidade de a Europa encontrar o seu lugar numa economia global, em que possa defender as suas opções distintivas quanto ao modelo social. Mas não se empenhou na caracterização precisa desse modelo. Foi na sequência daquele Relatório que, em Março de 2005, o Conselho Europeu se decidiu a relançar a estratégia de Lisboa, insistindo no desenvolvimento da investigação, aludindo especificamente às técnicas ambientais, e dando como assente (com visível optimismo) a compatibilidade entre as exigências formuladas e a promoção do modelo social europeu.

Baseada numa leitura demasiado genérica e esquemática das insuficiências estruturais da Europa face à concorrência mundial, não se detendo nas causas das diferenças de comportamento económico e de estruturas entre os países que participam no processo de integração, a estratégia de Lisboa está longe de comportar uma visão clara dos objectivos prosseguidos e dos instrumentos mobilizáveis. Constitui, no entanto, ao invés da pretensão do projecto constitucional de intensificar a integração política, uma oportuna chamada de atenção para os problemas reais com que se defronta o cidadão europeu.

A estratégia de Lisboa não é implementada segundo o “método comunitário”, que envolve a determinação de objectivos e a escolha de instrumentos com base em legislação da União Europeia (primária ou secundária), com intervenção activa das instituições da União e o controlo do Tribunal de Justiça, culminando na aplicação de sanções. Ao invés, a estratégia assenta no simples “método de coordenação aberta”, radicando na afirmação de vontade política por parte dos Estados-membros, expressa em dispositivos não legislativos, e pressupondo a adesão voluntária de cada um daqueles Estados ao programa estabelecido.

Sob o ângulo da eficácia na realização, seria porventura desejável que, em futura revisão dos Tratados da União, o problema do crescimento e do emprego passasse a ser, pelo menos em parte, dependente do método comunitário. Seria uma das formas de equilibrar a índole presentemente intergovernamental da vertente económica da União com o carácter supranacional da vertente monetária.

Tal mudança implicaria, porém, uma aceleração da linha federal na regulação da união económica e monetária. O que seria desejável em termos de eficácia poderia mostrar-se negativo em face da preocupação de não se acentuarem os factores federais na construção europeia.

Vendo bem, talvez seja melhor deixar as coisas como estão, e cada país adoptar para si, segundo os seus ritmos e as suas conveniências, os objectivos, sem dúvida louváveis, da Estratégia de Lisboa, procurando redobrar os seus esforços para os realizar. Note-se, no entanto, que os Estados-membros que obtiveram resultados mais favoráveis em termos de crescimento e de competitividade não precisaram da “Estratégia de Lisboa” para os realizar. A estratégia será fundamentalmente um incentivador, mas a última palavra cabe a cada país.


Notas:

(*) Comunicação apresentada na ECSA-World Conference “Europe’s Challenge in a Globalized World”, realizada em Bruxelas em 23 e 24 de Novembro de 2006.

(**) Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Titular de uma Cátedra Jean Monnet de Direito Comunitário.

(1) Alusão à epígrafe do estudo do Autor sobre o Pacto de Estabilidade, inserido no volume “De Maastricht a Amesterdão – Problemas da União Monetária Europeia” (Lisboa, 1999).


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