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06-05-2008
RAIMUNDO E IVO - Santos da casa não fazem milagres
 


E os outros… também não!


Em pleno séc. XXI os heróis não são nem santos nem mártires. É, de facto, mais confortável e popular ser-se futebolista ou estrela de cinema. Vem isto a propósito, ou a despropósito, das polémicas recentes acerca dos santos e da imposição governamental de os escorraçar das escolas e de outros edifícios públicos. Não são os santos bons exemplos. Servem apenas para padroeiros e isso só porque não vá o demónio tecê-las!

Também a advocacia não conta com muitos santos, talvez pela imagem de pecadores que defendemos e pelos pecados que, certamente, cometemos. A verdade é que não há homem sem pecado, nem santo de casa que faça milagres. Cumpre-me, pois, escrever sobre os santos advogados. Ou, melhor, sobre advogados santos. São eles o nosso padroeiro, São Ivo Helori de Kermartin, e São Raimundo de Penhaforte.  

Comecemos então por revisitar tais figuras, porque conhecidos já eles são desde a Idade Média. Têm, ambos, percursos com pontos que se tocam e se afastam, com características comuns, mas também com trabalhos em esferas distintas. Indubitavelmente partilham a notoriedade que a história reserva às grandes almas, se nos permitirem, nestes tempos de laicismo dominante, o léxico religioso.

Desde já podemos referir que os dois foram ainda coevos, muito devido à longevidade de Raimundo que tendo nascido em 1175 só deixaria este mundo 100 anos depois, encomendando então de forma tranquila a alma ao Criador. Ivo nasceria em 1253. Ambos choraram em berços dourados de famílias nobres, ricas e bem relacionadas com o poder. Hoje com a massificação crescente, a tradição já não é o que era. Também aqui Raimundo tem primazia, pois a sua árvore genealógica funda as suas raízes nos reis de Aragão e condes de Barcelona, sendo ele filho do conde de Penhaforte na Catalunha. No entanto, igualmente Ivo era filho do lorde de Kermartin, Helori e de Azo du Kenquis, família abastada que lhe proporcionou uma educação em Paris desde os 14 anos.

Estávamos em plena Idade Média e os séculos XII e XIII formaram o apogeu clássico da cristandade medieval. Inocêncio III é a figura que desponta nesta época. Por este tempo reuniram-se concílios, surgiram as universidades, foram fundadas ordens religiosas de renome, a de São Francisco de Assis, de São Domingos de Gusmão, São Bruno fundou a Cartuxa, e São Bernardo de Claraval, talvez o personagem europeu de maior importância do século XII, deu notável impulso à Ordem de Cister. Surge também a "Escolástica", é o tempo de Alberto Magno e de Tomás de Aquino e da sua Summa Teologica. Funda-se a Universidade de Paris que tem os seus privilégios reconhecidos pelo Papa Inocêncio III, em 1215, e as de Oxford, Bolonha, Salamanca e a nossa Coimbra. A Idade Média não foi o Século das Luzes, mas também não terá sido propriamente a Idade das Trevas. As generalizações são sempre injustas e só empobrecem quem as faz. Só a superficialidade dos tempos correntes as admitem como fidedignas e isentas de erro.

De todo este fervilhar e de uma nova mundividência os nossos personagens foram actores e estrelas, artistas do esférico na relva e misters (podemos até dizer special ones). Pelo menos seria o estatuto que hoje teriam… porém, na altura outros valores se levantavam, e esses estavam profundamente ligados aos princípios de vida, designadamente aos princípios cristãos. Senão vejamos.

Raimundo de Penhaforte beneficiou de uma esmerada educação. Frequentou primeiramente a escola da catedral de Barcelona, onde progrediu tão lestamente que aos vinte anos já era professor de filosofia, não auferia de salário e era, talvez por isso, muito respeitado. Foi completar a sua educação a Bolonha, grande centro de estudos da Idade Média, onde se doutorou tanto em Direito Civil como também em Direito Canónico. Daí em diante passou a leccionar nessa universidade, igualmente dispensando o salário. Apesar de ser um extraordinário docente, foi sempre muito humilde, como o demonstra a advertência colocada no início de um dos livros por ele publicados em Bolonha: “Leitor, sê benévolo, considera a minha intenção e não me combatas com aspereza. As coisas úteis atribui-as a Deus; se encontrares algo desacertado, será porque me enganei ou tu não me compreendeste... corrige-me com delicadeza”.

O bretão Ivo mostrou o seu brilho e inteligência em Paris, no estudo da Filosofia, da Teologia e do Direito, altura em que foi sagrado cavaleiro, prosseguindo os seus estudos de Direito em Orleães, obtendo o bacharelato em 1279, depois de ser aluno de S. Tomás de Aquino e de S. Boaventura. É dele o primeiro Decálogo do Advogado, considerado um sintético tratado de Deontologia da profissão. Num dado momento do seu percurso, ambos se cruzaram com as ordens monásticas emergentes que começavam a atrair para as suas fileiras vários jovens talentosos. Ivo elege os franciscanos para fazer o seu percurso, pois apesar de em 1280 ter sido nomeado juiz e advogado na Bretanha (algo normal nesses tempos de escassos doutores, ao contrário dos tempos contemporâneos em que abundam), desejou despojar-se de tudo para se conformar de maneira radical a Jesus Cristo, seguindo-o na pobreza. É então ordenado sacerdote e durante quatro anos foi juiz eclesiástico na paróquia de Rennes.



Raimundo chega mesmo a privar com o próprio S. Domingos, numa viagem a Barcelona, tornando-se dominicano no ano seguinte à sua morte. Tinha, então, 47 anos e acabado de ser nomeado arquidiácono de Barcelona, procurava a humildade no entorno de uma carreira brilhante e foi isso mesmo que pediu aos monges: uma tarefa dolorosa para apaziguar a sua vaidade. Com sageza de frade, os seus superiores indicaram-lhe a penitência de escrever uma colecção de “casos de consciência” para uso dos confessores e moralistas, potenciando as suas capacidades. Assim nasceu Summa de casibus poenitentialibus, uma compilação com reflexos no sistema penitencial da Alta Idade Média. Entretanto, nomeado teólogo do cardeal dos reinos de Aragão e Castela, acompanhou-o em todas as visitas, realizando viagens por diferentes regiões espanholas, inculcando lições espirituais para alcançar a transformação do povo aculturado por oito séculos de costumes mouros. Chegando a sua fama de juiz expedito e íntegro aos ouvidos do Papa, foi chamado a Roma, onde lhe confiaram vários cargos importantes, de entre os quais o de confessor do próprio Gregório IX, com a penitência de ouvir e despachar imediatamente os pedidos dos pobres. As suas qualidades apresentam-no como o homem certo para realizar a ciclópica tarefa de reunir o que há 80 anos estava disperso: a compilação de todos os Decretos da Igreja. A competência e energia que pôs em tal trabalho fez nascer em apenas três anos as justamente afamadas Decretais de Gregório IX, obra maior do universo jurídico, com cinco brilhantes volumes, apenas superados setecentos anos mais tarde, já em pleno séc. XX. E quando, depois, partiu de Roma, um velho escritor relatava, segundo um funcionário da Cúria, sobre Raimundo: "Este homem vai-se como veio, tão pobre e tão modesto como à chegada. Não leva consigo nem ouro, nem honras, nem dignidades". Prova disso, e em reconhecimento, foi nomeado arcebispo de Terragona. Certamente contrafeito, rogou bastas vezes para ser aliviado deste fardo. Finalmente, dois anos volvidos, a doença, curioso argumento para quem viveria até aos 100 anos, permitiu-lhe regressar à solidão contemplativa em Barcelona. A esta vida de retiro, o santo acrescentou as tarefas do apostolado, trabalhando incessantemente na pregação, na instrução, nas confissões e na conversão dos hereges, dos judeus e dos mouros. Retorna, desta forma, às actividades que tinha antes de ser chamado a Roma. Sol de pouca dura, foi este, pois aos 63 anos seria eleito pelos seus pares Geral dos Dominicanos. E uma vez mais se manifesta este raro misto de inteligência fulgurante e humildade pungente: em apenas dois anos visitou a pé todos os mosteiros dominicanos, reorganizou as suas constituições (que passaram a prever a possibilidade de demissão do Geral) e após a aprovação destas últimas, demitiu-se…! No intermédio, e apesar de ter exercido o cargo com intensa actividade, continuou a intervir em casos complicados da Cúria Romana, para os quais era pontualmente consultado. De sobejo teve ainda mais 35 anos para combater a heresia e converter os espanhóis, chegando mesmo a fundar um convento em Tunes e outro em Murcia entre os mouros. No entretanto, persuadiu o seu grande amigo S. Tomás de Aquino a escrever o seu Suma contra os gentios, colaborando com seus estudos.

O trilho que Ivo divisou foi diferente, e talvez porque o contexto na Bretanha não fosse de reconquista, como era em Espanha, as suas energias foram empregues na caridade e na defesa dos mais pobres contra o sistema feudal. Sempre o sistema, sempre os mais pobres… ontem como hoje. A grande diferença residirá na grandiosidade do gesto, improvável nos tempos correntes, pois Ivo transformou o seu próprio solar, herança de família, em hospital e asilo para as populações mais pobres e necessitadas de cuidado e abrigo, nomeadamente idosos e crianças órfãs. Não é casualidade o nome pelo qual passou a ser conhecido: Advogado dos Pobres. Não houve, enquanto viveu, advogado de tanto renome na Bretanha, granjeou a estima de todos pela integridade de vida e pela imparcialidade de seus juízos. Notabilizou-se, principalmente, por dedicar a sua erudição à defesa, nos tribunais, de toda a minoria deserdada de fortuna. Os seus emolumentos, quando exerceu as funções oficiais de Juiz de Rennes, eram oferecidos aos pobres, para que fossem usados em sua defesa. Chegou mesmo a ser ele próprio a buscar aos castelos o cavalo ou o carneiro roubado aos pobres sob o pretexto de impostos não pagos, e até se diz que um dia livrou uma pobre mulher da prisão, quando lhe faltava apenas o veredicto final. Para tal empenho exigia somente a palavra honrada: "Jura-me que a sua causa é justa e eu a defenderei gratuitamente". Tanta distância vai entre a santidade e a realidade…

Assim, as profissões clássicas encontraram nos patronos ou padroeiros, como Raimundo ou Ivo, não só modelos de conduta e exemplo de princípios, mas também uma espécie de intercessor junto do “Juiz Supremo”. Talvez, hodiernamente, esta última tarefa já não seja considerada tão útil, os heróis de hoje são venerados pelo espectáculo (às vezes triste) que oferecem, e a eternidade já só dura o tempo do telejornal (que esse vai aumentando na demonstração das imbecilidades). Aproveitemos então o modelo, porque o que aqui fica verdadeiramente é o molde e a pintura e não só a obra e a moldura. Ressurreições à parte (só à conta de Ivo foram 18!) e milagres de fora (Raimundo navegou durante dias tendo como barco o seu capote), foram santos e foram advogados. E se a história não é circular pelo menos é muito irónica, e é por isso que ontem como hoje os problemas se repetem, e também é por isso que estes exemplos sempre servirão. Se ao sistema chamamos feudal, ou democrático, a diferença pouca será quando o que está em causa é o princípio do acesso de todos à justiça. Se ao tempo, o Estado resultante de um império desfeito teve de ser compensado por uma generosidade, podemos interrogar-nos com propriedade, religiosa, ou laica, escolha quem quiser, o que será necessário para compensar uma absurda regulamentação sobre o apoio judiciário? É de novo o próprio Estado a denegar a justiça? A achincalhar a dignidade da advocacia? Estará na hora de serem os advogados a demonstrarem o seu sentido de humanidade e de defesa da igualdade? Ou será necessário, de chibata em punho, e chicote no verbo, expulsar os vendilhões do templo? Venha o Diabo, que já cá fazia falta, e escolha. Até porque santos de casa não fazem milagres e… os outros também não!!!

Carlos Pinto de Abreu
Advogado
Presidente do Conselho Distrital de Lisboa


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