Pareceres do CRLisboa

Consulta 10/2011

Consulta n.º 10/2011

Questão

Corre termos na 1ª Secção da 12ª Vara Cível de Lisboa, sob o n.º -, uma acção especial de prestação de contas em que é Ré, A.
Nesta acção, a Ré é patrocinada pela Senhora Advogada, Dra. B.

À acção especial de prestação de contas (acção principal) está apensa uma acção de honorários (apenso F) em que é Autor, C, e Ré, A.
Na acção de honorários, a Senhora Advogada, Dra. B, foi arrolada como testemunha quer pelo Autor, quanto à matéria de facto vertida nos quesitos 1º a 19º, quer pela Ré, quanto à matéria de facto vertida nos quesitos 20º a 38º, todos da Base Instrutória.

Em sede de depoimento, a Senhora Advogada, Dra. B, escusou-se a depor invocando a existência de sigilo profissional.

Vem agora o Tribunal solicitar a pronúncia deste Conselho quanto à legitimidade da escusa em depor apresentada pela Senhora Advogada, Dra. B.


Questão Prévia

Considerando a factualidade exposta, coloca-se, a nosso ver, nesta decisão, uma questão prévia à verificação da natureza sigilosa dos factos e, consequentemente, à verificação da (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pela Senhora Advogada, Dra. B, que é a de saber se a circunstância da Senhora Advogada ser mandatária na acção principal, só por si, a impede de depor na acção de honorários apensa àquela.

Tem sido jurisprudência constante, pacífica e unânime dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados e dos seus doutrinadores que, tendo o Advogado iniciado a condução judicial do processo, com procuração junta aos autos, não poderá depor nesse mesmo processo, mesmo após a cessação do mandato.

E esta conclusão é extensiva à acção de honorários, pelo simples facto da mesma correr por apenso à acção especial de prestação de contas na qual a Senhora Advogada, Dra.B, é mandatária?

Preceitua o artigo 76º do Código de Processo Civil (CPC) o seguinte:
“1. Para a acção de honorários de mandatários judiciais ou técnicos e para a cobrança das quantias adiantadas ao cliente, é competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta.
2. Se a causa tiver sido, porém, instaurada na Relação ou no Supremo, a acção de honorários correrá no tribunal da comarca do domicílio do devedor”.


A competência por conexão prevista na norma legal atrás transcrita, pela sua inserção sistemática – Secção IV (competência territorial), do Capítulo III, do Livro II – é relativa à competência territorial, pressupondo a sua aplicação que esteja previamente resolvida a questão da competência em razão da matéria.
Assim, o n.º 1 do artigo 76º do CPC, ao mandar propor a acção de honorários no tribunal da causa em que foi prestado o serviço, tem unicamente por fim resolver o problema da competência territorial e pressupõe, necessariamente, que o tribunal da causa tem competência em razão da matéria para conhecer da acção de honorários.
Ou seja, no caso concreto, o facto de as acções estarem apensas não significa que sejam materialmente conexas.
Estão em causa acções com sujeitos, causas de pedir e pedidos distintos.
E, na acção de honorários, a Senhora Advogada, Dra.B, não patrocina os interesses de quaisquer das partes.
Pelo que o impedimento existente na acção principal – acção especial de prestação de contas – ao depoimento da Senhora Advogada não se verifica, pelas razões expostas, na acção de honorários que constitui o seu apenso F.

E, assim sendo, haverá agora que verificar se os factos aos quais o depoimento da Senhora Advogada, Dra. B, é pretendido estão, ou não, abrangidos pela esfera de protecção do sigilo e se, por conseguinte, a escusa invocada em sede de depoimento é, ou não, legítima.


Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar os factos e/ou os documentos nos quais esses factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional.
O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.

Existe, no entanto, na lei processual penal, um regime de excepção, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal (CPP), aplicável também ao processo civil por remissão do número 4 do artigo 519º do Código de Processo Civil (CPC).
Segundo o regime estatuído nas leis processuais civil e penal, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, dever) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional.
E, deduzida a escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o Juiz ou a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a legitimidade desta – cf. n.º 2 do artigo 135º do CPP.


Se tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo 135º do CPP, ex vi, n.º 4 do artigo 519º do CPC.
E, nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está, ou não, a invocar criteriosa e correctamente que os factos sobre os quais se pretende que deponha constituem matéria sigilosa, sobre a qual deva observar o dever de segredo.
Cumpre, assim, indagar se os factos aos quais o depoimento da Senhora Advogada, Dra. B, é pretendido – quesitos 1º a 38º da Base Instrutória –, devem considerar-se abrangidos pelo sigilo profissional.

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.
Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência. Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe nem pode existir Advocacia. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

Como se tem escrito sempre que os órgãos da Ordem dos Advogados são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.

O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que, para ser autêntica, tem de ser livre e independente.

Aliás, e bem a propósito, o Dr. António Arnaut, Ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se abre.”

Existem, segundo entendimento já perfilhado pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos, dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:
a) A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente.
b) O interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça.
c) A garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

Preceitua o artigo 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional”, o seguinte:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. (…)”.



O n.º 1 do artigo 87º do EOA contém a regra geral do instituto jurídico-deontológico.
Pode até dizer-se que, em certa medida, as demais regras previstas no n.º 1, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.

No caso concreto, os factos aos quais o depoimento da Senhora Advogada, Dra. B, é pretendido dizem directamente respeito aos serviços jurídicos prestados à Ré.
E de outra maneira não poderia ser, se tivermos em conta a causa de pedir da acção.

No caso concreto, e tanto quanto se alcança, a Senhora Advogada, Dra. B, tem conhecimento dos factos em discussão nos autos por duas vias:
a) Por um lado, por ter trabalhado no mesmo escritório do Autor nos anos de 2005 e 2006, altura em que a Senhora A, ora Ré, aí tinha um processo pendente, tendo a Senhora Advogada colaborado na prestação dos serviços jurídicos à ora Ré.
b) Por outro lado, por ser mandatária da Ré na acção especial de prestação de contas, a que a acção de honorários se encontra apensa.

Estão consequentemente em causa factos de que a Senhora Advogada tomou conhecimento no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício.
E, assim sendo, não há dúvidas de que os factos aos quais o seu depoimento é pretendido caem directamente na factispecie do artigo 87º do EOA.

Nestes termos, a Senhora Advogada, Dra. B, invocou, e bem, a existência de sigilo profissional, sendo, por conseguinte, a escusa para depor apresentada legítima, nos termos e para os efeitos no disposto no n.º 4 do artigo 519º do CPC.

Para que a Senhora Advogada possa, legitimamente, depor aos factos vertidos nos quesitos 1º a 36º da Base Instrutória, exige o n.º 4 do artigo 87º do EOA que esteja munida de uma autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital, sob pena de, inclusive, poder incorrer em responsabilidade disciplinar.

CONCLUSÕES:

1. A existência do dever de segredo profissional impede o Advogado de revelar os factos e/ou os documentos nos quais esses factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.


2. Ainda que dispensado nos termos supra referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional.

3. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.

4. Existe, no entanto, na lei um regime de excepção previsto no artigo 519º do Código de Processo Civil, a que se aplicam as regras do artigo 135º do Código de Processo Penal.

5. Segundo o regime estatuído nas leis processuais civil e penal, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do E.O.A., “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pela obrigação de segredo profissional.

6. E, deduzida a escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o Juiz ou a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a legitimidade da escusa – cf. n.º 2 do artigo 135º do CPP, ex vi, n.º 4 do artigo 519º do CPC.

7. Se tal acontecer, como sucede no caso concreto, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo 135º do CPP, ex vi, n.º 4 do artigo 519º do CPC.

8. No caso concreto, entendemos que os factos relativamente aos quais é pretendido o depoimento da Senhora Advogada, Dra. B, estão abrangidos pelo dever de sigilo profissional.

9. Precisamente, porque estão em causa factos de que a Senhora Advogada tomou conhecimento no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício.

10. E, assim sendo, não há dúvidas de que os factos aos quais o seu depoimento é pretendido caem directamente na factispecie do artigo 87º do EOA.

11. Pelo exposto, entendemos que a Senhora Advogada, Dra. B, invocou, e bem, a existência de sigilo profissional, sendo, por conseguinte, a escusa para depor apresentada legítima, nos termos e para os efeitos no disposto no n.º 4 do artigo 519º do CPC.

12. Para que a Senhora Advogada possa, legitimamente, depor aos factos vertidos nos quesitos 1º a 36º da Base Instrutória, exige o n.º 4 do artigo 87º do EOA que esteja munida de uma autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital, sob pena de, inclusive, poder incorrer em responsabilidade disciplinar.

Notifique-se.

Lisboa, 18 de Maio de 2011.

A Assessora Jurídica do C.D.L.

Sandra Barroso

Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Lisboa, 26 de Maio de 2011.


O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)

Paulo de Sá e Cunha

Sandra Barroso

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