CONSULTA N.º 16/2011
Questão
A Senhora Advogada, Dra. A, titular de cédula profissional n.º , veio solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa a emissão de parecer no sentido de ver esclarecida a questão de saber se, o exercício do cargo de vereador de uma câmara municipal, em regime de tempo inteiro ou permanência, com atribuição de pelouros mas sem substituição do presidente da câmara nas suas faltas e impedimentos e sem delegação genérica de competências do presidente da câmara é, ou não, incompatível com o exercício da advocacia.
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre as questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.
Ora, não temos dúvidas de que a matéria colocada à apreciação deste Conselho se subsume, precisamente, a uma questão de carácter profissional, nos termos e para os efeitos do disposto na mencionada norma legal, pelo que há que proceder à emissão de parecer nos termos solicitados.
Vejamos então.
O Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, declarava expressamente incompatível com a advocacia o exercício das funções de “presidente, excepto nas comarcas de 3ª ordem, secretário, funcionário ou agente das câmaras municipais” - cf. artigo 69º, n.º 1, alínea f).
Por sua vez, o artigo 73º do EOA de 1984, sob a epígrafe “impedimentos para o exercício da advocacia”, preceituava que os vereadores estavam “impedidos de exercer o mandato judicial nas acções em que sejam partes os municípios”.
Portanto, o Estatuto de 1984, não declarava expressamente incompatível com o exercício da advocacia o exercício das funções de vereador, apenas consagrando, quanto a este, um impedimento relativo (e não absoluto), que se justificava, sobretudo, por razões de decoro.
E, para nós, a consagração deste impedimento é de fácil compreensão.
É evidente que numa acção em que é parte um município, um vereador desse mesmo município nunca exerceria, como se lhe exige, o mandato forense de forma plenamente isenta e independente. Assim, se justificando, que, nestes casos, o EOA de 1984 expressamente o impedisse de exercer o mandato judical, estritamente, nesse tipo de acção.
Ao abrigo do Estatuto de 1984, formou-se uma orientação jurisprudencial que considerava que o exercício do cargo de vereador era incompatível com o exercício da advocacia em certos casos, e não noutros.
Segundo essa orientação jurisprudencial, o critério basilar, para distinguir as hipóteses em que a advocacia era ou não possível, assentava na distinção entre o desempenho das funções de vereador a tempo inteiro ou em regime de permanência - estas consideradas incompatíveis com o exercício da advocacia -, e o seu exercício a tempo parcial - estas tidas como compatíveis com o exercício da advocacia.
Entretanto, surgiu o EOA, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.
A norma fundamental em matéria de impedimentos para o exercício da advocacia é agora a constante do artigo 76º, que prescreve, nomeadamente, o seguinte:
“1 - O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.
2 - O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”
Esta norma pretende, nomeadamente, garantir a inexistência de colisão de interesses e deveres entre a advocacia e o exercício de qualquer outra actividade que com ela possa conflituar.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 77º do EOA especifica, de uma forma não taxativa, um elenco exemplificativo de situações de incompatibilidade, relativamente às quais o legislador revelou uma preocupação especial.
Assim, e nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 77º do EOA, é, nomeadamente, incompatível com o exercício da advocacia o exercício do cargo de presidente de câmara municipal.
Em relação aos órgãos do poder autárquico, por conseguinte, manteve-se fora do âmbito da previsão legal o cargo de vereador, o que, prima facie, poderia sugerir não existir incompatibilidade entre o desempenho deste cargo e o exercício da Advocacia.
Mas, o facto da alínea a) do n.º 1 do artigo 77º do EOA não fazer expressa referência a qualquer outro cargo ou função autárquica, não pode levar-nos a concluir, sem mais, que não se verifica qualquer incompatibilidade para o exercício da advocacia por parte dos vereadores de câmara municipal, uma vez que a enumeração constante do mencionado preceito legal não é taxativa e, não o sendo, a questão deve ser interpretada à luz dos princípios gerais contidos no artigo 76º do EOA.
Antes disso, porém, importará, para a questão ora sob resposta, ter em conta o disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 77º do EOA, que considera incompatíveis com o exercício da advocacia “quaisquer outros cargos, funções e actividades que por lei sejam consideradas incompatíveis com o exercício da advocacia”.
Relativamente ao estatuído na já mencionada alínea q), importa avaliar da existência, ou não, de lei especial que impeça ao vereador o exercício da advocacia.
Dispõe o artigo 6º da Lei n.º 64/93, de 26 de Agosto, que aprovou o Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos de Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, sob a epígrafe “Autarcas”, o seguinte:
“1. Os presidentes e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, a tempo inteiro ou parcial, podem exercer outras actividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, ao Tribunal Constitucional e à assembleia municipal, na primeira reunião desta a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas actividades não autárquicas.
2. O disposto no número anterior não revoga os regimes de incompatibilidades e impedimentos previstos noutras leis para o exercício de cargos ou actividades profissionais”.
Portanto, a resposta à questão de saber se ao vereador de câmara municipal é imposta uma incompatibilidade para o exercício da advocacia deverá ser encontrada no EOA, à luz, designadamente, dos princípios gerais contidos no artigo 76º deste diploma legal.
Porque, de alguma forma, relevante para a questão decidenda, façamos uma pequena incursão pela Lei das Autarquias Locais – Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
A câmara municipal é constituída por um presidente e por vereadores, um dos quais designado vice-presidente, e é o órgão executivo colegial do município – cf. artigo 56º.
O presidente da câmara municipal designa, de entre os vereadores, o vice-presidente a quem, para além de outras funções que lhe sejam distribuídas, cabe substituir o presidente nas suas faltas e impedimentos – cf. artigo 57º.
Compete ao presidente da câmara municipal decidir sobre a existência de vereadores em regime de tempo inteiro e a meio tempo - cf. artigo 58º.
O presidente da câmara municipal é coadjuvado pelos vereadores no exercício da sua competência e no exercíco da competência da câmara, podendo, respectivamente, delegar (no caso das competências que lhe são próprias, nos termos do artigo 68º) ou subdelegar (no caso das competências delegadas pela câmara municipal, nos termos do artigo 65º), nos vereadores o exercício da sua competência própria ou delegada – cf. artigo 69º.
O presidente de câmara municipal desempenha funções políticas e exerce um poder administrativo e, como tal, é titular de um cargo que, nos termos do n.º 2 do artigo 76º do EOA, é susceptível de afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.
É, portanto, a natureza das funções inerentes ao cargo de presidente de câmara municipal que, só por si, justifica que o legislador tenha expressamente considerado, quer no EOA de 1984, quer no EOA de 2005, o mencionado cargo incompatível com o exercício da advocacia.
Já quanto ao cargo de vereador, parece-nos que o legislador, também no EOA de 2005, optou, novamente, por não incluir os vereadores na previsão legal do artigo 77º.
Justifica-se assim questionar, à luz do artigo 76º do EOA, norma basilar em matéria de impedimentos para o exercício da advocacia, se o desempenho do cargo de vereador será, e em que circunstâncias, inconciliável com o exercício da advocacia?
Parece-nos que o será, na medida em que o vereador se encontre numa situação análoga à do presidente. Isto é, se o presidente de câmara municipal está impedido de exercer a advocacia por causa dos seus poderes, das suas funções de poder, todos aqueles que possam, ainda que pontualmente, estar investidos nesses mesmos poderes, devem, por identidade de razão, estar impedidos de exercer a advocacia.
É, aliás, esta linha de pensamento que subjaz ao entendimento de que também os vice-
-presidentes de câmara municipal, estão impedidos de exercer a advocacia, uma vez que, nos termos da lei das autarquias locais, substituem o presidente nas suas faltas e impedimentos, o que, na prática, equivale a dizer que partilham poderes do presidente e exercem poderes próprios daquele.
E quando é que os vereadores estão investidos destas funções de poder, destas funções públicas? Quando é que estão a exercer funções da câmara e ou do respectivo presidente?
Precisamente quando, nos termos da lei das autarquias locais, estejam a actuar com delegação de competências próprias do presidente de câmara ou com subdelegação de competências da câmara municipal.
Só, nestes casos, estarão a actuar na função política e a vincular a câmara tal como o seu presidente.
E se assim é, também eles, à semelhança do presidente, estarão impedidos de exercer a advocacia, por estarem em causa cargos que afectam a isenção, a independência e a dignidade da profissão.
É também este o entendimento perfilhado, o qual, diga-se, sufragamos, no Acórdão do Conselho Superior n.º R-151/2006, de 8 de Janeiro de 2008, e em que foi relator o Sr. Dr. Miguel Galvão Teles.
O Acórdão em causa foi proferido em sede de recurso de uma deliberação de um Conselho Distrital, que declarou a existência de incompatibilidade para o exercício da advocacia relativamente a vereador de câmara municipal em regime de tempo inteiro ou permanência, mas sem delegação de competências, determinando que o recorrente requeresse a suspensão da sua inscrição como advogado estagiário.
Entendeu o mencionado Acórdão, nomeadamente, o seguinte:
“ (…)
No que toca aos membros da Câmara Municipal, e ao contrário do que entendeu a deliberação recorrida, não se vê que a circunstância do exercício do cargo em permanência, e com ou sem pelouro, seja relevante, pois o que está em causa, no Estatuto da Ordem dos Advogados, não é salvaguardar a dedicação dos vereadores às tarefas municipais.
Afigura-se-me que o critério de distinção terá de ser estabelecido a partir da circunstância de a lei ter vedado expressamente o exercício da advocacia ao Presidente da Câmara Municipal. Estarão em situação de incompatibilidade os vereadores que se encontrem numa posição aproximada do Presidente da Câmara, isto é, todos aqueles vereadores que exerçam funções de Presidente de Câmara.
O resultado será o de que se encontrarão em situação de incompatibilidade os vereadores com delegação de competência do Presidente da Câmara. Por via da delegação de competências, esses vereadores partilham dos poderes do Presidente da Câmara e exercem poderes próprios daqueles, pelo que se lhes aplicam as razões do legislador para tornar incompatível o exercício da advocacia com o cargo de Presidente da Câmara (…)”.
Também no Parecer datado de 9 de Fevereiro de 2006, do Conselho Distrital do Porto, e em que foi relator o Senhor Dr. Carlos Mateus, se entendeu que, quer os vereadores a tempo inteiro quer os vereadores a tempo parcial, desde que exerçam a sua função ou actividade com os poderes que lhe são subdelegados e ou delegados pela câmara e pelo presidente, estão impedidos de exercer a advocacia.
Uma pequena nota final, embora, a nosso ver, de suma importância.
Mesmo que não exista, ab initio, uma delegação genérica de competências, entendemos que o cargo que a Senhora Advogada Consulente pretende assumir, só não colidirá com os princípios contidos, nomeadamente, no n.º 2 do artigo 76º do EOA, desde que as funções ou a actividade a exercer não comportem ou não pressuponham, ainda que só episodicamente, a delegação ou a subdelegação de poderes do presidente ou da câmara.
Pois que, se assim for, a assunção de tais funções ou actividade será, ainda assim, e em nosso entender, inconciliável com o exercício da advocacia.
A advocacia pressupõe e exige que o seu exercício se coadune, sempre e em qualquer circunstância, com as normas plasmadas no Estatuto.
Este é, s.m.o., o nosso parecer.
CONCLUSÕES:
1. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 77º do EOA, é, nomeadamente, incompatível com o exercício da advocacia o exercício do cargo de presidente de câmara municipal.
2. Em relação aos órgãos do poder autárquico, por conseguinte, manteve-se, no Estatuto de 2005, fora do âmbito da previsão legal, o cargo de vereador, o que, prima facie, poderia sugerir não existir incompatibilidade entre o desempenho deste cargo e o exercício da Advocacia.
3. Entendemos que o cargo de vereador será inconciliável com o exercício da advocacia, na medida em que o vereador se encontre numa situação análoga à do presidente.
4. Isto é, se o presidente de câmara municipal está impedido de exercer a advocacia por causa dos seus poderes, das suas funções de poder, todos aqueles que possam, ainda que pontualmente, estar investidos nesses mesmos poderes, devem, por identidade de razão, estar impedidos de exercer a advocacia.
5. E os vereadores estarão investidos nessas funções de poder, nessas funções públicas, quando, nos termos da lei das autarquias locais, estejam a actuar com delegação de competências próprias do presidente de câmara ou com subdelegação de competências da câmara municipal.
6. Só, nestes casos, estarão a actuar na função política e a vincular a câmara tal como o seu presidente e, como tal, impedidos de exercer a advocacia.
7. Mesmo que não exista, ab initio, uma delegação genérica de competências, entendemos que o cargo que a Senhora Advogada Consulente pretende assumir, só não colidirá com os princípios contidos, nomeadamente, no n.º 2 do artigo 76º do EOA, desde que as funções ou a actividade a exercer não comportem ou não pressuponham, ainda que só episodicamente, a delegação ou a subdelegação de poderes do presidente ou da câmara.
8. Pois que, se assim for, a assunção de tais funções ou actividade será, ainda assim, e em nosso entender, inconciliável com o exercício da advocacia.
Notifique-se.
Lisboa, 6 de Maio de 2011.
A Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 11 de Maio de 2011.
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
Paulo de Sá e Cunha |