Consulta 50/2011
Consulta n.º 50/2011
Assunto:
Segredo Profissional.
Legitimidade da escusa para depor – artigo 135º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal.
Dos Factos
Através do ofício n.º -, datado de 18.11.2011 (entrada com o número de registo - ), a Exma. Senhora Juíza da x Secção do xx Juízo Criminal de Lisboa veio, ao abrigo do disposto nos números 1, 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP), solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à legitimidade da escusa para depor apresentada pela Senhora Advogada, Dra. A.
A requerida pronúncia tem subjacente a circunstância de, na audiência de discussão e julgamento realizada no pretérito dia 16 de Novembro, no âmbito do processo n.º -, a Senhora Advogada, testemunha arrolada pelo Ministério Público, se ter escusado a depor, alegando que:” (…) os factos que tem conhecimento, foi das suas funções de Advogada, razão pela qual invoca o sigilo profissional desde já.”
O pedido que nos foi dirigido pelo Tribunal foi instruído, nomeadamente, com cópias do despacho de acusação e do despacho de pronúncia.
Da leitura dos mesmos, conclui-se que a arguida naqueles autos, Senhora Dra. B, está pronunciada pela prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 181º, n.º 1 e 184º, ambos do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 132º, n.º 2, alínea l) do mesmo diploma, porquanto, no dia 13 de Dezembro de 2007, aquando das alegações finais proferidas pela Senhora Procuradora-Adjunta Dra. C, no âmbito do julgamento do processo que, sob o n.º - , correu termos na x Secção do x Juízo Criminal de Lisboa, a também ali arguida Senhora Dra. B interrompeu a Senhora Procuradora-Adjunta (assistente no processo ora em curso) e, em voz alta, proferiu as seguintes palavras: “os procuradores podem mentir em Tribunal? Eu quero uma certidão disto para fazer queixa ao Conselho Superior do Ministério Público (…) sobre as alegações da Sr.ª Procuradora queria chamar a atenção para alguns pontos (…)”.
Seguidamente, a ali arguida teceu considerações sobre o teor das alegações da Senhora Procuradora, fazendo correcções às mesmas. Por fim, dirigindo-se directamente à Senhora Procuradora-Adjunta, em voz alta, disse-lhe: “A Sr.ª tem coisas retorcidas nessa cabeça”.
Na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 13 de Dezembro de 2007, no âmbito do processo n.º - , a Senhora Advogada Dra. A encontrava-se presente por ser mandatária da Senhora Dra. B, arguida nesse processo. É sobre os factos ocorridos na audiência de discussão e julgamento realizada nessa data, 13 de Dezembro de 2007, que se pretende venha a Senhora Advogada Dra. A a prestar depoimento no processo ora pendente.
Traçado o quadro fáctico, haverá agora que proferir parecer nos termos solicitados.
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
O dever de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, doravante EOA), e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever de guardar segredo.
A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º do CPP. De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar correctamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.
Cumprirá, pois, indagar se os factos acerca dos quais deverá incidir o pretendido depoimento da Senhora Advogada Dra. A se deverão ter por abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional.
Vejamos.
Dispõe o n.º 1 do artigo 87º do EOA que “O Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Não pode, obviamente, interpretar-se literalmente o conteúdo do n.º 1 do artigo 87º do EOA, porquanto, se assim fosse, praticamente todos os factos que chegassem ao conhecimento do Advogado estariam sujeitos a sigilo. Tal interpretação literal redundaria numa solução demasiado abrangente e desenquadrada do espírito do sistema, conduzindo, seguramente, a soluções incongruentes. Haverá, outrossim, que proceder-se a uma interpretação teleológica da norma contida no n.º 1 do artigo 87º do EOA.
Assim, atendendo à finalidade da lei, serão prima facie sigilosos aqueles factos relativamente aos quais seja de presumir que quem os confiou ao Advogado, em particular o seu cliente, tinha um interesse objectivo, à luz da relação de confiança existente, em que se mantivessem sob reserva de estrita confidencialidade[2].
Contudo, e apesar de o cliente ser a primeira ratio dos factos que ficam sujeitos a sigilo profissional, a esfera de protecção deste dever estatutário transcende o domínio da relação com o cliente, estendendo-se, no que tange ao Advogado, a:
factos que, por virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, qualquer colega, obrigado quanto aos mesmos factos ao segredo profissional, lhe tenha comunicado – alínea b) do n.º 1 do artigo 87º do EOA.
factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração - alínea c) do n.º 1 do artigo 87º do EOA.
factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante - alínea d) do n.º 1 do artigo 87º do EOA.
factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio - alínea e) do n.º 1 do artigo 87º do EOA.
factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo - alínea f) do n.º 1 do artigo 87º do EOA.
Mas, ainda nestas relações com outras pessoas que não o cliente, não podemos deixar perder de vista as balizas com que delimitámos o sigilo profissional. Isto é, os factos abrangidos pelo sigilo devem em qualquer caso, e sob um ponto de vista objectivo, ser factos do conhecimento restrito de um círculo de pessoas determinadas, no sentido de não terem sido por qualquer forma previamente revelados ou por não serem acessíveis ao público em geral.
Ora, de acordo com as premissas anteriormente elencadas, entendemos que não haverá dever de segredo no que respeita aos factos relativamente aos quais é pretendido que a Senhora Advogada Dra. A deponha. Na verdade, tais factos respeitam a um episódio ocorrido em sessão de julgamento realizada no dia 13 de Dezembro de 2007, no âmbito do processo n.º - , da x Secção do x Juízo Criminal de Lisboa.
Ora, consabidamente, as audiências de julgamento são actos públicos (salvo, naturalmente, as audiências que decorram com exclusão de publicidade, que a lei excepcionalmente autoriza em determinadas situações). Assim, e ressalvado o caso de a audiência em causa ter decorrido com exclusão de publicidade, os factos sobre os quais deverá incidir o depoimento foram praticados em acto judicial aberto ao público, a que qualquer pessoa poderia, querendo, ter assistido. A Senhora Advogada Dra. A presenciou tais factos na qualidade de Advogada, mas o seu conhecimento advém de forma completamente independente e externa a qualquer relação de confidencialidade estabelecida com o cliente, com a outra parte, com colegas ou com tentativas de composição extrajudiciais do litígio. São factos a que a Senhora Advogada assistiu nas mesmas circunstâncias em que qualquer outra pessoa poderia ter assistido, mormente se tivermos em conta o princípio da publicidade da audiência, consagrado no artigo 321.º, n.º 1 do CPP.
Vejamos ainda a questão por outro prisma.
Estarão em causa factos que, muito provavelmente e como de resto indiciam os documentos com que foi instruído o pedido de pronúncia formulado pelo Tribunal, constarão da acta de audiência de julgamento.
Ora, constitui jurisprudência constante da Ordem dos Advogados, o entendimento segundo o qual não estão sujeitos a sigilo profissional os documentos que integram autos judiciais. Ou seja, se um Advogado pretendesse juntar ao processo actualmente pendente certidão da acta de audiência de julgamento do processo n.º - , não careceria da autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA. E não careceria dessa autorização, precisamente, por a acta não conter factos abrangidos pela esfera de protecção do sigilo.
Assim sendo, por identidade de razão, também o depoimento que incida sobre esses factos não carece de qualquer autorização prévia, precisamente por não existir, quanto a estes, qualquer exigência de confidencialidade que o dever de sigilo profissional pressupõe.
Pelo exposto, entendemos que a escusa invocada pela Senhora Advogada Dra. A não é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º do Código de Processo Penal.
Contudo, este entendimento cinge-se, única e exclusivamente, aos factos ocorridos em audiência pública de julgamento, como seja a que teve lugar no dia 13 de Dezembro de 2007.
Quanto a quaisquer outros factos de que a Senhora Advogada Dra. A teve conhecimento por força da relação profissional anteriormente estabelecida com a sua Cliente, estará, naturalmente, a Senhora Advogada impedida de sobre eles depor, por estarem em causa factos sujeitos ao dever de sigilo, por força do artigo 87º do EOA.
CONCLUSÕES:
1. O dever de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, doravante EOA), e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
2. Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever de guardar segredo.
3. A lei processual penal, porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º do CPP.
4. De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional.
5. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
6. No caso concreto, entendemos que não haverá dever de segredo no que respeita aos factos relativamente aos quais é pretendido que a Senhora Advogada Dra. A deponha.
7. Na verdade, tais factos respeitam a um episódio ocorrido em sessão de julgamento realizada no dia 13 de Dezembro de 2007, no âmbito do processo n.º - , da 1ª Secção do 4º Juízo Criminal de Lisboa.
8. Ora, consabidamente, as audiências de julgamento são actos públicos (salvo, naturalmente, as audiências que decorram com exclusão de publicidade, que a lei excepcionalmente autoriza em determinadas situações).
9. Assim, e ressalvado o caso de a audiência em causa ter decorrido com exclusão de publicidade, os factos sobre os quais deverá incidir o depoimento foram praticados em acto judicial aberto ao público, a que qualquer pessoa poderia, querendo, ter assistido.
10.A Senhora Advogada Dra. A presenciou tais factos na qualidade de Advogada, mas o seu conhecimento advém de forma completamente independente e externa a qualquer relação de confidencialidade estabelecida com o cliente, com a outra parte, com colegas ou com tentativas de composição extrajudiciais do litígio. São factos a que a Senhora Advogada assistiu nas mesmas circunstâncias em que qualquer outra pessoa poderia ter assistido, mormente se tivermos em conta o princípio da publicidade da audiência, consagrado no artigo 321.º, n.º 1 do CPP.
11.Pelo exposto, entendemos que a escusa invocada pela Senhora Advogada Dra. A não é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º do Código de Processo Penal.
12.Contudo, este entendimento cinge-se, única e exclusivamente, aos factos ocorridos em audiência pública de julgamento, como seja a que teve lugar no dia 13 de Dezembro de 2007.
13.Quanto a quaisquer outros factos de que a Senhora Advogada Dra. A teve conhecimento por força da relação profissional anteriormente estabelecida com a sua Cliente, estará, naturalmente, a Senhora Advogada impedida de sobre eles depor, por estarem em causa factos sujeitos ao dever de sigilo, por força do artigo 87º do EOA.
Notifique-se.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2011.
A Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 12 de Dezembro de 2011.
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
Paulo de Sá e Cunha
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[1] Também aplicável ao processual civil – vide artigos 519º, n.º 3 al. b) e n.º 4, e 618º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.
[2] Neste sentido v. Rodrigo Santiago, Considerações acerca do regime estatutário do segredo profissional dos advogados”, Revista da Ordem dos Advogados, 57, Janeiro de 1997, p. 229.
Sandra Barroso
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