Pareceres do CRLisboa

Consulta 35/2011

 

Consulta n.º 35/2011
 
 
            Requerente:
 
Assuntos:
•          Sigilo Profissional
 
Consulta
 
No dia 22 de Julho de 2011 deu entrada nos serviços do Conselho Distrital de Lisboa um requerimento apresentado pela Sra. Dra A, Advogada com domicílio profissional na Rua -, em Lisboa, onde é solicitada a emissão de parecer sobre a matéria que se passa a sintetizar:
 
a) Uma determinada sociedade comercial terá iniciado a construção de um empreendimento em Olhão, no Algarve, e em consequência terão sido assinados alguns contratos promessa de compra e venda com diversas pessoas, entre os quais com o Sr A ;
b) Em 2006, essa empresa ter-se-á deparado com problemas financeiros, acabando por entrar em incumprimento quanto às suas obrigações assumidas perante o Banco Financiador, e que por essa razão acabou por vir a assumir o controlo dessa mesma empresa.
c) Uma vez que as moradias apresentavam defeitos de construção graves, o Banco decidiu não avançar para a celebração das escrituras de compra e venda, optando antes por negociar a devolução dos valores pagos a título de sinal pelos promitentes compradores;
d) Em Maio de 2008, o Sr A, entretanto também designado como Presidente da Comissão dos Promitentes, terá recorrido à sociedade de Advogados (com a qual colabora a Sra Advogada requerente) para que fosse prestado aconselhamento jurídico a essa comissão;
e) Em 9 de Abril de 2009 foi emitida em nome do Sr A uma factura relativa aos serviços prestados.
f) O Sr A terá solicitado que a mesma fosse endereçada ao Banco, convicto de que este suportaria os custos dos serviços jurídicos prestados no âmbito do processo de reembolso dos promitentes compradores,
Sucede que,
g) A Sra Advogada consulente refere que nunca a sociedade de Advogados de quem é sócio terá sido instruída pelo Banco para prestar a este algum tipo de serviços jurídicos.
Acresce que,
h) O Banco recusa-se a pagar a factura.
i) Dada a intransigência do Sr A em liquidar a dívida para com a sociedade, foi intentada contra este, em Inglaterra, uma acção com vista à liquidação dos honorários alegadamente devidos;
j) De forma a provar que teria ficado acordado que o Sr A apenas estaria dispensado da obrigação de liquidação dos honorários caso o Banco formalmente assumisse o compromisso de pagar a dívida em nome daquele, terá sido disponibilizado no Tribunal onde corre termos a acção um backup de um email datado de 27 de Setembro de 2009 em que isso teria sido acordado;
Contudo,
k) A defesa do Sr A afirma que tal email nunca existiu, mais requerendo uma perícia ao servidor nos escritórios da Sra Advogada requerente em Portugal, a fim de verificar a veracidade do mesmo.
l) Tendo em atenção que este procedimento, por parte dos peritos nomeados pelo Sr A, implicaria um contacto com toda a informação e contactos, assim como com toda a base de dados de clientes da sociedade de Advogados da qual é sócia a Sra Advogada Consulente, foi por esta invocado que não seria autorizada a perícia porque violaria as normas do segredo profissional a que os Advogados portugueses estão vinculados.
m) O Tribunal inglês, em sequência, solicitou à Sra Advogada consulente uma declaração da Ordem dos Advogados que confirmasse a posição defendida por aquela.
 
Por esta razão, vem a Sra Advogada consulente agora pedir esclarecimentos sobre a seguinte questão: “Pode a Ordem dos Advogados autorizar a análise da caixa de email de um Advogado, contendo emails de um vasto leque de clientes e versando sobre os mais variados assuntos, apenas pela desconfiança da outra em relação a um email já disponibilizado?”
 
 
 
Parecer
 
Antes de mais, será conveniente esclarecer, de forma introdutória, que o presente parecer é elaborado apenas e somente tendo por base o pedido apresentado pela Sra Advogada consulente, limitando-se a apreciar as questões profissionais aí suscitadas tendo por base os factos por aquela transmitidos – e pela forma como o foram. Não constitui, pois, objecto deste parecer apreciar outras matérias e, em particular, as posições que cada uma das partes defende no processo judicial em curso.
 
Sem prejuízo, julgamos ser também importante esclarecer que desconhecemos o teor do email em questão, bem como se foi solicitada previamente qualquer dispensa de sigilo para a sua junção ao processo judicial em curso – o que em nossa opinião seria legalmente necessário, no caso do mesmo e do seu respectivo conteúdo corresponder, efectivamente, ao que é descrito no pedido de parecer.[1]
 
Efectuadas estas pequenas observações, estamos assim em condições de emitir a nossa opinião quanto à questão colocada – o que implica que nos debrucemos sobre o regime do sigilo profissional.
 
O segredo profissional representa a blindagem normativa e a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente.[2]
 
Aliás, bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “o dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade”[3].
 
Segundo entendimento já adoptado por anterior Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[4], existem três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever do Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:
“a) a indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente;
b) o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça;
c) a garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.”
 
O segredo profissional é, pois, um direito e uma obrigação fundamental e primordial do advogado. É parte essencial da função do Advogado ser (i) o depositário dos segredos do seu cliente (e de terceiros com quem o Advogado entra em contacto no desempenho dos seus serviços) bem como (ii) o destinatário de informações baseadas na confiança. Ora, sem a garantia de confidencialidade não pode existir confiança[5].Ainda assim, não poderemos esquecer que o dever de guardar sigilo não assenta apenas no vínculo de confiança em que se estabelece a relação Advogado-cliente mas, também, na natureza social da função que o advogadoexerce, enquanto interveniente na administração da justiça.
 
Conforme se tem escrito sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto do sigilo profissional, caso ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto os seus clientes, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.
 
Nesta medida, pode-se ler no art. 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional” que:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 – O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
 (…)”
 
Por via da transcrita norma não restam dúvidas que um email enviado por um Advogado ao seu cliente em que são discutidos factos relativos à condução do processo e assunção (ou não) da obrigação de pagamento de honorários, está abrangido pelo sigilo, como também estará, em geral, abrangido por este dever toda a informação relativa a clientes, incluindo troca de correspondência electrónica com estes, que conste de um servidor de um escritório de Advogados.
 
Isto não significa que o dever de guardar sigilo tenha um alcance absoluto. Com efeito a lei prevê algumas situações em que o sigilo pode ser levantado. Não nos iremos debruçar muito sobre a possibilidade conferida aos Tribunais pela lei processual portuguesa para solicitar a quebra do sigilo profissional – ainda que contra a vontade do Advogado. E isto por uma razão muito simples de entender: é que a lei processual portuguesa não é aplicável ao processo judicial no qual foi levantada a questão do acesso ao servidor que se encontra no escritório da Advogada consulente. Sem prejuízo, esta referência não exime que analisemos a outra situação em que a Lei prevê o levantamento do sigilo profissional. Trata-se do regime jurídico constante do nº5 do art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados. E este diz-nos que “O Advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio Advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do Conselho Distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento”.
 
Contudo, a opção de solicitar a dispensa do sigilo é um direito legalmente conferido ao Advogado – não um dever. É ao Advogado que cabe, de acordo com a sua consciência, tomar a opção de solicitar que seja dispensado do sigilo. E a única pessoa que, nos termos da Lei, tem legitimidade para solicitar essa mesma dispensa é o Advogado titular do dever de sigilo - art. 87º, nº4 do EOA e art. 1º, nº2 do Regulamento n º 94/2006 (Regulamento da Dispensa do Segredo Profissional). Não pode, pois, a Ordem dos Advogados, nem qualquer outro terceiro, substituir-se à sua decisão de pedir, ou não, a dispensa.
 
Ora, a dispensa do sigilo profissional não foi pedida pela Sra Advogada consulente. E não o sendo, não está este Conselho Distrital de Lisboa sequer em condições para analisar e verificar se, em concreto, estão preenchidos os condicionalismos legais estabelecidos no art. 87º, nº4 do EOA e no Regulamento nº 94/2006 para que seja autorizado a terceiros o acesso ao servidor que se encontra no escritório da sociedade de Advogados de que a Sra Advogada consulente é sócia para efeitos de “análise da caixa de email (da mesma), contendo emails de um vasto leque de clientes e versando sobre os mais variados assuntos, (…)”.
 
Mais julgamos importante também dizer que não existe qualquer norma jurídica em vigor que atribua poderes a este Conselho Distrital (ou a qualquer órgão da Ordem dos Advogado) para autorizar o acesso de terceiros a documentos ou coisas abrangidos pelo sigilo profissional fora do regime previsto no art. 87º do EOA.
 
NESTES TERMOS,
Informa-se que, uma vez que não foi solicitada qualquer dispensa da obrigação de guardar sigilo profissional pela Sra Advogada Consulente, este Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados não está em condições para autorizar o acesso ao servidor da sociedade de Advogados de que a Sra Advogada consulente é sócia para efeitos de “análise da caixa de email (da mesma), contendo emails de um vasto leque de clientes e versando sobre os mais variados assuntos, (…)”
 


Lisboa, 4 de Agosto de 2011
 
(O Assessor Jurídico do CDL)
 
Rui Souto
 
Concordo e homologo o parecer anterior, nos preciso termos e limites aí fundamentados,
 
Lisboa, 4 de Agosto de 2011
 
(O Presidente do CDL)
 
Vasco Marques Correia


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[1] Cfr al. j) supra.
[2] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em 6.2.2002, e no qual foi relator o Dr José Mário Ferreira de Almeida.
[3] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996, p. 65
[4] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida, e aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003
[5] Cfr Código de Deontologia dos Advogados Europeus (versão portuguesa aprovada pela Deliberação do Conselho Geral n.º 2511/2007).

Rui Souto

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