Consulta 47/2011
Consulta n.º 47/2011
Assunto:
• Segredo Profissional.
Dos Factos
Através do ofício n.º . , datado de 25.10.2011 (entrada com o número de registo - de 31.10.2011), o Exmo. Senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Moita, veio solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto a uma situação de eventual violação do sigilo profissional.
A questão foi suscitada no âmbito do processo n.º . , em que é Autora, A Lda., e Ré, B Lda.
Em sede de Contestação, a Ré alega que o documento junto sob o n.º 10 à Petição Inicial, bem como os factos contidos nos artigos 24º, 27º, 28º, 29º e 30º daquele articulado constituem a divulgação, pelo mandatário da Autora, de factos de que lhe foi dado conhecimento durante negociações para acordo que visava pôr termo ao litígio entre as partes e que foram, obviamente, malogradas, o que, defende, representa uma violação do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Em sede de audiência preliminar, o Senhor Juiz daquele Douto Tribunal proferiu despacho sobre a questão, tendo levado à Base Instrutória os factos alegados nos artigos 24º, 27º, 28º, 29º e 30º da Petição Inicial, por entender que, conforme impõe o n.º 5 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, apenas o documento junto sob o n.º 10 à Petição Inicial, enquanto meio de prova, pode estar em questão.
Vem, assim, o Douto Tribunal solicitar a nossa pronúncia quanto à eventual violação do sigilo profissional consubstanciada na junção do documento junto sob o n.º 10 à Petição Inicial.
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
A prossecução da justiça e do direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam que, necessariamente, qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado, disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).
O regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, desenhado no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
O n.º 1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira regra geral do instituto jurídico-deontológico.
Aí se pode ler que “ O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Pode até dizer-se que, em certa medida, as demais regras previstas nas diversas alíneas do n.º 1, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.
Mas, o que seja segredo tem de ser aferido por três vias:
1. pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
2. pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
3. pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.
A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.
Em nossa opinião, só serão sigilosos aqueles factos relativamente aos quais seja de presumir que, quem os confiou ao Advogado, nomeadamente o seu cliente, tinha um interesse objectivo, face à relação existente, em que se mantivessem reservados.
Contudo, e apesar do cliente ser a fonte básica dos factos que ficam sujeitos a sigilo profissional, a esfera de protecção desta obrigação estatutária vai além da mera relação Advogado-cliente, estendendo-se, no que tange ao Advogado, a:
1. factos que, por força de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, qualquer colega, obrigado quanto aos mesmos factos ao segredo profissional, lhe tenha comunicado – alínea b);
2. factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração – alínea c);
3. factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante - alínea d);
4. factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise por termo ao diferendo em litígio – alínea e);
5. factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo – alínea f).
Mas, ainda nestas relações com outras pessoas que não o cliente, não podemos perder de vista as balizas com que delimitámos o sigilo profissional.
Isto é, deverá sempre subsistir um interesse objectivo, face à relação estabelecida e aos próprios factos em si, na continuidade da sujeição destes a confidencialidade – porque só deverá ser e manter-se sujeito a sigilo aquilo que verdadeiramente é sigiloso.
Traçadas as linhas gerais que irão orientar o nosso pensamento, passemos de seguida à questão que ora nos ocupa, atendendo, estritamente, aos elementos que foram colocados à nossa disposição.
Alega a Autora, na sua Petição Inicial, entre outros, os seguintes factos:
“ (…)
24º
No dia 22 de Março de 2010, por correio electrónico, a Ré, por intermédio do seu mandatário, comunicou ao mandatário da Autora que a mesma estaria na disposição de corrigir qualquer defeito no programa, admitindo a demora na conclusão da mesma.
(…)
27º
No dia 29 de Abril de 2010, a Ré, por intermédio do seu mandatário, comunicou, por correio electrónico, ao mandatário da Autora, em resposta à comunicação que lhe foi dirigida pelo mesmo meio, em 28 de Abril de 2010, que a Ré estava a elaborar um documento de toda a situação reportada, conforme cópia que ora se junta e se dá por integralmente reproduzida (Doc. n.º 10).
28º
E, no dia 8 de Setembro de 2010, a Autora, por intermédio do seu mandatário, comunicou, por correio electrónico, ao mandatário da Ré, informando novamente das deficiências da aplicação, denunciando os defeitos que a obra representava, tendo dado um prazo de 5 dias para a eliminação dos defeitos, sob pena de recorrer à via judicial, entenda-se sob pena de considerar o contrato celebrado com a Ré por resolvido, findo o decurso desse prazo.
29º
No mesmo dia, 8 de Setembro de 2010, o mandatário da Ré respondeu ao mandatário da Autora, dizendo, com surpresa para a Autora, que o contratualmente acordado estava integralmente realizado.
30º
Acrescentou a Ré, através do seu mandatário, que nada mais pode fazer, não tendo apresentado qualquer justificação para o incumprimento do referido contrato, furtando-se a Ré, ademais, a qualquer contacto com a Autora”.
Não obstante o Douto Tribunal já se ter pronunciado sobre a articulação destes factos e pertencer aos Tribunais a função jurisdicional, não deixaremos, contudo, de sublinhar o seguinte.
A forma como se encontram articulados os factos vertidos nos artigos 24º, 27º, 29º e 30º da Petição Inicial, com referência expressa à intervenção dos Advogados das partes, constitui, só por si, violação da norma contida no artigo 87º do EOA.
A forma como aqueles factos se encontram articulados pressuporia uma autorização prévia, nos termos do n.º 4 da mencionada norma legal.
O que, no caso, concreto, não terá ocorrido.
É que a simples alegação em articulado dos factos sujeitos a sigilo constitui, em si mesma, violação do dever de segredo, independentemente dos meios de prova que sejam usados para demonstrar esses factos.
Os factos constantes dos mencionados artigos deveriam, a nosso ver, ser considerados como não escritos, pois que não deixa de estar em causa um acto proibido por lei.
Mas, conforme já dissemos, só aos Tribunais pertence a função jurisdicional.
Quanto ao artigo 28º da Petição Inicial, parece-nos, estritamente de acordo com os elementos colocados à nossa disposição, que o e-mail a que aí se alude, datado de 8 de Setembro de 2010, tem a natureza de uma mera interpelação admonitória. E, se assim for, não haverá qualquer violação do sigilo profissional.
Tem sido entendido pela jurisprudência dos órgãos da Ordem dos Advogados que as cartas de interpelação não são documentos sigilosos.
E, assim sendo, também a alegação dos factos contidos nesses mesmos documentos não carece de autorização prévia.
Passemos de seguida à apreciação da questão para a qual foi solicitada a nossa pronúncia – documento junto sob o n.º 10 à Petição Inicial.
Vejamos então.
Em primeiro lugar, refira-se que não consta, nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor, uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada ou subscrita por Advogado.
Existe sim essa proibição quando, do seu teor, decorram factos sujeitos a sigilo profissional.
Isso mesmo prescreve o n.º 3 do artigo 87º do EOA – “o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”.
Como supra referimos, o que seja segredo tem de ser aferido por três vias:
1. pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
2. pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
3. pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.
No caso concreto, e de acordo com os elementos que foram colocados à nossa disposição, os e-mails que constituem o doc. n.º 10 terão sido trocados durante as negociações encetadas entre as partes, por intermédio dos respectivos Advogados.
A mencionada correspondência traduz a posição da ora Ré quanto a alguns aspectos do litígio processualmente pendente, sendo que os dois e-mails que constituem o Doc. n.º 10, lidos em articulação, inculcam a ideia de aceitação, pelo menos implícita, por parte da Ré, da existência dos defeitos invocados pela Autora.
Ora, como anteriormente referimos, considerando o quadro fáctico em que surgem os dois e-mails que constituem o Doc. n.º 10, não temos dúvidas em afirmar que o mesmo está abrangido pela esfera de protecção do sigilo profissional, carecendo a sua junção aos autos da autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA.
No caso concreto, não terá sido requerida a autorização prévia exigida pelo regime legal em vigor.
Assim, com rigor processual, o mencionado documento está sujeito à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do EOA.
Contudo, e sem prejuízo deste nosso entendimento, o certo é que é aos Tribunais que pertence a jurisdição e, por isso, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida.
CONCLUSÕES:
1. Encontra-se sujeita a autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital ou do Vogal com poderes delegados para o efeito não só a revelação de documentos e outros meios de prova sujeitos a sigilo como também, e sobretudo, a alegação de factos abrangidos pelo dever de guardar sigilo.
2. Não obstante o Douto Tribunal já se ter pronunciado sobre a articulação dos factos vertidos nos artigos 24º, 27º, 29º e 30º da Petição Inicial, e pertencer aos Tribunais a função jurisdicional, não deixaremos, contudo, de evidenciar o seguinte.
3. A forma como se encontram articulados os factos vertidos nos mencionados artigos, isto é, com referência expressa à intervenção dos Advogados das partes, constitui, só por si, violação da norma contida no artigo 87º do EOA.
4. A forma como aqueles factos se encontram articulados pressuporia uma autorização prévia, nos termos do n.º 4 da mencionada norma legal. O que, no caso, concreto, não terá ocorrido.
5. É que a simples alegação em articulado dos factos sujeitos a sigilo constitui, em si mesma, violação do dever de segredo, independentemente dos meios de prova que sejam usados para demonstrar esses factos.
6. Os factos constantes dos mencionados artigos deveriam, a nosso ver, ser considerados como não escritos, pois que não deixa de estar em causa um acto proibido por lei.
7. Quanto ao Doc. n.º 10, não temos dúvidas em afirmar que o mesmo está abrangido pela esfera de protecção do sigilo profissional, carecendo a sua junção aos autos da autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA.
8. No caso concreto, não terá sido requerida a autorização prévia exigida pelo regime legal em vigor.
9. Assim, com rigor processual, o mencionado documento está sujeito à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do EOA.
10. Contudo, e sem prejuízo deste nosso entendimento, o certo é que é aos Tribunais que pertence a jurisdição e, por isso, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de Fevereiro de 2012.
A Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 17 de Fevereiro de 2012.
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
Paulo de Sá e Cunha
Sandra Barroso
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