Pareceres do CRLisboa

Consulta 17/2012


Consulta n.º 17/2012

Assunto:     
•    Legitimidade da escusa para depor – Artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.

Questão
 
A Exma. Senhora Procuradora da República da 8ª Secção do D.I.A.P. da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, Ministério Público da Amadora, veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP), solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado, Dr. A.

A requerida pronúncia tem subjacente a circunstância de, aquando da sua inquirição como testemunha no âmbito do processo de inquérito n.º - , o Senhor Advogado se ter escusado a depor invocando a existência de sigilo profissional.

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e/ou os documentos nos quais esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional.



O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.

Existe, no entanto, na lei processual penal, um regime de excepção, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal .
Segundo o regime estatuído na lei processual penal, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional.

E, deduzida a escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o Juiz ou a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a legitimidade desta – cf. n.º 2 do artigo 135º do CPCP.

Se tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz ou a autoridade judiciária decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo 135º do CPP.

E, nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está, ou não, a invocar criteriosa e correctamente que os factos sobre os quais se pretende deponha constituem matéria sigilosa, sobre a qual deva observar o dever de segredo.

Importa, assim, indagar se, quanto aos factos aos quais o seu depoimento é pretendido, o Senhor Advogado, Dr. A, está, ou não, obrigado a sigilo.

Vejamos então.

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.
Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir Advocacia.
Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

Como se tem escrito sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.

O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente.

Aliás, e bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se abre.”



Existem, segundo entendimento já perfilhado pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados , três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos, dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:
a)    A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente.
b)    O interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça.
c)    A garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

Assim, pode-se ler no artigo 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional” que:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.


2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.

Em primeiro lugar, diz-nos esta norma, no seu número 1 que “O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (...)”.

Com efeito, sob esta fórmula, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. Pode-se até dizer que, em certa medida, as demais regras previstas nas alíneas da mesma, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.


No inquérito actualmente em curso, investigam-se factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias, por eventual ocultação de proventos, em que são arguidos B, C e D.

Sustenta o Ministério Público a relevância do depoimento do Senhor Advogado nos seguintes factos:
“ (…)
Todavia, a sua inquirição é relevante, na medida em que todos os membros do conselho de administração da sociedade X renunciaram a 4.12.2007, tendo sido nomeado administrador único E a 31.12.2007 e que também renunciou a 25.1.2008.
Ora, tal administrador foi contactado por A para ser administrador da firma X sem que conhecesse qualquer actividade dessa firma e a troco da quantia de € 2.000 mensais, que se deslocou com uma advogada do escritório de A ao Registo Comercial e assinou o registo de administrador sem nunca ter estado numa assembleia geral; que confiava inteiramente em A, que depois de ter ficado detido pela PJ em Janeiro de 2008, dias depois, uma advogada do escritório apresentou-lhe várias folhas em branco para assinar, o que fez, não questionando o seu uso, tendo reconhecido a sua assinatura no contrato promessa de compra e venda entre X e a Y mas não reconhecendo o seu teor mas apenas a assinatura, que até teve um reunião agendada com o Presidente da Câmara da Amadora para falar de terreno que nem sabia da localização – cfr. Fls. 924 e 925.
Como consta de fls. 752 e segs., foi A que consta como outorgante na escritura de compra e venda como procurador da X.

Por outro lado, A recebeu em nome próprio um cheque no valor de € 1.500.000 – cfr. Fls. 783 a 785, 790 a 792.

(…)



Com efeito, importa esclarecer o papel do ilustre Advogado ao assumir toda a representação da X, ter arranjado um testa de ferro para a sua administração, após todos os administradores anteriores terem renunciado em uníssono, ter recebido em nome próprio um quarto do valor pago pela venda do terreno em Y, o destino do restante dinheiro pago pela venda do terreno, levando dessa forma a que os administradores de então se desresponsabilizassem da ilicitude criminal ou contra-ordenacional do seu comportamento.
Em conclusão, é vital o seu depoimento a fim de esclarecer todo este comportamento dos vários intervenientes e do próprio comportamento em todo este processo de venda e de pagamentos avultados”.  

Porque da documentação que nos foi enviada pelo Tribunal, não nos foi possível apurar, com rigor, da sujeição ou não ao dever de sigilo, solicitámos alguns esclarecimentos ao Senhor Advogado, Dr. A, aos quais, de resto, prontamente respondeu.

Dos esclarecimentos prestados decorre, sem margens para dúvidas, que os factos que constituem o objecto do inquérito em curso chegaram ao conhecimento do Senhor Dr. A no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício, já que o Senhor Advogado foi, e é, Advogado da X.
E, assim sendo, estando em causa factos que caem directamente na factispécie da norma legal contida no n.º 1 do artigo 87º do EOA, não poderá o Senhor Advogado sobre eles depor sem estar munido da competente autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA.

Pelo exposto, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado, Dr. A, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.



CONCLUSÕES:    

1.    A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e/ou os documentos nos quais esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
2.    Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional.
3.    O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.
4.    Existe, no entanto, na lei um regime de excepção previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal.  
5.    Segundo o regime estatuído na lei processual penal, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pela obrigação de segredo profissional.
6.    E, deduzida a escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o Juiz ou a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a legitimidade da escusa – cf. n.º 2 do artigo 135º do CPP.
7.    Se tal acontecer, como sucede no caso concreto, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
8.    Ora, no caso concreto, entendemos que os factos aos quais o depoimento do Senhor Advogado, Dr. A, é pretendido estão abrangidos pelo dever de sigilo profissional.
9.    Precisamente porque estão em causa factos que chegaram ao conhecimento do Senhor Dr. A no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício.


10.     Pelo exposto, entendemos que, no caso concreto, a escusa em depor apresentada pelo Senhor Dr. A é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º do CPP.
11.     O depoimento do Senhor Advogado à matéria de facto que constitui o objecto do inquérito em curso pressupõe uma autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital, nos termos do disposto n.º 4 do artigo 87º do EOA.


Lisboa, 25 de Setembro de 2012.


A Assessora Jurídica do C.D.L.


Sandra Barroso


Concordo e homologo o parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Notifique-se.

Lisboa, 8 de Outubro de 2012.


O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)


Paulo de Sá e Cunha



Sandra Barroso

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