Pareceres do CRLisboa

Consulta 31/2012

Consulta n.º 31/2012

Pedido de Escusa de Depoimento
 
 
Requerente: Tribunal Judicial de -
 
Assuntos:
•         Sigilo profissional
 



Consulta
 
Por ofício que deu entrada nos serviços deste Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados em 20 de Julho de 2012, com o nº -, veio o Exmo Sr Juiz de Instrução, no âmbito do processo que se encontra a correr termos sob o nº 1698/10.7TAOER nos serviços do Ministério Público de Oeiras, solicitar pronúncia sobre a ilegitimidade da escusa de prestação de depoimento como testemunha apresentada pela Sra Dra A.
 
O ofício referido vem acompanhado de despacho, do qual constam os seguintes factos cuja prática é imputada aos arguidos B e C, e que entendemos serem importantes para o presente parecer:
a)     No âmbito do Proc. nº -  do 3º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, foi decretada a insolvência da X (da qual eram sócios D e E), e nomeado como Administrador da Insolvência o Sr. F;
b)     Em dia não concretamente determinado, mas que se situará entre o dia 25.5.2009 e o dia 29.12.2009, é dito no despacho que os arguidos terão retirado todo o equipamento existente na morada das instalações da X, entre o qual se encontravam as máquinas, ferramentas, materiais de stock, materiais de escritório e cinco viaturas.
c)      Mais é dito que a cedência de quotas ao arguido G terá sido simulada, nunca tendo este sido proprietário da sociedade nem seu administrador.
Efectivamente
d)     G teria pretensamente adquirido as quotas aos arguidos B e C, para tanto assinando “uns papéis” num escritório de Advogado em Almada para que, como contrapartida, recebesse uma reforma.
e)     Este escritório veio a apurar-se como pertencendo à Sra. Dra. A, mandatária da X.
 
No decurso da investigação, foi a Sra. Dra. A notificada para ser inquirida e aí terá invocado escusa, baseada na existência de segredo profissional para não prestar declarações.
 
 
 
 
Parecer
 
 
A título preliminar, nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.
 
Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência. Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir Advocacia. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.
 
A este propósito, o Dr António Arnaut, escreve que: “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, «condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se abre[1].”
 
O fundamento ético-jurídico deste dever, não está, no entanto, confinado à relação contratual estabelecida entre o Advogado e o seu Cliente. Bem, pelo contrário, e em larga medida, ultrapassa essa mera relação entre as partes. A prossecução da Justiça e do Direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam que, necessariamente, qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado, disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos a terceiros (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).
 
Entendemos que o fundamento ético-jurídico do dever de guardar segredo profissional tem, pois, as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do Advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da Advocacia e na sua função de manifesto interesse público. Conforme é, aliás, jurisprudência constante da Ordem dos Advogados, e também nossa posição, o segredo profissional tem assim um carácter social ou de ordem pública e não natureza contratual.
 
Quanto ao seu assento legislativo o  regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, previsto no art. 87º do E.O.A. O nº1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira pedra de toque deste instituto jurídico. Aí se pode ler que “O Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.”
 
A referida norma estabelece ainda uma série de alíneas que mais não são do que explicitações ou pormenorizações do princípio geral supra transcrito e que terão sido previstas para esclarecer determinadas dúvidas que possam surgir ou salientar as situações típicas do evidenciado dever, considerando-se como abrangido pelo sigilo:
“a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.”
 
Decorre também do corpo do art. 87º do E.O.A. que:
- O dever de guardar segredo profissional existe (i) quer o serviço solicitado ao Advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, (ii) quer deva ou não ser remunerado, (iii) quer o Advogado haja chegado a aceitar a prestação do serviço quer o não haja feito, (iv) quer o Advogado haja prestado efectivamente o serviço quer o não haja feito; e existe, também, em relação a todos os Advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção na prestação de serviços jurídicos em causa (n.º 2);
- O dever de guardar segredo profissional abrange documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos abrangidos por aquele (n.º 3);  
- Não podem fazer prova em juízo as declarações feitas pelo advogado com violação de segredo profissional (n.º 5).
 
E apenas poderá o Advogado ser desvinculado do sigilo profissional a que se encontra sujeito quando tal “seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio Advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário” (nº5 do art. 87º do E.O.A.). Sendo que, só o próprio Advogado, enquanto titular do dever de sigilo, tem legitimidade para requerer autorização para a sua dispensa.
 
Assim, se um Advogado for indicado como testemunha de factos de que teve conhecimento no exercício da profissão terá de, antes de mais, e se pretender depor sobre os mesmos, obter autorização por parte da Ordem dos Advogados para os revelar.
 
Não requerendo autorização ou não sendo esta concedida, o Advogado poderá escusar-se a depor sobre os factos sujeitos a sigilo profissional – O Código de Processual Penal confere-lhe esse direito no art. 135º, nº1[2].
 
Contudo, manda a lei processual civil, no nº4 do enunciado art. 519º do C.P.C., aplicar com as adaptações necessárias impostas pela natureza dos interesses em causa o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade dessa mesma escusa. Matéria que é objecto de regulamentação no art. 135º do Código de Processo Penal (C.P.P.).
 
Consagra a lei, neste artigo, uma verdadeira excepção ao princípio do dever de colaboração com a Justiça, ao atribuir a determinadas pessoas, tendo em conta a profissão ou actividade que desempenham, e quando tal se encontrar legalmente previsto, um direito a não prestar depoimento, a pedir escusa, desde que esse depoimento incida sobre factos sujeitos a segredo.
 
Mas também esta regra do art. 135, nº1 do C.P.P., tem excepções consagradas em letra de lei. Diz o nº2 do Artº 135º do C.P.P. que“havendo dúvidas fundadas sobre a ilegitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.”
 
 
Sem prejuízo, haverá que procurar saber, em primeiro lugar, o que se entende por legitimidade da escusa. Até porque a lei não a define. Somos de opinião que essa legitimidade apenas poderá estar ligada à existência, de factos que estão sujeitos a sigilo profissional[3]. À existência ou não de um verdadeiro direito à escusa. Assim sendo, e caso após terem sido realizadas as diligências necessárias se conclua pela inexistência de sigilo poderá o Tribunal ordenar ou requerer a prestação do depoimento (art. 135º, nº2 do C.P.P. parte final).
 
Tendo em consideração a escassez de elementos que foram disponibilizados, em sede da presente Consulta torna-se difícil dar uma resposta peremptória ao tribunal. E isto porque se não conhece o conteúdo preciso das matérias às quais se pretende o depoimento da Sra. Dra. A.
 
Ainda assim, e tendo em conta o que se conhece – isto é, do teor do despacho que consta de fls. 190 e segs. do processo acima identificado, anexo ao ofício do Exmo. Sr. Juiz de Instrução -, parece decorrer que a Sra. Dra. A terá (i) sido mandatária da X e que alegadamente (ii) terão sido assinados “uns papéis” no seu escritório. E, por isso, a sua intervenção (a existir) nos factos terá sido na qualidade de Advogada.
 
Sendo este o caso, isto é, verificando-se que as questões que seriam colocadas à Sra Advogada diriam necessariamente respeito a matérias de que fossem do seu conhecimento em virtude da prestação dos seus serviços (de Advocacia) a sua escusa não poderá deixar de ser qualificada como legítima.  
 
 
 

Lisboa, 22 de Janeiro de 2013
 
(O Assessor Jurídico do CDL)
 
Rui Souto



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[1] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996, p. 65
[2] Art. 135º, nº1 CPP: os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
[3] Por diversas vezes tivemos já a oportunidade de sustentar esta mesma posição em anteriores apreciações de escusa (cfr. a título de exemplo o Parecer CDL nº 71/2005, de que fomos relatores, e cuja consulta poderá ser realizada em www.oa.pt).

Rui Souto

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