Pareceres do CRLisboa

Consulta 39/2012

Consulta n.º 39/2012
 
 
            Requerente:
 
Assuntos:
•          Sigilo Profissional
 


 
Consulta
 
No dia 24 de Setembro de 2012 deu entrada nos serviços do Conselho Distrital de Lisboa um requerimento apresentado pelo Sr. Dr. , Advogado com domicílio profissional na - , onde é solicitada a emissão de parecer sobre a matéria que se passa a sintetizar:
 
a)      Nos primeiros dias do mês de Janeiro de 2012, o Sr. Advogado consulente terá sido constituído mandatário pelos Srs. A e esposa com vista ao respectivo patrocínio em acção de reivindicação;
b)      No dia 20 de Janeiro de 2012, o Sr. Advogado consulente terá dirigido uma comunicação electrónica à Sra. Dra. B , mandatária da pessoa contra quem deveria vir a ser proposta a supra referida acção (cfr. Doc. 1);
c)      No dia 25 de Janeiro foi enviada uma segunda comunicação electrónica, solicitando que a Sra. Dra. B  transmitisse o seu conteúdo ao respectivo constituinte;
d)      Tal comunicação, de acordo com o entendimento do Sr. Advogado consulente, consubstancia uma interpelação extrajudicial feita em nome dos seus constituintes solicitando (i) acesso ao imóvel no dia 28 ou 29 de Janeiro de 2012 e (ii) pedindo a cessação da ocupação ilegítima do mesmo até ao dia 15 de Fevereiro do mesmo ano (cfr. Doc. 2);
e)      Em acção judicial que veio a ser intentada pelos constituintes do Sr. Advogado consulente vieram aqueles arguir ter procedido à interpelação a que é feita referência no parágrafo anterior, tendo junto, como meio de prova, os dois documentos acima mencionados;
Sucede que;
f)        A mandatária da contraparte veio requerer em juízo o respectivo desentranhamento, invocando que tais documentos constituem correspondência confidencial, não podendo ser juntos aos autos.
 
Por esta razão, e sem prejuízo do Sr. Advogado requerente entender que tais documentos não estariam sujeitos ao dever de sigilo, vem solicitar a emissão de parecer.
 
Parecer
 
Antes de mais, importa esclarecer que o presente parecer é elaborado apenas e somente tendo por base o pedido apresentado pelo Sr. Advogado consulente. Limita-se a apreciar as questões profissionais aí suscitadas com referência aos factos por aquele transmitidos – e pela forma como o foram. Não constitui, pois, objecto deste parecer apreciar outras matérias e, em particular, as posições que cada uma das partes defende no processo judicial em curso.
Quanto à questão que nos é colocada pelo Sr. Advogado consulente, a mesma deverá ser encarada tendo como subjacente dois regimes distintos estabelecidos no Estatuto da Ordem dos Advogados em matéria de confidencialidade:
- o disposto no art. 108º do EOA;
- o instituto do segredo profissional.
 
§1. Da aplicação do art. 108º do EOA
 
Diz-nos esta norma que, “sempre que um Advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro Advogado, tenha carácter confidencial, deve exprimir, claramente, tal intenção.”
Trata-se de um preceito que constitui novidade legislativa do actual Estatuto (Lei 15/2005, de 26 de Janeiro) em vigor, e que não tem qualquer tipo de paralelo com legislação profissional anterior. Sob a identificada previsão, visou o legislador criar uma cláusula de salvaguarda quanto a certas comunicações entre mandatários, que nunca poderão ser reveladas por quem é o seu destinatário - nem sequer por via do incidente da quebra de sigilo profissional (art. 135º do Código de Processo Penal) ou da dispensa de sigilo profissional (art. 87º, nº4 do EOA).
Mas para que a correspondência seja subsumível à norma em questão, é necessário o cumprimento de uma série de requisitos[1]:
a) a comunicação terá de ser dirigida por um Advogado a outro causídico;
b) o subscritor da mesma terá, expressa e claramente, de referir que a mesma tem carácter de confidencialidade para os efeitos do art. 108º; e
c) o seu teor deverá ser efectivamente confidencial, em particular por dizer directamente respeito a assuntos confiados ao Advogado subscritor.
Caso o Advogado destinatário da comunicação confidencial entenda não ter condições para garantir a confidencialidade da comunicação, terão então de devolvê-la ao remetente, sem revelar a terceiros o respectivo conteúdo.
Trata-se, com efeito, e a nosso ver, de regime a que um Advogado deverá lançar mão com muita prudência e somente em casos absolutamente excepcionais, até porque, quer o subscritor, quer o destinatário da comunicação, estão totalmente impedidos de divulgar, a quem quer que seja, o seu conteúdo.
Contudo, também não podemos deixar de avançar que a correspondência em análise não está abrangida por este regime. É que o art. 108º do EOA, tal como o interpretámos, claramente não pretendeu abranger as mensagens de confidencialidade genéricas que usualmente são utilizadas em “modelos” ou “templates” de emails – como é o caso.
A menção do carácter confidencial daquilo que é transmitido tem que ser expresso e inequívoco, o que não acontece em qualquer dos emails enviados pelo Sr. Advogado consulente. Mais. Mesmo que por forçado raciocínio assim não se entendesse, a própria mensagem genérica de confidencialidade usada, na sua língua original (inglês), apenas refere que a mensagem enviada poderá, eventualmente, ser confidencial ou protegida (“may be privileged or otherwise protected from disclosure”). E isto é manifestamente insuficiente para cumprir os requisitos exigidos – sobretudo na necessidade de ser, de forma clara e inequívoca, atribuído carácter de absoluta e total confidencialidade ao teor dos emails enviados.
 
§2. Da sujeição ao dever de guardar sigilo profissional
 
Tendo concluído pela não aplicação do regime estabelecido no art. 108º do EOA, haverá agora que orientar a nossa análise para outro plano legal: a do sigilo profissional.
Este instituto jurídico representa a blindagem normativa e a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente.[2]
Aliás, bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “o dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade”[3].
Segundo entendimento já adoptado por anterior Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[4], existem três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever do Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:
“a) a indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente;
b) o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça;
c) a garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.”
O segredo profissional é, pois, um direito e uma obrigação fundamental e primordial do advogado. É parte essencial da função do Advogado ser (i) o depositário dos segredos do seu cliente (e de terceiros com quem o Advogado entra em contacto no desempenho dos seus serviços) bem como (ii) o destinatário de informações baseadas na confiança. Ora, sem a garantia de confidencialidade não pode existir confiança[5].Ainda assim, não poderemos esquecer que o dever de guardar sigilo não assenta apenas no vínculo de confiança em que se estabelece a relação Advogado-cliente mas, também, na natureza social da função que o advogadoexerce, enquanto interveniente na administração da justiça.
Conforme se tem escrito sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto do sigilo profissional, caso ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto os seus clientes, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.
Nesta medida, pode-se ler no art. 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional” que:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 – O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
 (…)”
Contudo, não se pode interpretar literalmente o conteúdo do nº1 do art. 87º do EOA pois se assim fosse, todos os factos – sem qualquer distinção – que chegassem ao conhecimento do Advogado estariam sempre sujeitos a sigilo. Tal interpretação maximalista, e, digamos, desenquadrada do espírito do sistema colocar-nos-ia perante soluções totalmente desprovidas de sentido.
Basta-nos ver que até os próprios factos transmitidos pelo cliente ao Advogado a fim de serem dados a conhecer em Juízo em sede de articulados processuais, estariam, como tal e a enveredar por uma interpretação apenas literal do regime do sigilo profissional, sempre sujeitos a esta obrigação – necessitando da respectiva dispensa sempre que algum Advogado quisesse construir até uma qualquer petição inicial -.
Com efeito, de tal forma difícil se tornaria o exercício da profissão, que quase nada um Advogado poderia fazer sem solicitar a dispensa do sigilo profissional.
De facto, não é isso que se pretende.
Pelo que, há que desbravar caminho e encontrar outros índices de interpretação do art. 87º, nº1.
Olhando para o regime jurídico existente mas, mais do que tudo, para o que tem a Lei em vista, quando se analisa o instituto do sigilo profissional, somos da opinião que, só serão sigilosos aqueles factos que não sejam do conhecimento público relativamente aos quais seja de presumir que quem os confiou ao Advogado, nomeadamente o seu cliente (ainda que não só, como poderá acontecer no caso paradigmático das negociações entre as partes, acompanhadas por Advogado), tinha um interesse objectivo, face à relação de confiança existente, em que se mantivessem reservados[6].
Não há, contudo, no EOA e demais legislação aplicável qualquer norma que proíba, sem mais, a divulgação do conteúdo de correspondência enviada por um Advogado a contraparte[7].
Melhor dizendo, estará sujeita a sigilo profissional a correspondência trocada entre mandatários, quando se verifique que do seu conteúdo, tendo em conta a relação de confiança existente entre as partes quanto à reserva dos factos transmitidos, exista um interesse objectivo em que esses factos se mantivessem reservados.
Situação típica será a das negociações encetadas entre mandatários, tal como prevêem as als. e) e f) do art. 87º, nº1 do EOA. Isto sem deixar esquecer que perante “negociações” no sentido útil da palavra, há-de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões[8].
Por contraposição, não estão abrangidos por tal dever de confidencialidade os factos transmitidos por um Advogado à contraparte com natureza meramente interpelatória, com o objectivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas, sem carácter negocial. O que nos parece ser o caso, em face da documentação remetida pelo Sr. Advogado consulente e analisada no âmbito da emissão do presente parecer.
Assim, entendemos que, a junção aos autos dos emails enviados pelo Sr. Advogado consulente em 20 de Janeiro de 2012 (às 19:43:21) e em 25 de Janeiro de 2012 (às 00:41:00), anexos à presente Consulta como Docs. 1 e 2, não estão abrangidos pelo dever de sigilo, nada obstando à sua revelação em sede de processo judicial.
 
Estamos, pois, em condições de traçar as devidas conclusões:
1.      Para que determinada correspondência fique abrangida pelo dever de reserva previsto no art. 108º do EOA, o seu subscritor terá, expressa e claramente, de referir que a mesma tem carácter de confidencialidade.
2.      Assim, entendemos que as menções genéricas ao eventual conteúdo confidencial de um email, utilizadas como “template” ou “modelo” por um Advogado, não são suficientes para concluir pela absoluta confidencialidade da correspondência.
3.      Não consta do EOA e demais legislação aplicável qualquer norma que proíba, sem mais, a divulgação do conteúdo de correspondência enviada por um Advogado a contraparte.
4.      Apenas está sujeita a sigilo profissional a correspondência trocada entre mandatários, quando se verifique que do seu conteúdo, tendo em conta a relação de confiança existente entre as partes quanto à reserva dos factos transmitidos exista um interesse objectivo em que esses factos se mantivessem reservados.
5.      Não estão abrangidos por este dever os factos transmitidos por um Advogado à contraparte com natureza meramente interpelatória, como sucede no presente caso, com o objectivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas, sem carácter negocial.
 
Junta: Cópia da correspondência referida no Parecer como Docs 1 e 2.
 

Lisboa, 30 de Janeiro de 2013
 
(O Assessor Jurídico do CDL)
 
Rui Souto
Concordo e homologo o parecer anterior, nos preciso termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 30 de Janeiro de 2013
 
(O Presidente do CDL)
 
Vasco Marques Correia



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[1] Esta posição tem sido igualmente seguida em processos de dispensa de sigilo profissional ao nível do Conselho Distrital de Lisboa nos quais tem sido levantada a questão da sujeição de correspondência ao art. 108º do EOA.
[2] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em 6.2.2002, e no qual foi relator o Dr José Mário Ferreira de Almeida.
[3] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996, p. 65
[4] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida, e aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003
[5] Cfr Código de Deontologia dos Advogados Europeus (versão portuguesa aprovada pela Deliberação do Conselho Geral n.º 2511/2007).
[6] Posição semelhante podemos encontrar em Rodrigo Santiago, Considerações acerca do regime estatutário do segredo profissional dos advogados”, Revista da Ordem dos Advogados, 57, Janeiro de 1997, p. 229.
 [7] Neste sentido, ver entre outros, o Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 21/2006, emitido em 4 de Janeiro de 2007 e o Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 1/09, nos quais fomos relatores, e que se encontram disponíveis para consulta no site da Ordem dos Advogados em www.oa.pt.
[8] cfr Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 77/01, no qual foi relator o Dr Bernardo Diniz de Ayala.

Rui Souto

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