Consulta 53/2012
Consulta n.º 53/2012
Assunto:
· Legitimidade da escusa para depor – Artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.
Questão
A Exma. Senhora Juiz de Direito do 1º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Cascais veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP), solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à legitimidade da escusa para depor apresentada pela Senhora Advogada, Dra. A.
No processo pendente naquele Tribunal sob o n.º - é arguido o Senhor Advogado Dr. B, titular da cédula profissional n.º - , acusado, em autoria material e na forma consumada, da prática de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º 1 e 218º, n.º 1 e 2, al. a) do Código Penal (CP), de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.º 1, als. a), b), c), d) e e) e n.º 3 do CP, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro e de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do CP.
Em sede de audiência de discussão e julgamento, a Senhora Dra. A escusou-se a depor invocando o dever de sigilo profissional a que está vinculada tendo o tribunal, em cumprimento do disposto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 135º CPP, ordenado a audição deste Conselho Distrital.
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
Ainda que dispensado, nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.
A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º do CPP. De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, dever) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa, perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar correctamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.
Cumprirá, pois, indagar se os factos acerca dos quais deverá incidir o pretendido depoimento da Senhora Advogada, Dra. A, se deverão ter por abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional.
Vejamos então.
Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, de que o dever de segredo profissional se reveste para o exercício da Advocacia.
Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência. Sem o segredo profissional, erigido em regra de ouro, não existe nem pode existir advocacia. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.
Como se tem escrito, sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou se não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.
O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que, para ser autêntica, tem de ser livre e independente.[2]
Aliás, e bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se abre.”[3]
Existem, segundo entendimento já perfilhado pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[4], três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:
a) A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente.
b) O interesse público da função do advogado enquanto agente activo da administração da justiça.
c) A garantia do papel do advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.
Assim, dispõe o artigo 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional”, o seguinte:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.
Em primeiro lugar, preceitua esta norma, no seu número 1, que “O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (...)”.
Com efeito, sob esta fórmula, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. Pode-se até dizer que, em certa medida, as demais regras previstas nas alíneas da mesma são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.
Traçadas as linhas gerais do regime legal em vigor, haverá agora que proceder à subsunção dos factos à lei.
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B, porquanto entendeu que os factos em apreço nos autos indiciavam suficientemente que:
“ C, faleceu como consequência de um acidente de viação que ocorreu no dia 31 de Dezembro de 2002.
Sucederam a C, como únicos herdeiros, D e E.
(…)
Na sequência daquele acidente de viação, foi instaurado um processo judicial com vista à obtenção de uma indemnização.
No âmbito da sua profissão, o arguido foi procurado por aqueles herdeiros, tendo em vista o prosseguimento desse processo, para o que aqueles subscreveram e entregaram ao arguido uma procuração em que lhe conferiam, poderes especiais para os representar e receber quantias que fossem devidas.
No decurso do processo que correu contra a companhia de Seguros Fidelidade Mundial, e do acordo estabelecido com aquela companhia, D e E tinham direito a receber uma indemnização no montante de 60 640,00, (sessenta mil, seiscentos e quarenta euros), valor da indemnização devida pelo acidente de viação.
Assim, em representação dos denunciados, o arguido, no dia 4 de Junho de 2008, recebeu da companhia de seguros Fidelidade Mundial, o cheque n.º 5340801155, emitido à ordem de D e E, respeitante à referida quantia de 60 640,00 euros, (…).
Na posse do referido cheque, o arguido visando a apropriação da quantia monetária no valor de 60 640,00 euros (…) procedeu a alterações, apondo um endosso no referido cheque.
(…)
No verso do cheque, o arguido com o seu punho, escreveu os nomes de D, E e F, como se tais assinaturas tivessem sido subscritas por tais pessoas, e pretendessem endossar o referido cheque.
Deste modo, fazendo crer ter sido assinado por tal pessoa, de forma a fazer crer que o referido cheque tinha sido validamente endossado por aquele, e que o mesmo servia como forma válida de pagamento.
Na posse do referido cheque, o arguido dirigiu-se a uma agência do Banco BPI.
Ali o arguido entregou o cheque acima referido, fazendo crer aos funcionários daquela entidade bancária que o mesmo lhe havia sido entregue pelo seu legítimo possuidor, e que o referido cheque tinha sido validamente endossado pelos seus legítimos titulares, e que o mesmo servia como forma válida de pagamento, procedendo ao depósito daquele cheque na conta n.º (…), de que o arguido é titular naquela instituição bancária.
O que fez sem consentimento nem autorização de qualquer dos herdeiros (…).
O arguido recebeu da entidade bancária a quantia de 60 640,00 (…), a qual veio a ser creditada na sua conta (…).
Quantia que o arguido devia ter entregue aos lesados e fez sua.
Não obstante interpelado, até à presente data, o arguido não entregou a quantia de 60 640,00 (…), apropriando-se da referida importância contra a vontade e sem consentimento dos lesados (…), integrando-a no seu património e usufruindo dela como se fosse sua. (…)”.
Dos elementos que foram colocados à nossa disposição e com interesse para a pronúncia a emitir, conclui-se que, em 14 de Julho de 2008, a Senhora Dra. A foi mandatada pela denunciante, E, para tratar das partilhas por morte da mãe.
Já no decurso do referido patrocínio e porque não obtinha junto do seu Advogado, o ora arguido, informação sobre o estado do processo que tinha por objecto a indemnização decorrente do acidente de viação que, em 31 de Dezembro de 2002, havia vitimado a sua mãe, E solicitou à Dra. A que obtivesse junto do ora arguido informações sobre o estado do mencionado processo.
Em sequência, a Senhora Dra. A encetou diversos contactos com o ora arguido.
E é, precisamente, sobre o teor das conversas que manteve com o ora arguido que o depoimento da Dra. A é pretendido.
Ora, não há dúvidas de que o depoimento a prestar incidirá sobre factos de que a Dra. A tomou conhecimento no exercício das suas funções de Advogada e por causa desse mesmo exercício e, como tal, indubitavelmente, abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional, por força do disposto na cláusula geral contida no n.º 1 do artigo 87º do EOA.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores ou melhores considerações, entendemos que a escusa para depor apresentada pela Senhora Advogada, Dra. A, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.
Sem prejuízo do exposto, e extravasando já o âmbito da pronúncia que nos foi solicitada, não terminaremos sem antes referir o seguinte.
Da documentação que instruiu o presente pedido de parecer, verifica-se que não só a Dra. A a queixa-crime apresentada pela ora denunciante, como da mesma fez constar o seu nome do rol de testemunhas.
E, tanto quanto se alcança dos documentos que foram colocados à nossa disposição, a Dra. A será ainda mandatária no processo no âmbito do qual pretende depor.
Ora, tal circunstância, só por si, impede-a de prestar o depoimento pretendido.
De facto, e conforme tem sido entendimento uniforme dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados e, nomeadamente, deste Conselho Distrital[5], um Advogado que tenha sido ou seja mandatário judicial num determinado processo nunca poderá depor como testemunha nesse mesmo processo, nem nunca lhe poderá ser concedida a dispensa do sigilo profissional para esse efeito.
Quanto a esta questão, no Parecer CG n.º E-950/1993, de 22 de Setembro de 1995, o seu Relator, o Ilustre Advogado Augusto Ferreira do Amaral, escreveu o seguinte:
“Não é admissível que se acumule a qualidade de julgador com a de parte, a de autor ou queixoso, de réu ou de arguido, a de testemunha ou perito com a de parte. Inúmeros são os preceitos que procuram assegurar a concretização deste princípio. Princípio que é intuitivo, como o é a proibição do incesto nas sociedades humanas.
Ora o Advogado a quem incumbe o patrocínio de algum dos interessados no processo confunde-se, na sua função, com o representado. O mandato é justamente uma figura que se caracteriza pela produção de efeitos dos actos do mandatário na esfera jurídica do mandante.
Em termos jurídicos, a actuação do mandatário é, em princípio, como se fosse exercida pelo mandante.
É pois em nome dum princípio geral do processo que o depoimento como testemunha do Advogado de qualquer das partes processuais não deve ser admitido.
Mas há ainda outra razão fundamental pela qual tal depoimento não pode ser considerado legal.
É que não parece compatível a função da testemunha no processo com a do Advogado de alguma das partes.
Com efeito, a testemunha tem como função e como dever a comunicação ao tribunal de todos os factos sobre que seja interrogada e de comunicá-los em termos totalmente isentos e objectivos.
O Advogado tem deveres processuais algo diferentes. É certo que ele é um participante na realização da Justiça. Mas é-o duma forma especial. Há algo de deliberadamente artificial na actuação que a lei prevê para o Advogado. Ele não é um simples observador isento, imparcial e objectivo. Ele é um activo e militante defensor dos interesses do representado.
O Advogado está sempre limitado, não apenas pela verdade, mas também pelo interesse da parte que representa. Muitas limitações tem a sua intervenção, quando um e outro princípio se chocam. O interesse do representado deve por ele ser salvaguardado em muitas circunstâncias contra uma regra absoluta da ilimitada revelação da verdade.
Ora, quem está investido nessa posição processual sui generis, que lhe comete o direito e mesmo o dever de reservar factos de que tenha conhecimento, desde que possa estar em causa o interesse do cliente, não pode ser uma testemunha, no verdadeiro sentido da palavra.
Não está no processo para revelar toda a verdade de que tenha conhecimento, mas sim para desempenhar duma forma especial, interessada e empenhada, a colaboração com a Justiça.
Não são conciliáveis as duas posições. Não parece pois admissível que o Advogado duma das partes do processo deponha como testemunha, enquanto detiver tais funções”.
No Parecer do CDF n.º P-12/2007, de 17 de Maio de 2007, foi entendido que:
“A génese de toda esta questão localiza-se no omisso, ou seja, não se encontra explicitamente determinado pela legislação processual aplicável, maxime, Código de Processo Civil, que existe incompatibilidade, ou impedimento, na questão em causa.
Ao verificarmos o disposto quanto à prova testemunhal, à inabilidade para depor, e, mais concretamente, à capacidade (ou incapacidade), e impedimentos, verifica-se não existir impedimento legal declarado, quanto à questão em causa, nem, tão pouco, ser considerado incapaz para testemunhar o advogado que é, simultaneamente, Mandatário e Testemunha nos mesmos autos, partindo-se do princípio que este não preencha os requisitos do artigo 616.º/1 do C.P.C.
Resultará da omissão uma porta aberta, ou seja, uma permissão?
Bastará a análise dos dispositivos que regem a parte processual civil, para se aferir da existência, ou não, de incompatibilidade e impedimento?
Somos do entender que não.
No caso em análise, pretende-se a prestação de depoimento como testemunha, em processo que se encontra a decorrer e, em virtude do qual, se encontra estabelecida uma relação jurídico-processual do Advogado com alguma das partes do processo.
É inaceitável autorizar um Advogado a depor em processo, no âmbito do qual se encontra constituído como mandatário.
Apesar de tal proibição não constar de norma expressa, seria a completa subversão do sistema processual e altamente desprestigiante para a Advocacia admitir tal hipótese.
Tem-se entendido que tal não é possível, pela simples razão que a assunção simultânea da qualidade de testemunha e mandatário no mesmo processo são, por natureza, tendo em conta os direitos e deveres que a lei a ambos atribui, incompatíveis”.
Tem-se igualmente entendido que todos estes princípios se aplicam a outras situações que, na sua essência, não são muito diferentes das que acabámos de referir.
Nesta linha, tem-se entendido que, mesmo quando o Advogado tenha iniciado a condução de determinado processo judicial, com procuração ou substabelecimento junto aos autos, não poderá, mesmo após a cessação do mandato, ser concedida ao Advogado autorização para depor nesse processo.
A este propósito, podemos ainda citar a título de exemplo, o referido pelo Bastonário Lopes Cardoso, in “O segredo profissional na Advocacia”, pág. 83:
“Não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trate de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que antes ocupara.”
Este é também o entendimento que tem sido seguido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados e citamos, a título de exemplo:
a)O Parecer do Conselho Geral de 30.10.1952, in ROA, 12-III/IV – 404 – “é sempre inadmissível que o Advogado deixe o patrocínio duma causa com o propósito de nela tomar a posição de testemunha.”
b O Parecer do Conselho Geral de 5.5.1954 in ROA, 14 a 16, 334: “deve o Advogado recusar-se a depor quando indicado como testemunha e processo ao qual esteja junta procuração a que haja renunciado.”
c)O Acórdão do Conselho Superior de 23.10.1951, in ROA, 11 – III/IV: “constitui infracção disciplinar o facto de o Advogado deixar de patrocinar o constituinte, com o propósito de ser testemunha.”
Quanto à questão da cumulação das qualidades de mandatário e testemunha nos mesmos autos, citamos, ainda, o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.03.2013, disponível em www.dgsi.pt, que tem subjacente a factualidade que, resumidamente, passamos a enunciar.
No âmbito do inquérito n.º -, pendente na 8ª Secção do DIAP da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste – Ministério Público de Oeiras, foi ordenada a inquirição de um Senhor Advogado, o qual se escusou a prestar depoimento em virtude de ser mandatário dos arguidos.
Perante tal recusa, o Ministério Público, considerando indispensável à investigação do crime em causa a inquirição da referida testemunha e ser de prevalecer o interesse público da descoberta da verdade sobre a manutenção do segredo profissional, solicitou que este Conselho se pronunciasse sobre a legitimidade ou ilegitimidade da escusa, tendo sido emitido Parecer que concluiu pela respectiva legitimidade.
Reconhecendo a legitimidade formal da escusa, foi suscitada a intervenção do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 135º, n.º 3 do CPP.
O Tribunal da Relação da Lisboa, apoiando-se quer em jurisprudência dos Tribunais Superiores quer em Pareceres de Ordem dos Advogados, concluiu que “se mostra inadmissível impor a um advogado que deponha como testemunha num processo em que figura como mandatário do (s) arguido (s), sob pena de subversão do próprio sistema processual penal”.
CONCLUSÕES:
A existência do dever de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo
87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
Ainda que dispensado, nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.
A lei processual penal, porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º do CPP.
De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, dever) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional.
Deduzida a escusa, perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP.
Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
No caso vertente, dúvidas não subsistem de que o depoimento a prestar incidirá sobre factos de que a Senhora Advogada, Dra. A, tomou conhecimento no exercício das suas funções de Advogada e por causa desse mesmo exercício e, como tal, indubitavelmente, abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional, por força do disposto na cláusula geral contida no n.º 1 do artigo 87º do EOA.
Pelo exposto, entendemos que a escusa para depor invocada pela Senhora Advogada, Dra. A, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.
Dos documentos que foram colocados à nossa disposição decorre ainda que a Senhora Dra. A é mandatária no processo no âmbito do qual pretende depor.
Ora, tal circunstância, só por si, impede-a de prestar o depoimento pretendido.
De facto, e conforme tem sido entendimento uniforme dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados e, nomeadamente, deste Conselho Distrital, um Advogado que tenha sido ou seja mandatário judicial num determinado processo não poderá depor como testemunha nesse mesmo processo, nem nunca lhe poderá ser concedida a dispensa do sigilo profissional para esse efeito.
Lisboa, 26 de Março de 2013.
A Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
Notifique-se.
Lisboa, 10 de Abril de 2013.
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
Paulo de Sá e Cunha
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[1] Também aplicável ao processo civil – vide artigos 519º, n.º 3 al. b) e n.º 4, e 618º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.
[2] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em 6.2.2002, e no qual foi relator o Dr. José Mário Ferreira de Almeida.
[3] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996, p. 65
[4] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003
[5] Citam-se, a título de exemplo, as decisões proferidas no âmbito dos pedidos de dispensa n.ºs 60/07, 53/08, 100/08, 246/08, 191/09, 126/09, 114/09, 100/09, 50/09, 36/09, 1/10, 92/10, 104/10, 211/10, 65/11, 74/11, 87/11, 174/11, 40/12, 118/12, 171/12, 214/12, 227/12, 285/12, 311/12 e 37/13.
Sandra Barroso
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