Pareceres do CRLisboa

Consulta 46/2012

 
Consulta n.º 46/2012
 
Assunto:        
·         Legitimidade da escusa para depor – Artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.
 
Questão
 
O Exmo. Senhor Juiz de Direito do 3º Juízo Criminal de Lisboa veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP), solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado, Dr. A.
 
O Senhor Dr. A foi arrolado como testemunha no processo-crime n.º - , pela arguida B.
O processo-crime em curso tem por objecto a prática de factos que, a serem provados, poderão preencher a previsão legal do crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º, n.º1 do Código Penal.
 
Tendo tomado conhecimento de que foi arrolado como testemunha nos autos, o Senhor Dr. A dirigiu um requerimento ao Tribunal em que, em síntese, alega que “ (…) o conhecimento que possa ter sobre os factos em apreço está a coberto pelo sigilo profissional” e, em sequência, requer a dispensa da sua audição como testemunha.
 
E é neste contexto que é solicitada a pronúncia deste Conselho.
 
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
 
A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
 
Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.
 
A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º do CPP. De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
 
Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar correctamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.
 
Cumprirá, pois, indagar se os factos acerca dos quais deverá incidir o pretendido depoimento do Senhor Advogado Dr. A se deverão ter por abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional.
 
Vejamos então.
 
Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.
 
 
Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência. Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, advocacia. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.
 
Como se tem escrito, sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.
 
O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente.[2]
 
Aliás, e bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se abre.”[3]
 
 
 
Existem, segundo entendimento já perfilhado pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[4], três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:
a)A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente.
b)O interesse público da função do advogado enquanto agente activo da administração da justiça.
c)A garantia do papel do advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.
 
Assim, dispõe o artigo 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional”, o seguinte:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
 
 
 
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.
 
Em primeiro lugar, preceitua esta norma, no seu número 1, que “O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (...)”.
 
Com efeito, sob esta fórmula, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. Pode-se até dizer que, em certa medida, as demais regras previstas nas alíneas da mesma são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.
 
 
Traçadas as linhas gerais do regime legal em vigor, haverá agora que proceder à subsunção dos factos à lei.
 
No processo actualmente em curso, a arguida é acusada da prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido nos termos do artigo 365º, n.º 1 do Código Penal.
 
Pode ler-se na acusação deduzida pelo Ministério Público, nomeadamente, o seguinte:
“ (…) A arguida foi patrocinada durante vários anos e em vários processos de natureza criminal e civil por C como Advogado (…).
A partir do ano de 1999 a arguida começou a faltar aos compromissos que assumiu com este advogado, deixando a mesma de lhe pagar algumas quantias que o mesmo lhe solicitava a título de honorários pelos serviços que prestava.
A certa altura a arguida deixou mesmo de responder às solicitações que o referido advogado lhe fazia para se encontrarem e acertarem as contas, pelo que este último acabou por intentar uma acção contra a arguida para cobrança daqueles honorários. Tendo esta acção corrido seus temos sob o número - , na 1ª secção do 2º juízo cível da comarca de Lisboa.
Na referida acção a arguida foi condenada a pagar a quantia de € 4.623,76 a título de honorários (…).
No seguimento desta condenação da arguida, que transitou em julgado em 13.12.2007, o referido advogado procedeu à execução daquela sentença (…).
(…)
Não obstante, em 19 de Outubro de 2009, a arguida apresentou na Ordem dos Advogados uma participação contra C (…).
Nesta participação, a arguida imputa factos graves ao referido advogado, insinuando nomeadamente que o mesmo se teria apropriado de quantias e valores que a arguida lhe entregou a título de honorários já que este advogado se teria negado a reconhecer que já tinha recebido tais quantias da arguida, o que teria feito com o intuito de exigir de novo o pagamento dessas quantias.
 
 

Para além disso, nessa participação a arguida refere ainda que o referido advogado actuou em claro desrespeito do dever de honestidade e rectidão para com a participante concluindo que o seu comportamento não se revelou adequado às responsabilidades da função que exerce, pondo assim em causa a dignidade da classe.
(…)
Porém, os factos que a arguida imputou a este advogado na referida participação não correspondiam à realidade, o que determinou o arquivamento do referido processo disciplinar.
A arguida apresentou a referida participação agindo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que estava a falsear a realidade dos factos que imputou ao referido advogado, estando ciente que a apresentação daquela participação na Ordem dos Advogados iria determinar a instauração de procedimento disciplinar contra o referido advogado, como efectivamente sucedeu, e que tal poderia afectar a honra e consideração profissional de que o mesmo goza. (…).
 
A arguida pretende ouvir a testemunha Dr. A aos seguintes factos:
 
A ora arguida não pretendia fazer qualquer queixa disciplinar contra o ora denunciante C, designadamente não queria enviar qualquer carta à Ordem dos Advogados, e tal ocorreu por insistência do seu marido D?
A arguida tomou conselho, ou não, sobre o assunto junto da testemunha A? Em caso afirmativo, qual o seu conselho?
Quem redigiu a carta remetida à Ordem dos Advogados, a qual foi assinada pela arguida?
A testemunha A teve conhecimento prévio ou não do teor da carta e concordou ou não com o seu envio?
A carta da arguida visava apenas denunciar uma conduta desadequada na perspectiva daquela, por parte do ora denunciante, ou não?


 
No requerimento que dirigiu ao Tribunal, o Senhor Dr. A esclarece que patrocinou a ora arguida na acção de honorários contra esta instaurada pelo ora denunciante e ainda que, na fase de inquérito do processo-crime em curso e no âmbito do qual o seu depoimento é agora pretendido, acompanhou, por duas vezes, a ora arguida à Polícia de Segurança Pública para prestação de declarações.
 
Considerando a razão de ciência do Senhor Dr. A, não subsistem dúvidas, quanto a nós, de que estão em causa factos conhecidos no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício e, como tal, abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional por força do disposto no n.º 1 do artigo 87º do EOA.
E, assim sendo, não poderá o Senhor Dr. A prestar o depoimento pretendido sem estar munido da competente autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA.
 
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores ou melhores considerações, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado, Dr. A, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.
 
CONCLUSÕES:          
 
A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
Ainda que dispensado, nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.
 
 
A lei processual penal, porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º do CPP.
De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional.
Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP.
Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
Considerando a razão de ciência do Senhor Advogado, Dr. A, relativamente aos factos sobre os quais se pretenda incida o seu depoimento, não subsistem dúvidas de que estão em causa factos conhecidos no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício e, como tal, abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional, por força do disposto no n.º 1 do artigo 87º do EOA.
E, assim sendo, não poderá o Senhor Advogado, Dr. A, prestar o depoimento pretendido sem estar munido da competente autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA.
Pelo exposto, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado, Dr. A, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.
 
 
Lisboa, 5 de Dezembro de 2012.
 
 

A Assessora Jurídica do C.D.L.
 
 
Sandra Barroso
 
Concordo e homologo o parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
 
Notifique-se.
 
Lisboa, 11 de Dezembro de 2012.
 
 
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
 
 
Paulo de Sá e Cunha
 

--------------------------------------------------------------------------------

[1] Também aplicável ao processo civil – vide artigos 519º, n.º 3 al. b) e n.º 4, e 618º, n.º 3, ambos doCódigo de Processo Civil.
[2] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em 6.2.2002, e no qual foi relator o Dr. José Mário Ferreira de Almeida.
[3] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996,p. 65
[4] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003

Sandra Barroso

Topo