Consulta nº 06/2012
Consulta n.º 6/2012
Assunto:
• Segredo Profissional – Artigo 87º do EOA.
Dos Factos
Veio o Exmo. Senhor Juiz titular do processo n.º -, pendente no Tribunal de Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, Sintra – Juízo do Trabalho, solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto a uma situação de eventual violação do sigilo profissional.
Pretende o Exmo. Senhor Juiz ver esclarecida a questão de saber se os factos invocados pela Ré, X Lda., nos artigos 1º a 18º, 20º e 21º da Contestação e os documentos juntos à Contestação sob os n.ºs 1, 2, 3, 13 e 14, violam o dever de sigilo a que o mandatário da Ré, Dr. A, possa, eventualmente, estar vinculado.
Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa
Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.
A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das sociedades de advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.
Ora, a matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que há que proceder à emissão de parecer sobre a questão colocada.
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
A prossecução da Justiça e do Direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam necessariamente que qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).
O regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, desenhado no artigo 87º do EOA.
O n.º 1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira regra geral do instituto jurídico-deontológico.
Aí se pode ler que “ O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Pode até afirmar-se, em certa medida, que as demais regras previstas nas diversas alíneas do n.º 1 são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.
Mas, o que seja segredo tem de ser aferido por três vias:
1. pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
2. pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
3. pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.
A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.
Em nossa opinião, só serão sigilosos aqueles factos relativamente aos quais seja de presumir que, quem os confiou ao Advogado, nomeadamente o seu cliente, tinha um interesse objectivo, face à relação existente, em que se mantivessem reservados.
Contudo, e apesar de a tutela dos interesses do cliente ser um dos fundamentos do sigilo profissional, a verdade é que a latitude deste dever deontológico transcende a mera relação Advogado-cliente, estendendo-se, no que tange ao Advogado, a:
1. factos que, por força de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, qualquer colega, obrigado quanto aos mesmos factos ao segredo profissional, lhe tenha comunicado – alínea b);
2. factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração – alínea c);
3. factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante - alínea d);
4. factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise por termo ao diferendo em litígio – alínea e);
5. factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, e em que tenha intervindo – alínea f).
Mas, ainda nestas relações com outras pessoas que não o cliente, não podemos perder de vista as balizas com que delimitámos o sigilo profissional.
Isto é, deverá sempre subsistir um interesse objectivo, face à relação estabelecida e aos próprios factos em si, na sua manutenção de uma situação de confidencialidade – porque só deverá ser sujeito a sigilo aquilo que é, verdadeiramente sigiloso.
Traçadas as linhas gerais que irão orientar o nosso pensamento, passemos de seguida à questão que ora nos ocupa, atendendo, estritamente, aos elementos que foram colocados à nossa disposição.
Os documentos juntos à Contestação sob o n.ºs 1, 2, 3, 13 e 14, plasmam as negociações encetadas entre as partes para a resolução extrajudicial do litígio que ora as opõe. E estas negociações vieram a malograr-se.
Tanto quanto se alcança, os contactos entre as partes foram estabelecidos, ou directamente entre o Senhor Dr. A e a Senhora Dra. B, ou directamente entre a ora Autora, já representada pela Dra. B, e a ora Ré.
E, neste contexto, estarão os documentos juntos à Contestação abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional?
Não consta nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor uma proibição genérica de revelação da correspondência trocada ou subscrita por Advogado.
Existe sim essa proibição quando do teor de tal correspondência constem factos sujeitos a sigilo profissional, já que o sigilo profissional respeita a factos.
Isso mesmo prescreve o n.º 3 do artigo 87º do EOA – “o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”.
Portanto, não é a mera circunstância de determinada correspondência se mostrar subscrita ou dirigida a Advogado que, só por si, submete a referida correspondência ao regime do sigilo profissional.
A correspondência subscrita ou dirigida a Advogado só ficará sujeita ao regime do sigilo profissional se contiver factos, em si mesmos, sigilosos.
No caso concreto, os mencionados documentos plasmam as negociações malogradas encetadas entre as partes.
Pelo que, quanto à correspondência trocada directamente entre os Advogados das partes (Doc. 2, 3, 13), não há dúvidas de que a mesma se encontra abrangida pela esfera de protecção do sigilo profissional, caindo directamente na previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 87º do EOA.
E o que dizer dos docs. 1 e 14, subscritos pela Dra. B e dirigidos directamente à ora Ré?
A vinculação sigilosa impõe-se, também e sempre, quando nas negociações intervém apenas um Advogado.
O que equivale a dizer que, quanto à correspondência em causa, está a Dra. B obrigada a sigilo.
É a consequência lógica da relação de confiança que se estabelece também com a contraparte quando com ela se contacta e negoceia.
E, se assim é, também o Dr.A estará, quanto a essa mesma correspondência, obrigado a sigilo, o que se impõe, desde logo pelos mesmos imperativos de ordem deontológica e até em homenagem ao principio da igualdade das partes (e, bem assim, dos advogados que assumam o seu patrocínio). Seria inconcebível, nas circunstâncias supra descritas, que a Dra. B não pudesse livremente revelar essa correspondência e o Advogado da contraparte, Dr. A, o pudesse fazer.
Seria chocante a desigualdade de meios probatórios e o consequente prejuízo para a parte que optou por se fazer acompanhar por Advogado e o correlativo “prémio” para quem não optara por esse acompanhamento.
O exposto leva-nos a concluir que, para poder legitimamente juntar à Contestação os docs. 1, 2, 3, 13 e 14, carecia o Dr. A da autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA.
Ora, no caso concreto, não terá sido requerida a autorização prévia exigida pelo regime legal em vigor. Assim, com rigor processual, os mencionados documentos estão sujeitos à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do EOA, não podendo, consequentemente, fazer prova em juízo.
Contudo, é aos Tribunais que pertence a jurisdição e, por isso, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida.
Sem prejuízo do entendimento atrás perfilhado, importa acrescentar o seguinte.
Tal como decorre do artigo 11º, lido em articulação com o artigo 10º, ambos da contestação, a Ré defende que as negociações mantidas entre as partes não consubstanciam negociações malogradas, mas, digamos, negociações levadas a bom termo.
Contudo, a classificação das negociações como malogradas ou não, não contende, em absoluto, com a conclusão a que anteriormente chegámos.
De facto, mesmo que se entenda estarem em causa negociações não malogradas, sempre o Dr. A estaria obrigado a sigilo por força da cláusula geral contida no n.º 1 do artigo 87º do EOA.
A mencionada correspondência contém actos, manifestações de vontade, posições e fundamentos das partes quanto à questão ora controvertida nos autos e que chegaram ao conhecimento do Dr. A no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício e, como tal, indubitavelmente abrangidos pelo sigilo profissional.
Em suma, quer se entenda estarem em causa negociações malogradas, quer se entende estarem em causa negociações levadas a bom termo, deveria o Dr. A ter requerido a competente autorização prévia ao Senhor Presidente do Conselho para poder juntar à Contestação os docs. 1, 2, 3, 13 e 14.
E, se a correspondência trocada entre as partes, por intermédio dos respectivos Advogados, está sujeita a sigilo, também o Dr. A não poderia, evidentemente, no articulado que subscreveu, transcrever o conteúdo dessa mesma correspondência como fez, sem estar munido da competente autorização prévia.
É que, reportando-se, como já vimos, o sigilo profissional a factos, encontra-se sujeita a autorização prévia do Senhor Presidente do Conselho Distrital ou do Vogal com poderes delegados não só a revelação de documentos e outros meios de prova sujeitos a sigilo como também, e sobretudo, a alegação de factos abrangidos pelo dever de guardar sigilo.
Assim, todos os factos articulados e referentes, na tese da Ré, ao contrato de transacção celebrado entre as partes e, consequentemente, as conclusões que a Ré extrai desse mesmo contrato, contidos nos artigos 2º a 18º, 20º e 21º da Contestação, constituem, só por si, violação da norma contida no artigo 87º do EOA.
Pelo que, consequentemente, os factos vertidos nos mencionados artigos deveriam, a nosso ver, ser cominados da sanção de “não escritos”, já que está em causa a prática de um acto proibido por lei.
Mas, conforme já dissemos, só aos Tribunais pertence a função jurisdicional.
É este, s.m.o., o nosso entendimento quanto à questão que nos foi colocada.
CONCLUSÕES:
1. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 87º do EOA, o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2. Assim, encontra-se sujeita a autorização prévia do Senhor Presidente do Conselho Distrital ou do Vogal com poderes delegados para o efeito não só a revelação de documentos e outros meios de prova sujeitos a sigilo como também, e sobretudo, a alegação de factos abrangidos pelo dever de sigilo.
3. Os documentos juntos à Contestação sob os n.ºs 1, 2, 3, 13 e 14 estão abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional e, como tal, a sua junção aos autos pressuporia que o Senhor Advogado, Dr. A, estivesse munido da autorização prévia a que alude o n.º 4 do artigo 87º do EOA.
4. Contudo, no caso concreto, não terá sido requerida a autorização prévia exigida pelo regime legal em vigor.
5. Assim, com rigor processual, os mencionados documentos estão sujeitos à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do EOA, não podendo, consequentemente, fazer prova em juízo.
6. Contudo, é aos Tribunais que pertence a jurisdição e, por isso, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida.
7. E, se a correspondência trocada entre as partes, por intermédio dos respectivos Advogados, está sujeita a sigilo, também o Dr. A não poderia no articulado que subscreveu transcrever o conteúdo dessa mesma correspondência, como fez, sem para tanto estar munido da necessária autorização prévia.
8. Assim, todos os factos articulados e referentes, na tese da Ré, ao contrato de transacção celebrado entre as partes e, consequentemente, as conclusões que a Ré extrai desse mesmo contrato, contidos nos artigos 2º a 18º, 20º e 21º da Contestação, constituem, só por si, violação da norma contida no artigo 87º do EOA.
9. Pelo que, consequentemente, os factos vertidos nos mencionados artigos deveriam, a nosso ver, ser cominados da sanção de “não escritos”, já que está em causa a prática de um acto proibido por lei.
Notifique-se.
Lisboa, 26 de Outubro de 2012.
A Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 5 de Novembro de 2012.
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
Paulo de Sá e Cunha
Sandra Barroso
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