Pareceres do CRLisboa

CONSULTA Nº 10/2009

Consulta n.º 10/2009

Questão

Através do ofício n.º ...., datado de ... (entrada com o número de registo ...de ....), a Senhora Juiz da ............ veio solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa a emissão de parecer quanto a necessidade de autorização prévia para a utilização como meio de prova do documento que constitui fls. 156 dos autos.

O documento em causa é uma carta que o então mandatário da ora Ré, Dr. A, enviou ao então e actual mandatário do ora Autor, Dr. B

Tal documento foi junto aos autos, em Julho de 2008, pelo Dr. B, sem autorização prévia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

A título preliminar, nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de sigilo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.

 

Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir Advocacia. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente.

Neste sentido, escreve o Dr. António Arnaut que “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou simples consulente, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um sésamo que nunca se abre”.

O fundamento ético-jurídico deste dever, não está, no entanto, confinado à relação contratual estabelecida entre o Advogado e o seu cliente.
Bem pelo contrário, em larga medida ultrapassa essa mera relação entre as partes.

A prossecução da justiça e do direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam que, necessariamente, qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado, disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).

 

Entendemos que o fundamento ético-jurídico do dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do Advogado para com o cliente, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público.

Conforme é, aliás, jurisprudência da Ordem dos Advogados, “o segredo profissional tem carácter social ou de ordem pública e não natureza contratual”.

O regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, desenhado no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

O n.º 1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira regra geral do instituto jurídico-deontológico. Aí se pode ler que “ O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.

Pode até dizer-se que, em certa medida, as demais regras previstas nas diversas alíneas do n.º 1, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no E.O.A. para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.

Mas, o que seja segredo tem de ser aferido por três vias:
1. pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
2. pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
3. pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

Pode, em certos casos, matéria que, em si, não seria objecto de segredo, como por exemplo, o facto do cliente ter consultado o Advogado, estar abrangida afinal por aquele dever, bastando, para tanto, que haja um interesse relevante para o cliente, em que não se saiba que fez essa consulta, para além, naturalmente, do carácter sigiloso do teor da consulta em si mesmo.

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.
Em nossa opinião, só serão sigilosos aqueles factos relativamente aos quais seja de presumir que, quem os confiou ao Advogado, nomeadamente o seu cliente, tinha um interesse objectivo, face à relação existente, em que se mantivessem reservados.

Contudo, e apesar do cliente ser a fonte básica dos factos que ficam sujeitos a sigilo profissional, a esfera de protecção desta obrigação estatutária vai além da mera relação Advogado-cliente, estendendo-se, no que tange ao Advogado, a:
1. factos que, por força de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, qualquer colega, obrigado quanto aos mesmos factos ao segredo profissional, lhe tenha comunicado – alínea b);
2. factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração – alínea c);
3. factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante - alínea d);
4. factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise por termo ao diferendo em litígio – alínea e);
5. factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, e que tenha intervindo – alínea f).

Mas, ainda nestas relações com outras pessoas que não o cliente, não podemos perder de vista as balizas com que delimitámos o sigilo profissional.
Isto é, deverá sempre subsistir um interesse objectivo, face à relação estabelecida e aos próprios factos em si, na sua manutenção de uma situação de confidencialidade – porque só deverá ser sujeito a sigilo aquilo que é, verdadeiramente sigiloso.

Traçadas as linhas gerais que irão orientar o nosso pensamento, passemos de seguida à análise do caso concreto.

O documento constante fls. 156 dos autos contém factos cobertos pelo sigilo?

Antes de mais, diga-se que não consta, nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor, uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada entre Advogados.

A correspondência trocada entre Advogados só estará abrangida pela obrigação de guardar sigilo profissional se contiver factos eles mesmos sujeitos a essa sagrada obrigação.
Isso mesmo preceitua n.º 3 do artigo 87º do E.O.A. que nos diz que “ o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”.

Partindo deste pressuposto, entendemos que o documento em causa contém actos, manifestações de vontade, posições e fundamentos da ora Ré, quanto a aspectos inerentes ao litígio actualmente em discussão na acção pendente nesse Tribunal e, por conseguinte, o referido documento está coberto pelo sigilo.

E, assim sendo, a sua utilização em juízo pressuporia, tal como exigido pelo n.º 4 do artigo 87º do EOA, autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital de Lisboa ou do membro do Conselho a quem tenha delegado poderes.
O que, no caso concreto, não aconteceu.

Assim, com rigor processual, o documento em causa não pode ser utilizado em juízo como meio de prova dos factos sigilosos nele contidos, estando sujeito à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do E.O.A., que, por facilidade de raciocínio a seguir reproduzimos:
“5. Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”.

Contudo, é aos Tribunais que pertence a jurisdição e, por isso, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida.

CONCLUSÕES:

1. Não consta, nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor, uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada entre Advogados.

2. A correspondência trocada entre Advogados só estará abrangida pela obrigação de guardar sigilo profissional se contiver factos eles mesmos sujeitos a essa sagrada obrigação.

 

3. Isso mesmo preceitua n.º 3 do artigo 87º do E.O.A. que nos diz que “ o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”.

4. Partindo deste pressuposto, entendemos que o documento constante de fls. 156, dos autos contém actos, manifestações de vontade, posições e fundamentos da ora Ré, quanto a aspectos inerentes ao litígio actualmente em discussão na acção pendente nesse Tribunal e, por conseguinte, o referido documento está coberto pelo sigilo.

5. Assim sendo, a sua utilização em juízo pressuporia, tal como exigido pelo n.º 4 do artigo 87º do EOA, autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital de Lisboa ou do membro do Conselho a quem tenha delegado poderes.

6. O que, no caso concreto, não aconteceu.

7. Assim, com rigor processual, o documento em causa não pode ser utilizado em juízo como meio de prova dos factos sigilosos nele contidos, estando sujeito à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do E.O.A.

8. Contudo, é aos Tribunais que pertence a jurisdição e, por isso, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida.

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de Março de 2009

A Assessora Jurídica do C.D.L.

Sandra Barroso

Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Lisboa,

O Vice-Presidente do C.D.L.
(por delegação de poderes delegados de 4 de Fevereiro de 2008)

Jaime Medeiros

Sandra Barroso

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