Pareceres do CRLisboa

Consulta Nº 29/2009

Consulta n.º 29/2009

Âmbito da consulta
Foi solicitada ao Conselho Distrital de Lisboa a emissão de parecer sobre uma questão específica em matéria de acções encobertas de investigação criminal.
Pretende-se ver esclarecida a seguinte questão:
Em que circunstâncias, e sob que regras, um advogado no exercício da sua actividade profissional pode actuar em concertação com as autoridades judiciárias, desempenhando o papel de agente “encoberto”, em processo pendente onde está formalmente constituído mandatário?

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

I – Enquadramento geral
A questão para a qual se solicita a elaboração do presente parecer está delineada com a clareza devida e subsume-se no artigo 50º, n.º 1, alínea f), do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro), segundo o qual compete aos conselhos distritais “pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional”.
A análise da questão circunscreve-se, assim, à actuação do advogado no exercício da sua actividade profissional, ou seja, à densificação sob o ponto de vista deontológico das particulares regras de conduta a que está vinculado o cidadão que, sendo advogado, e nessa qualidade, utilize o seu estatuto de advogado para a obtenção de provas no âmbito de uma investigação criminal.
Para tanto, é essencial relembrar que os especiais deveres e direitos reservados ao exercício da advocacia encontram a sua génese no interesse público que tal actividade representa no contexto de uma sociedade democrática.
Não há Estado de Direito sem Justiça, não há Justiça sem Advocacia, não há verdadeira Advocacia sem independência, lealdade e dever de sigilo profissional.

II – As Acções Encobertas
A Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, designada por Regime Jurídico das Acções Encobertas para Fins de Prevenção e Repressão Criminal, regula o recurso a formas encobertas de actuação enquanto reforço da eficácia da investigação criminal por parte das autoridades, bem como os crimes em que tal recurso excepcional é passível de utilização.
Assim, e de acordo com a definição do nº 2 do artigo 1º do citado diploma, “consideram-se acções encobertas aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade.”
O que interessa, nesta sede, analisar é se uma actuação deste tipo, que – obviamente cumpridos os requisitos legais – será lícita para a universalidade dos cidadãos poderá também ser prosseguida por aquele que, para além das obrigações gerais decorrentes do estatuto de cidadão, está ainda subordinado ao específico conjunto de deveres que compõem o seu estatuto profissional de advogado.
A imposição estatutária que exige ao advogado “um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce” espelha a relevância que o “ser” e o “parecer” têm no exercício profissional.
Achando-se a concreta questão aqui colocada circunscrita ao “dever ser” de âmbito profissional, e aí nos situaremos, não perdendo, todavia, o horizonte mais vasto que a preservação da imagem pública do advogado implica, como face da mesma moeda que garante e justifica as prerrogativas no exercício da advocacia, nomeadamente o dever de sigilo profissional.
O recurso, cada vez mais frequente, a formas de investigação criminal concertadas que implicam a colaboração de cidadãos nos moldes descritos na citada Lei nº 101/2001 de 25 de Agosto, suscita, por si só, relevantes questões éticas e morais.
O facto de estarem especificamente elencados no seu artigo 2º os únicos crimes em que é lícita a utilização de tais “agentes”, é demonstrativo da sua excepcionalidade.
Tanto a doutrina como a jurisprudência têm sido concordantes na tentativa de estabelecer critérios apertados de admissibilidade para este tipo de actuações, subordinando-as aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, exigindo sempre, tanto a prévia autorização, como o controlo efectivo por parte da autoridade judiciária e judicial.
Neste sentido tem andado a jurisprudência constitucional, tal como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sublinhando a inatendibilidade da prova obtida em desrespeito pelo princípio do fair trial ou do due process.
Considerando que as acções encobertas são um meio de obtenção de prova, pois visam a detecção de indícios da prática de um crime, distinguem-se dos meios de prova por constituírem um meio de aquisição para o processo de uma prova “pré-existente” e, em regra, contemporânea ou preparatória do crime.
Logo, será completamente inadmissível qualquer auxílio relevante, incitamento ou provocação à realização de um acto criminoso, visto que deixaríamos de estar perante um meio de obtenção de prova para nos depararmos com um autêntico meio de “fabricação” ou de “facilitação” de prova, e por isso absolutamente reprovável e ilícito.
O Supremo Tribunal de Justiça é claro ao dizer que “seria imoral que, num Estado de Direito, se fosse punir aquele que um agente estadual induzisse ou instigasse a delinquir”.
Pode, pois, concluir-se que a prova obtida unicamente pela acção do “agente provocador” é ilegítima e ilícita, pelo grave desrespeito aos mais elementares direitos de dignidade humana que representa, sob pena de assim se desrespeitarem os principais fundamentos da justiça penal.
Se este tipo de actuação está vedado a qualquer cidadão, ainda que investigador policial, certamente também assim será, por maioria de razão, no caso particular dos advogados em exercício de funções.

III – A Legitimidade ou a Ilegitimidade da Colaboração do Advogado
Afastada que está qualquer legitimidade de actuação do advogado, ou de quem quer que seja, enquanto “agente provocador”, cumpre analisar essa mesma colaboração na investigação no respeito pelos estritos requisitos legais exigidos para as acções encobertas, ou seja para o mero “agente infiltrado” ou “agente encoberto”.
Não cuidamos aqui de analisar a participação do advogado enquanto cidadão indiferenciado, que poderia exercer uma miríade de profissões indiferentes no caso ou, até mesmo, desconhecidas dos suspeitos.
A questão ora suscitada cinge-se à colaboração do advogado nessa específica e concreta qualidade, isto é, quando a sua cooperação com as autoridades implica a aproximação à actividade criminosa, e aos seus agentes, utilizando precisamente o estatuto e o pretexto de ser advogado.
Mais aguda se tornará a questão quando a colaboração do advogado permite a obtenção de provas que de outra forma não poderiam ser alcançadas, possibilitando, assim, a condenação posterior do infractor e a punição dessas acções em que o advogado participou.
É leal ser e fazer-se passar por advogado e depois trair a confiança de conversas tidas precisamente nessa qualidade? Ou, face à independência que deve ter o advogado, pode admitir-se que o mesmo actue sob o controlo da Polícia Judiciária?
Como já foi referido, o particular núcleo de direitos e deveres consubstanciado nas regras deontológicas a que os advogados estão sujeitos, implica uma abordagem especialmente cuidada desta matéria, na tentativa de perceber quais os comportamentos profissionalmente admissíveis para um advogado em matéria de eventual participação em acções encobertas.
De entre os deveres impostos ao advogado, enquanto garante imprescindível da realização da justiça, relevam especialmente os deveres de independência, lealdade e o dever de sigilo profissional.
Concretamente nos termos do art. 76.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável” e “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão”.
Será a actuação de advogado como agente encoberto conciliável com o exercício da advocacia?
Será que essa actuação, essa actividade, a coberto do estatuto próprio de advogado, não afecta a isenção, a independência e a dignidade da profissão?
As respostas a estas questões são de meridiana clareza.
Concretamente, também, nos termos do art. 84.º da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, “o advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.
Será que age livre de qualquer pressão o advogado agente encoberto controlado pela Polícia Judiciária?
Será que nessa sua actuação dependente de controlo não terá que agradar a terceiros?
Será que não está sujeito a influências exteriores?
Não perde a independência?
Igualmente aqui as respostas são de meridiana clareza.
Também é entendimento pacífico na Ordem que as normas que proíbem a revelação de factos abrangidos pelo segredo profissional estatutariamente imposto ao advogado são de interesse e de ordem pública, e não tanto, ou apenas, de natureza contratual ou meramente relacional, configurando uma autêntica certeza de segurança para quem recorre a um advogado.
Por conseguinte, este dever de segredo, tem na sua génese a necessidade não só de garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente – que deve ser tutelada sem limites, mas também o interesse público da função do advogado enquanto agente activo da administração da justiça, entendida em sentido amplo e não apenas restrita à actividade judicial, e isto a fim de salvaguardar a própria fidedignidade das informações recebidas.
Desta feita, e concretamente nos termos do art. 87.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste”.
Portanto, parece ser inequivocamente claro que a regra é a de que os advogados são obrigados a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, sendo as alíneas do n.º 1 do artigo 87º do EOA, meramente exemplificativas.
A corroborar este entendimento, está a consagração do segredo em sentido amplo operada no n.º 2 do artigo 87º do EOA, prevendo explicitamente a obrigação do advogado guardar segredo profissional, quer o serviço solicitado ou cometido envolva ou não representação judicial.
E não residindo a natureza jurídica do segredo profissional do advogado no foro contratual, mas antes na prossecução do interesse público, só é legalmente admitida a quebra/dispensa de segredo profissional em duas situações: por decisão de Tribunal Superior (quebra de sigilo) ou por autorização do Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados (dispensa de sigilo) tal como dispõem os artigos 87.º, n.º 4, da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, e 135º nº 3 do C.P.P., sendo irrelevante para este efeito o consentimento do cliente ou qualquer outro regime ou instituto legal, designadamente os referidos na Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto.
Contudo tal acto de dispensa de sigilo só pode ser considerado quando “absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, ou do cliente”, sendo imprescindível que tal dispensa se demonstre concreta e inequivocamente “justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente ao princípio da prevalência do interesse preponderante”.
Ainda assim, “é doutrina nunca desmentida pela Ordem dos Advogados que apenas o detentor do segredo profissional tem legitimidade para requerer o seu levantamento, e não outrem por ele”, e ainda que dispensado o segredo ou decidida a quebra de sigilo pode o advogado legitimamente guardar segredo sobre o que lhe foi confiado.
Já a quebra de segredo profissional, para além de ser da competência do tribunal superior e de ser “tomada ouvido o organismo representativo da profissão”, exige uma especial justificação, ponderação e fundamentação, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos”.
Na medida em que o exercício do patrocínio e a defesa das imunidades do advogado são direitos e interesses constitucionalmente garantidos, não pode colher o entendimento segundo o qual deverá ser sempre prevalecente o interesse pessoal ou da investigação, ainda que de natureza fundamental, pois a violação do segredo colocaria em causa, e por esta via irremediavelmente, direitos e interesses individuais da mesmíssima natureza.
A defesa da manutenção do sigilo profissional, até que seja dele o advogado dispensado a sua quebra ordenada, está constitucionalmente consagrada nos artigos 20º, 26º, nº 1, e 208.º da C.R.P., no sentido de que a lei assegura aos cidadãos os direitos à palavra e à intimidade da sua vida privada e à informação e à consulta jurídicas e, em consequência, aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato, onde se inclui necessariamente o segredo profissional, o qual é, essencialmente, o corolário da prossecução de um interesse público característico de uma sociedade livre e democrática e de uma multiplicidade de interesses privados que não podem ficar à mercê do critério pessoal ou institucional.
É este o entendimento imposto pelos artigos 87.º, n.ºs 1 e 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 15/2005, de 26 de Janeiro, 135º nº 3 do C.P.P, 114.º, n.º3, al. b) da L.O.F.T.J, artigos 20º, n.º 2, 26º nº 1 e 208.º da C.R.P. e no terceiro parágrafo do art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Considerando agora as esferas e objectivos de actuação tanto das acções encobertas, como do exercício da advocacia, tal como supra expostas, dificilmente poderão ser conciliáveis as duas actividades.
Pois, se a função e o objectivo de um agente encoberto é precisamente ganhar a confiança dos suspeitos, para melhor os observar e obter informações sobre os seus comportamentos alegadamente criminosos, a fim de as transmitir a quem investiga, só pode concluir-se que é manifestamente incompatível a participação na qualidade de advogado, sem violar abertamente os princípios basilares e inelutáveis do exercício da advocacia.
Acresce que é insustentável, face à independência do advogado, que o mesmo actue, em qualquer circunstância, sob o controlo da Polícia Judiciária. Ademais, ao insinuar-se junto do agente do crime, de modo a conseguir meios de prova da sua alegada actuação criminosa, o advogado acaba por tornar-se, de certo modo, um participante activo na “deslealdade” de um meio excepcional de combate da actividade criminosa, mais a mais, quando a coberto do seu estatuto próprio “empresta” um capital de confiança que depois “quebra” com expressa “violação” dos seus deveres especiais.
Mesmo com o invocado nobre objectivo do desmascaramento de crimes, não pode deixar de repudiar-se o risco de identificação entre um advogado, merecedor da total confiança conferida pelo dever de segredo, e um agente policial dissimulado, ou pior, um participante em esquemas excepcionais, desleais e na fronteira do ilícito.
A defesa da dignidade da profissão, bem como o respeito pelos princípios basilares da advocacia anteriormente enunciados - em especial o dever de sigilo - não permite a absolutamente indesejável promiscuidade e distúrbio que adviria das participações de advogados em acções encobertas.
É, portanto, com toda a veemência da defesa da profissão e do estatuto de um advogado livre e prestigiado que se afirma a incompatibilidade do exercício da advocacia e a participação em acções encobertas na qualidade de advogado.
Em face do interesse público dificilmente poderá haver outro entendimento, pois, bastará por momentos, e como mero exercício, inverter a situação para verificar a invocada total incompatibilidade de funções.
Senão vejamos, a actuação de agentes encobertos que se fizessem reconhecer como advogados perante os suspeitos, e nessa qualidade obtivessem informações que nunca conseguiriam de outro modo, para serem usadas posteriormente conduzindo à condenação, seria inconcebível, inaceitável e desastrosa para a boa administração da justiça.
Levando esta situação ao extremo, e nem era preciso tanto, podemos concluir legitimamente que estaria arruinada a pedra basilar e o princípio fundador da relação entre o advogado e o cliente: a confiança (cfr. art. 92.º, n.º 1 do EOA). E sem confiança não há verdade. Sem confiança não há sequer possibilidade de se estabelecer uma relação profissional normal entre advogado e cliente. Quais seriam as probabilidades de um cliente recorrer a um advogado e confiar-lhe a sua história, os seus segredos e sentimentos mais profundos, sabendo que, por lei, qualquer advogado pode actuar como agente encoberto? Haveria sempre entre o advogado e o cliente a nuvem negra da desconfiança, o que, representaria o desmoronar da “mais bela profissão do Mundo” (Voltaire).
O dever ético e jurídico das autoridades, de prevenir, investigar e reprimir as actuações criminosas que corroem a sociedade terá que ter sempre como limite intransponível o respeito pela integridade moral e cívica das pessoas, no momento de escolha dos meios.
Tem aqui inteiro cabimento a afirmação do Professor Germano Marques da Silva, ao considerar que “a ordem pública é seguramente mais perturbada pela violação da regras fundamentais da dignidade e rectidão de actuação judiciária, pilares fundamentais da sociedade democrática, do que pela não repressão de algum crime, por mais grave que seja”.
São, no fundo, os valores civilizacionais que justificam e obrigam a estas opções de extrema delicadeza, na ponderação entre a primazia da segurança ou da liberdade.
Sendo que, o interesse público, neste âmbito, só pode ser o da realização da justiça, e esta não se alcança sem o papel imprescindível do advogado, mas de um advogado que se comporte como advogado e não como delator.
As normas deontológicas justificam-se precisamente para a determinação de regras e limites de modo a assegurar a melhor prestação de serviço à sociedade, designando as condições em que essas funções devem ser executadas e também aquelas em que não podem ser desempenhadas.
Estando um advogado formalmente constituído como mandatário, em acção judicial pendente, a actuação como agente “encoberto” e usando-se dessa sua qualidade de advogado levará certamente ao conhecimento de factos com relevância para o seu patrocinado.
Como já ficou explícito, todas as informações que obteve no e por causa do exercício do seu mandato terão que estar necessariamente cobertas pelo segredo profissional a que esse advogado está legalmente vinculado e, por isso, não pode legitimamente conceber-se, nunca, a auto-dispensa ou a quebra em primeira instância de tal sigilo, sobretudo sem o respeito pelos trâmites legalmente previstos. Pelo contrário há que respeitar a absoluta necessidade de “defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, ou do cliente” tal como previsto no artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 15/2005, de 26 de Janeiro.
Em síntese, a defesa da dignidade da profissão, bem como o respeito pelos princípios basilares da advocacia anteriormente enunciados – em especial os deveres de independência e de sigilo – não é compatível com a participação, nessa qualidade, de advogados em acções encobertas, no âmbito de investigações criminais, para a obtenção de informações.
E, assim, é insustentável, face à independência do advogado, que o mesmo actue, em qualquer circunstância, sob o controlo da Polícia Judiciária, isto para além de se subverterem os mecanismos de dispensa e de quebra de sigilo que estão legalmente estabelecidos e que servem para a defesa da advocacia e do exercício dos direitos de cidadania.
Conclui-se, pois, que um advogado no exercício da sua actividade profissional não pode actuar em concertação com as autoridades judiciais e judiciárias, e, mais a mais, sob o controlo da Polícia Judiciária, desempenhando o papel de agente “encoberto”, e isto quer em processo pendente onde está constituído mandatário quer em qualquer outra situação em que intervenha como advogado.

CONCLUSÕES:

1. A Lei nº 101/2001 de 25 de Agosto, designada por Regime Jurídico das Acções Encobertas para Fins de Prevenção e Repressão Criminal, prevê a participação de cidadãos comuns – terceiros ou agentes não policiais – nas investigações criminais, enquanto agentes encobertos, mas sempre devidamente controlados pela Polícia Judiciária.
2. Contudo, quando a colaboração do advogado com as autoridades neste tipo de obtenção de meio de prova, existe por causa dessa específica e concreta qualidade, isto é, utilizando precisamente o estatuto, o pretexto ou a vantagem de ser advogado, será imperativo, se possível, considerar e respeitar, nessa possível acção, os princípios e normas deontológicas que regem o exercício da advocacia.
3. Não sendo tal possível legal e deontologicamente não poderá agir o advogado como agente encoberto.
4. De entre os deveres impostos ao advogado, enquanto garante imprescindível da realização da justiça, relevam especialmente os deveres de independência, lealdade, confiança e o dever de sigilo profissional.
5. Nos termos do art. 76.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável” e “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão”.
6. E nos termos do art. 84.º da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, “o advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.
7. Finalmente, nos termos do art. 87.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
8. E, por isso, só é legalmente admitida a quebra/dispensa de segredo profissional em duas situações: por decisão de Tribunal Superior (quebra de sigilo) ou por autorização do Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados (dispensa de sigilo) tal como dispõem os arts. 87.º, n.º 4 da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, e 135º nº 3 do C.P.P.
9. A quebra de segredo profissional, para além de ser da competência do tribunal superior e de ser “tomada ouvido o organismo representativo da profissão”, exige uma especial justificação, ponderação e fundamentação, “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos”.
10. O acto de dispensa de sigilo só pode ser decidido pelo Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, com recurso para o Bastonário, e só será tomado quando “absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado”, mas ainda que licitamente dispensado o segredo ou legalmente decidida a quebra de sigilo pode o advogado legitimamente guardar segredo sobre o que lhe foi confiado.
11. Não pode é colher o entendimento segundo o qual deverá ser sempre prevalecente o interesse pessoal ou da investigação, ainda que de natureza fundamental, na medida em que o exercício do patrocínio e a defesa das imunidades do advogado são, também, direitos e interesses constitucionalmente garantidos e, mais, se violados, podem colocar em causa também, e irremediavelmente, direitos e interesses individuais e da mesmíssima natureza, igualmente legal e constitucionalmente protegidos, designadamente os direitos à palavra e à intimidade da vida privada e os direitos à defesa de terceiros, e interesses públicos.
12. A defesa da manutenção do sigilo profissional, até que seja dele o advogado dispensado ou ordenada a sua quebra, além de constitucionalmente consagrada nos arts. 20.º, 26º, nº 1, e 208.º da C.R.P., no sentido de que a lei assegura aos cidadãos os direitos à palavra e à intimidade da sua vida privada e à informação e à consulta jurídicas e, em consequência, aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato, onde se inclui necessariamente o segredo profissional, o qual é, essencialmente, o corolário da prossecução de um interesse público característico de uma sociedade livre e democrática e de uma multiplicidade de interesses privados que não podem ficar à mercê do critério pessoal ou institucional.
13. É este o entendimento imposto pelos arts. 87.º, n.ºs 1 e 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 15/2005, de 26 de Janeiro, 135º nº 3 do C.P.P, 114.º, n.º3, al. b) da L.O.F.T.J, arts. 20º, n.º 2, 26º nº 1 e 208.º da C.R.P. e no terceiro parágrafo do art. 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
14. É, pois, insustentável, face à independência do advogado, que o mesmo actue, em qualquer circunstância, sob o controlo da Polícia Judiciária, isto para além de se subverterem os mecanismos de dispensa e de quebra de sigilo que estão legalmente estabelecidos que servem para a defesa da advocacia, e isto para não falar na subversão total do princípio da confiança que entendimento contrário acarretaria.
15. A defesa da dignidade da profissão, bem como o respeito pelos princípios basilares da advocacia anteriormente enunciados – em especial os deveres de independência, de sigilo e da confiança – não é compatível com a participação, nessa qualidade, de advogados em acções encobertas, no âmbito de investigações criminais, para a obtenção de informações;

Notifique-se.

Lisboa, 13 de Maio de 2009

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

Carlos Pinto de Abreu

Carlos Pinto de Abreu

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