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Pareceres do Conselho Geral

Parecer N.º 66/PP/2010-G
 

Veio o Requerente, Dr. ..., advogado estagiário com a cédula profissional de advogado estagiário nº ..., solicitar a emissão de parecer sobre a eventual gratuitidade da obtenção de certidões indispensáveis à instrução de um processo judicial a instaurar por quem é beneficiário de apoio judiciário na modalidade de isenção de pagamento de encargos do processo, que sejam requisitadas em serviços públicos.

Questiona, ainda, se pode ter-se por constitucional a interpretação que negue tal gratuidade.

 

São os seguintes os factos concretos relatados pelo Requerente com relevância para a emissão do presente parecer:

 

1.     Ao Requerente - advogado-estagiário - foi conferido o mandato judicial mediante procuração forense pelo sr. ... o qual, para além dos poderes gerais forenses, confere, entre outros “os necessários poderes para junto de qualquer repartição das Finanças requerer informações e documentos respeitantes a dívidas fiscais, nomeadamente quanto à regularização de coimas em que haja incorrido, tanto por relação à sua pessoa, como por relação à Sociedade Comercial ..., Unipessoal, Ldª da qual era sócio gerente único à data da dissolução e liquidação da mesma, e junto de quaisquer serviços registrais ou secretaria judicial solicitar certidões que se mostrem necessárias à propositura do procedimento cautelar ou acção declarativa a que se refere o pedido de protecção jurídica com o número de processo 48423” – fls. 6.

 

2.     Ao constituinte do Requerente supra-referido, foi atribuído o benefício de apoio judiciário na modalidade de Dispensa de Pagamento de Taxa de Justiça e demais encargos com o processo e de atribuição de agente de execução – fls. 7 a 10.

 

3.     No passado dia 23 de Julho de 2010, o Requerente, sempre em representação do seu constituinte, dirigiu-se ao Serviço de Finanças de ..., e requereu a emissão de uma certidão comprovativa da situação fiscal do mesmo, nomeadamente comprovativa da existência de infracções tributárias, dos respectivos processos contra-ordenacionais bem como se as quantias aí reclamadas já estavam ou não pagas - fls. 11.

 

4.     Aquando da apresentação do requerimento, e no que concerne ao pagamento do custo da certidão, o Requerente informou o funcionário daquele serviço de finanças de que ao seu constituinte havia sido deferido o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de encargos com o processo, o qual dispensaria o pagamento do respectivo custo.

 

5.     Tal pedido de certidão foi aceite pelo funcionário da repartição, sem qualquer reserva, tendo este apenas solicitado cópia dos documentos comprovativos do mandato (procuração) e do deferimento do benefício de apoio judiciário naquela modalidade.

 

6.     Quando o Requerente se dirigiu ao mencionado serviço de finanças para proceder ao levantamento da certidão em causa, foi-lhe recusada a entrega da mesma sem que fosse efectuado o pagamento do respectivo custo, tendo-lhe sido, então, informado que “o despacho de apoio judiciário não obrigava os Serviços de Finanças a fornecer qualquer documento de forma gratuita”.

 

Entende o Requerente que a recusa de emissão gratuita viola o artº 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (adiante designada apenas por CRP), e que as despesas na obtenção de documentos essenciais à propositura de uma qualquer acção ou procedimento cautelar deverão ser considerados englobados na noção de encargos, conforme definido nos termos da Lei 34/2004.

 

Sem grande tergiversação, entendemos que assiste toda a razão ao Requerente.

 

Vejamos.

 

         Estatui o artº. 12º, nº 1 da CRP que “Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição”.

         O nº 2 do artº. 13º da mesma norma fundamental diz que ninguém pode ser (…) prejudicado, privado de qualquer direito (…) em razão de (…) situação económica.

         O artº. 20º, nº 1 da CRP estabelece que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.

         Este direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva é uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático[1].

         Como ensinam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “O reconhecimento do direito ao acesso ao direito e aos tribunais seria meramente teórico para muitas pessoas se não se garantisse que o “direito à justiça” não pode ser prejudicado por insuficiência de meios económicos”[2].

 

         É esse, de resto, o raciocínio que preside à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.

         No seu artigo 1º pode ler-se que “O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos,

o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos”.

         O artº. 16º da Lei nº 34/2004 prevê diversas modalidades de concessão do benefício de apoio judiciário, as quais dependem do maior ou menor estado de insuficiência económica do beneficiário.

         No topo desse elenco de modalidades – correspondendo àquelas situações de maior gravidade em que o beneficiário não tem sequer possibilidade de suportar um pagamento faseado de custas judiciais – está a “dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo.

         Relativamente à expressão “demais encargos do processo” não pode deixar de entender-se que a mesma engloba toda e qualquer despesa, custo ou encargo que o beneficiário tenha que fazer face para poder instaurar uma acção, para a contestar ou para instruir documentalmente um processo em sua defesa, seja através da obtenção de uma certidão, do pagamento de uma tradução ou de qualquer outra diligência que se mostre imprescindível para prova do direito por si alegado.

         Se assim se não entendesse, o beneficiário de apoio judiciário poderia ver prejudicada a sua capacidade de fazer valer o seu direito de uma forma efectiva, o que tornaria o seu direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva vazio de conteúdo o que não foi manifestamente o espírito do legislador.

         Uma interpretação diversa põe em causa o direito ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, violando o artº. 20º da CRP.

 

         Sendo o direito do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, um direito fundamental constitucionalmente consagrado, ele é directamente aplicável e vincula as entidades públicas – artº. 18º, nº 1 da CRP.

         Desse modo, aplica-se também aos Serviços de Finanças, como repartição que são de um dos ministérios do Estado: o Ministério das Finanças.

 

Não poderá, por isso, um serviço de finanças negar a emissão gratuita de uma certidão a um particular cuja situação de insuficiência económica esteja já reconhecida e quando tal documento for essencial para que este possa defender o seu direito e, desse modo, veja assegurada a realização da justiça.

         Se não o fizer, violará o disposto no artº. 20º, nº 1 da CRP.

 

CONCLUSÕES:

 

1ª - Estatui o artº. 13º, nº 2 da CRP que ninguém pode ser prejudicado ou privado de qualquer direito em razão da sua situação económica.

 

2ª - O artº. 20º, nº 1 da CRP estabelece que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.

 

3ª - É esse, de resto, o raciocínio que preside à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, plasmado no seu artº. 1º.

        

4ª – A expressão “demais encargos do processo” não pode deixar de ser entendida como englobando toda e qualquer despesa, custo ou encargo que o beneficiário tenha que fazer face para poder instaurar uma acção, para a contestar ou para instruir documentalmente um processo em sua defesa, seja através da obtenção de uma certidão, do pagamento de uma tradução ou de qualquer outra diligência que se mostre imprescindível para prova do direito por si alegado.

 

5ª - Se assim se não entendesse, o beneficiário de apoio judiciário poderia ver prejudicada a sua capacidade de fazer valer o seu direito de uma forma efectiva, o que tornaria o seu direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva vazio de conteúdo o que não foi manifestamente o espírito do legislador.

 

6ª - Sendo o direito do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, um direito fundamental constitucionalmente consagrado, ele é directamente aplicável e vincula as entidades públicas – artº. 18º, nº 1 da CRP – aplicando-se também aos Serviços de Finanças.

 

7ª - Não poderá, por isso, um serviço de finanças negar a emissão gratuita de uma certidão a um particular cuja situação de insuficiência económica esteja já reconhecida e quando tal documento for necessário para que este possa defender o seu direito e, desse modo, veja assegurada a realização da justiça.

 

8ª - Se não o fizer, violará o disposto no artº. 20º, nº 1 da CRP.

É o nosso parecer.

 

Viana do Castelo, 15 de Dezembro de 2010.

Miguel Salgueiro Meira

 

À sessão do Conselho Geral de 17 de Dezembro de 2010.

 

...

 

Aprovado em 17 de Dezembro de 2010                       

 



[1] CANOTILHO, J.J. Gomes e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa – Anotada”, Volume 1, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, anotação II ao artº. 20º da CRP, pag. 409.

[2] Idem, nota VI, pag. 411

Miguel Salgueiro Meira



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