Parecer Nº 28/PP/2017-C
Processo de Parecer 28/PP/2017-C
Por requerimento entrado por correio electrónico no dia 17 de Junho de 2017 no Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados e dirigido ao Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados de Coimbra, a Exmª Srª Drª PM..., advogada, com escritório em Coimbra, veio requer que este emita parecer sobre questão a eventual existência de incompatibilidade ou conflito de interesses, onde expôs que:
- A Srª Advogada requerente “veio, como mandatária constituída de um casal, apresentar uma providência tutelar cível de menores, visto que os mesmos pretendem a regulação de visitas ao seu neto menor, de aproximadamente 3 anos de idade”;
- A Srª Advogada “foi em tempos idos, advogada da filha desse casal e mãe do menor, em mais de um processo judicial, que a mesma moveu contra a sua anterior entidade patronal e também a patrocinou nos dois divórcios anteriores – já que o menor é fruto de uma terceira relação, onde nunca chegou a concretizar-se o matrimónio”;
- A Srª Advogada requerente “aceitou avançar com a dita providência tutelar, enquanto advogada constituída dos avós do menor, por entender que o que estava em causa era a concretização de um direito destes seus clientes, enquanto avós do mesmo menor, nada tendo os mesmos contra a mãe dele, sua filha”;
- Esclarecendo ainda a Srª Advogada requerente que “nunca foi intenção dos avós pedir a guarda ou retirar o menor à mãe” e que “a única coisa que pretendem é que lhes seja autorizado conhecer o seu neto – que apenas viram uma vez, com poucos meses de idade – e manter com ele um contacto mais ou menos regular e que ao menor lhe seja concedido também o direito de conviver com os avós”;
- A Srª Advogada informa ainda, no seu pedido de parecer, que “além de ter sido mandatária da mãe do menor, em momento anterior, como ela não pagou os honorários que lhe eram devidos, a requerente teve que entrar com um processo judicial para o efeito contra ela, tendo, neste momento, em curso um processo de execução, no âmbito do qual penhorou o vencimento à mãe do menor para pagamento dos mesmos honorários”;
A Srª Advogada requerente solicitou ainda a “máxima urgência” na emissão do parecer em virtude de estar agendada conferência no âmbito do aludido processo em curso para o dia 4 de Julho de 2017.
Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e sendo atribuição do Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão concreta colocada.
O Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no Estatuto da Ordem dos Advogados e só o cumprimento escrupuloso e rigoroso daqueles garante a dignidade e o prestígio da profissão.
O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado e os Clientes, sendo neste capítulo e designadamente no seu artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo que para mais simples exposição se transcreve:
“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”
A norma citada (que reproduz integralmente o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) visa por um lado defender a comunidade em geral e os clientes de um Advogado de qualquer actuação menos lícita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem visar a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.[1]
«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[2]
É o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficaram salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, intérprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[3]
O nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
E o nº 2, por maioria de razão, impõe que o Advogado recuse o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
Por sua vez o nº 5 refere-se ao eventual risco de violação do segredo profissional e às eventuais vantagens ilegítimas ou injustificadas do novo cliente por via do conhecimento dos assuntos do anterior cliente por parte do advogado.
O conflito de interesses resulta, como se referiu, dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado o que impõe, desde logo, que é em primeira linha uma questão de consciência do Advogado[4], cabendo-lhe em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de um conflito entre os interesses dos seus clientes.
Neste caso concreto não estamos perante o conflito de interesses previsto no nº 1 do artigo 99º do EOA dado que na providência cautelar em causa a Srª Advogada requerente apenas patrocinou os seus actuais clientes, pais da sua anterior cliente e não existe uma conexão entre as acções que patrocinou para a sua anterior cliente (dois processos de divórcio e um processo do foro laboral) e a providencia tutelar civil que está em curso, os quais tiveram existências autónomas e em momentos temporais não sobrepostos, sendo que já está suficientemente consolidada na jurisprudência da Ordem dos Advogados que a conexão referida naquele preceito significa uma relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valoração de certos factos, o que manifestamente não ocorre neste caso.
A anterior cliente da Srª Advogada requerente já não é por si patrocinada em nenhuma acção (como não poderia deixar de resultar do facto de a Srª Advogada requerente ter instaurado contra ela uma execução para cobrança de divida resultante do não pagamento de honorários) pelo que também não se aplica ao caso concreto do disposto nos nºs 2, 3 e 4 do citado artigo 99º do EOA.
Porém a Srª Advogada requerente patrocinou a sua anterior cliente (e agora requerida na providencia que contra ela intentou em representação dos seus actuais clientes, pais da sua anterior cliente) numa acção do foro laboral e em duas acções de divórcio.
Importa assim analisar se, nos termos do nº 5 do citado artigo 99º do EOA existe risco do cumprimento do dever de manutenção do sigilo profissional ou se do conhecimento desses assuntos podem resultar vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
Ora se entre os dois processos de divórcio em que a Srª Advogada requerente patrocinou a sua anterior cliente e a providencia tutelar cível em que esta é agora requerida e são requerentes os seus pais, actuais clientes da Srª Advogada requerente não existe uma conexão nos termos supra expostos, existe no entanto uma ligação estreita e de proximidade, reportando-se aqueles processos ao âmbito das relações familiares e mais intimo da anterior cliente da Srª Advogada requerente, que necessariamente levou a que esta tomasse conhecimento de diversos factos por via daqueles mandatos que então assumiu com a sua anterior cliente e que por essa razão se encontram sujeitos ao dever de guardar sigilo profissional e que a aceitação (e obviamente a manutenção) do mandato numa providência cautelar contra aquela sua anterior cliente nos termos descritos no requerimento apresentado é susceptível de criar uma situação de risco de violação do segredo profissional e até da diminuição da independência na condução do processo, violando assim para alem do nº 5 do citado artigo 99º, o disposto no artigo 89º, ambos do EOA.
Pelo que existe potencialmente o risco de conflito de interesses que poderá repercutir na violação das normas constantes do nº 5 artigo 99º e do nº 89º ambos do EOA, pelo que somos de parecer que deve a Srª Advogada requerente cessar o mandato.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
À sessão do Conselho Regional
Coimbra, 30 de Junho de 2017
[1] Valério Bexiga, in Lições de Deontologia Forense, pág. 324
[2] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111
[3] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262
[4] Paulo Sá e Cunha – Parecer 39/2011 CDL
Manuel Leite da Silva
Topo