Parecer Nº 22/PP/2017-C
Processo de Parecer n.º 22-PP-2017
Por comunicação por correio electrónico enviada para o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados a Exmª Srª Drª FG..., advogada, com escritório em Coimbra, veio requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca, sobre eventual existência de “incompatibilidade” onde expôs que:
- A Srª Advogada requerente “à cerca de 4 ou 5 anos” foi “contactada por uma senhora para a patrocinar num processo de regulação das responsabilidades parentais, tendo efectuado uma diligência e, acabado por renunciar à procuração”;
- A Srª Advogada requerente foi agora nomeada em processo para patrocinar o ex-marido da cliente referida no parágrafo anterior, num apenso daquele processo em que já interveio e onde renunciou à procuração, sendo este apenso relativo a um incumprimento das responsabilidades parentais;
Pedindo a Srª Advogada requerente que a informassem se pode patrocinar aquele cliente ou se existe alguma incompatibilidade.
Posteriormente e novamente através de comunicação por correio electrónico enviado para o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados a Srª Advogada requerente colocou questão diferente, no âmbito do sigilo profissional, relatando que:
- Foi “nomeada patrona de uma senhora num processo de violência doméstica”
- Que no âmbito do mesmo acompanhou a sua cliente à P.S.P. e “no dia combinado (…) quando estava a chegar à P.S.P.” viu “do outro lado da avenida a (..) cliente, um homem e uma criança (...)” e o ex companheiro (da sua cliente) pelo menos por três vezes “chamou-a de vaca”;
- Que a sua cliente apresentou queixa do sucedido e indicou a Srª Advogada requerente como testemunha, tendo sido notificada para prestar depoimento nessa qualidade;
Questionando então, a Srª Advogada requerente, se “o caso configura o sigilo profissional” e “se o mesmo pode ser levantado” para prestar o seu depoimento.
Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional cumpre emitir o solicitado parecer respondendo às duas questões colocadas.
Abordado a primeira questão, o Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no Estatuto da Ordem dos Advogados, cujo cumprimento escrupuloso e rigoroso é o garante da dignidade e do prestígio da profissão.
O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado e o Cliente, sendo neste capítulo e designadamente no seu artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):
“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”
A norma citada (art. 99º do EOA e que reproduz o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados) visa, por um lado, defender a comunidade geral e os clientes de um Advogado de uma actuação menos licita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, visa defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem ter em conta a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.[1]
«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[2]
É o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficaram salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, interprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[3]
O nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
O conflito de interesses resulta, como se referiu, dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado o que impõe, desde logo, que é em primeira linha uma questão de consciência do Advogado[4], cabendo-lhe em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de um conflito entre os interesses dos seus clientes.
Da exposição factual efectuada pela Srª Advogada requerente é manifesto que a situação em apreço se enquadra no conflito de interesses previsto no nº 1 do aludido artigo 99º do EOA, porquanto já interveio no processo principal em representação da parte contrária, pelo que está inequivocamente impedida de poder patrocinar o ex-marido da sua anterior cliente num apenso relativo ao mesmo processo de regulação das responsabilidades parentais em que teve intervenção directa.
Pelo que a Srª Advogada requerente deve recusar o patrocínio naquele processo.
Analisando a segunda questão apresentada desde já se afirma que não existe nenhuma situação de sigilo profissional que impeça a Srª Advogada requerente de prestar depoimento sobre a concreta factualidade das injúrias proferidas pelo ex-marido da sua cliente.
O dever de sigilo ou de segredo profissional plasmado no artigo 92º do EOA impede o advogado de relatar ou dar conhecimento, por qualquer forma, de todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
Os factos relatados pela Srª Advogada requerente não advieram ao seu conhecimento ou não os presenciou no exercício das suas funções ou pela prestação dos seus serviços, apenas tendo como ponto de contacto -- mas insusceptível de poderem configurar factos sujeitos a sigilo profissional – que a pretensa vitima é cliente da Srª Advogada requerente e o autor do ilícito será a contra parte em processo(s) em que a Srª Advogada requerente intervêm no exercício daquela sua função.
Refira-se por fim, que haverá incompatibilidade entre a prestação de depoimento (enquanto testemunha) da Srª Advogada requerente e o exercício do mandato forense naqueles mesmos autos.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
Coimbra, 22 de Setembro de 2017
À sessão.
[1] Valério Bexiga, in Lições de Deontologia Forense, pág. 324
[2] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111
[3] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262
[4] Paulo Sá e Cunha – Parecer 39/2011 CDL
Manuel Leite da Silva
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