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Parecer Nº 30/PP/2017-C

PARECER Nº 30/PP/2017-C

 

            A Senhora Dra. OL..., Delegada da Ordem dos Advogados em A…, dirigiu comunicação a este Conselho onde refere que naquele Tribunal, ao contrário do que antes ocorria, deixou de se nomear defensor aos arguidos nos Inquéritos em que é proposta a Suspensão Provisória do Processo. Por isso, acrescenta que tal instituto vem sendo proposto aos arguidos, alguns estrangeiros, sem a presença de advogado.

            Solicita, neste conspecto, esclarecimento sobre a obrigatoriedade, ou não, da nomeação de defensor oficioso em tais situações.

Apreciando:

Desde logo, importará assinalar que este Conselho Regional tem competência para a emissão do presente parecer, quer por se tratar de situação atinente à respectiva área de competência territorial (artigo 54º, 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados), quer porque consubstancia questão de carácter profissional relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) do sobredito inciso, lhe cabe pronunciar-se.

Ora, a questão colocada é, indubitavelmente, credora de reflexão.

Importa assinalar que o instituto regulado no artigo 281º do CP Penal constitui uma inovação introduzida pelo Código de Processo Penal de 1987 que estruturalmente se erige como uma limitação do princípio da oficialidade, designadamente na vertente da obrigatoriedade do MP deduzir acusação sempre que existam indícios suficientes de quem foi o autor de um crime.

Com efeito, abandona-se a senda da estrita legalidade para que seja assegurada outra teleologia fundamental da vida em sociedade, precisamente a ressocialização do delinquente. Efectivamente, a emergência das ideias da desjudiciarização e da menor intervenção legitimam-se quer por razões de pragmatismo funcional conexas ao sistema de justiça penal quer, fundamentalmente, por se lhes descortinar a potencialidade de evitarem a estigmatização conexa à “cerimónia degradante” da audiência de julgamento em criminalidade de menores ressonância e repercussão sociais.

É, no entanto, uma medida de cariz consensual – já que supõe manifestações de anuência de Ministério Público, arguido e, havendo-o, assistente, e a posterior concordância do Juiz de instrução.

Ou seja, a tipologia de mecanismo em apreço carece necessariamente da adesão do arguido, que deverá prestar-lhe o seu consentimento, evidentemente informado – para o que, ao que se crê, não será despicienda a presença de advogado.

Obtidos os referidos subsídios tendentes à compreensão do instituto analisado examine-se, pois, a legalidade concretamente atinente à matéria sob análise.

Ora, nessa tarefa é, desde logo, mister concluir que a letra do artigo 281º do Código de Processo Penal não contém qualquer norma de que decorra uma obrigação de intervenção de defensor.

Restará, pois, examinar o conteúdo do artigo 64º do CP Penal, que, na versão da Lei n.º 20/2013, de 21/02, estatui:

 

Obrigatoriedade de assistência

1 - É obrigatória a assistência do defensor:

a) Nos interrogatórios de arguido detido ou preso;

b) Nos interrogatórios feitos por autoridade judiciária;

c) No debate instrutório e na audiência;

d) Em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída;

e) Nos recursos ordinários ou extraordinários;

f) Nos casos a que se referem os artigos 271.º e 294.º;

g) Na audiência de julgamento realizada na ausência do arguido;

h) Nos demais casos que a lei determinar.

2 - Fora dos casos previstos no número anterior pode ser nomeado defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido.

3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, se o arguido não tiver advogado constituído nem defensor nomeado, é obrigatória a nomeação de defensor quando contra ele for deduzida a acusação, devendo a identificação do defensor constar do despacho de encerramento do inquérito.

4 – (…)

 

Salvo o devido respeito por opinião contrária, a alteração que a mencionada Lei n.º 20/2013 introduziu no preceito normativo transcrito assume uma importância inolvidável na questão em debate.

De facto, a nova alínea b) parece resolver definitivamente a questão sempre que a anuência do arguido para a aplicação do mencionado instituto for solicitada em interrogatório feito pelo Ministério Público, dado o facto incontornável de tal Magistratura integrar as autoridades judiciárias (artigo 1º, al. b, do CP Penal) – cfr. no sentido do texto, Mónica Quintela, in BOA, Abril de 2016, “A Suspensão Provisória do Processo e Dispensa de Defensor”, págs. 52 a 54)

De resto, se o arguido for estrangeiro e não dominar a língua portuguesa a obrigatoriedade de assistência também decorre, com perspícua linearidade, da al. d) do predito artigo 64º, 1.

Todavia, não obstante as respostas parciais decorrentes da normatividade especificamente analisada, é certo que a essência da problemática suscitada se queda sem cabal dilucidação; de facto, ficam de fora da subsunção automática ao inciso legal apreciado todas as situações em que, paradigmaticamente, o MP delegue nos órgãos de polícia criminal o interrogatório para a obtenção do consentimento do arguido.

Deve dizer-se que, em tais hipóteses, não é possível defender-se a existência de uma necessidade, legalmente imposta, de intervenção de defensor; na verdade, inexiste inciso legal em que tal apologia possa arrimar-se.

Com efeito, se de um ponto de vista do “dever ser” a defesa de que a assistência de defensor no mencionado acto de concordância, constitui uma evidente emanação da ideia do fair trial e do due processo of law, na medida em que assegura que a aceitação da suspensão do processo e das injunções decorre de uma vontade devidamente esclarecida, é patente que o legislador processual penal não partilhou tal entendimento (com idêntica conclusão vide Ac. do Tribunal Constitucional de 24 de Janeiro de 2006, relatado pelo Conselheiro Vítor Gomes, Processo 161/05).

Na realidade, o n.º 2 deste artigo 64.º (quando estatui que, além dos casos concretizados nas diversas alíneas do nº 1, o tribunal pode nomear defensor ao arguido, oficiosamente ou a pedido, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência da assistência) consagra, tão só, um poder-dever e, como tal, desprovido da indiscutível e pretendida vinculatividade.

 

            Em síntese:

 

1.      Não há, nem no artigo 64º do Código de Processo Penal, nem no artigo 281º do mesmo diploma, uma obrigação genérica de nomeação de defensor ao arguido a quem é indagada a concordância para a suspensão provisória do processo mediante o cumprimento de injunções ou regras de conduta.

2.      Sempre que tal concordância ocorra em acto presidido pelo Ministério Público essa assistência de defensor é obrigatória, face ao dispositivo contido na alínea b) do n.º 1 do artigo 64º do CP Penal.

3.      Identicamente, essa obrigatoriedade de assistência existe sempre que o arguido seja estrangeiro e não domine a língua portuguesa (al. d), do n.º 1, do artigo 64º do CP Penal).

4.      De lege ferenda, para a realização do Estado de Direito – dado que a assistência de defensor no mencionado acto de concordância assegura que a aceitação da suspensão do processo e das injunções decorre de uma vontade devidamente esclarecida – somos de parecer que a intervenção de defensor (constituído ou nomeado) deveria ser sempre obrigatória.

 

 

À sessão.

 

Coimbra, 10 de Outubro de 2017

 

Jacob Simões

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