Parecer Nº 31/PP/2017-C
Processo de Parecer n.º 31/PP/2017-C
Por ofício datado de 16 de Junho de 2017, veio a Exmª. Senhora Juíza do Juízo de Competência Genérica da L… do Tribunal Judicial da comarca de Coimbra, enviar certidão dos autos que correm termos naquele Juízo sob o nº … (Acção de Processo Comum) para que este Conselho se pronuncie sobre a situação retratada nos mesmos, considerando o disposto no artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados, em concreto quanto à possibilidade de os réus serem todos patrocinados naquele processo pela mesma Ilustre Advogada.
A acompanhar o douto despacho proferido a solicitar a emissão de parecer sobre a existência, ou não, de conflito de interesses, foi remetida diversa documentação, composta por cópias extraídas desse processo.
Instruem, assim, este pedido de parecer:
1. Cópia da petição inicial e documentos a ela anexos;
2. Contestação com os documentos anexos e procurações;
3. Requerimento de fls 92 e seguintes;
4. Resposta (refª 24497297);
5. Réplica (refª 24529056);
6. Requerimento do Autor (refª 24529655);
7. Requerimento dos Réus (refª 24632712);
8. Requerimento dos Réus (refª 24988364);
9. Requerimento do Autor (refª 25036432);
A questão vem colocada com toda a clareza, para além de ser acompanhada da pertinente documentação, pelo que face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional de Coimbra, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.
A questão em apreço deve ser analisada no enquadramento que resulta do despacho proferido nos autos em causa, isto é, à luz do artigo 99º do EOA ali referido e cuja norma se destina a evitar o conflito de interesses, sendo indiscutível que a decisão sobre o preenchimento, ou não preenchimento, de tal norma compete, em exclusivo, à Ordem dos Advogados.
E, concretizando com maior pormenor a questão e os factos, aquela decorre do articulado denominado de Resposta do Autor (requerimento com a refª 24497297) no qual vem invocar a “irregularidade do mandato conferido à Srª Advogada SP...” alegando, para tanto, que “Apresentam-se os Réus representados pela mesma causídica”, “os Réus CF..., JG... e GF... são condóminos”, “réu é também o MA... bem com o condomínio por ele administrado” e que “é óbvio e notório, bastando analisar a petição inicial, que uma coisa são os interesse do condomínio, outra coisa é a responsabilidade do administrador do condomínio e outra coisa são os interesses dos condóminos, nestes caso dos três, cuja junção de comprovativos de pagamentos lhe estão a ser feitas”, concluindo que “é absolutamente claro tal com está configurada a acção na p.i. que – entre outras – está em causa a anulação de uma acta cujo valor nela aposto como sendo divida do ora autor é absolutamente falsa” “Basta verificar a contradição entre o valor das quotas respeitantes ao ano de 2015 e 2016 e somar tudo para se verificar que tal ata está viciada e enferma de uma ilicitude só explicável pelo facto de os Réus dela signatários não saberem fazer contas. Por isso se pediu a anulação da mesma até porque é ininteligível no valor total em divida que a mesma refere”, “Ora a mandatária subscritora da contestação não pode defender interesses contraditórios e no caso é inconciliável e antagónico o interesse do condomínio, com o interesse do Réu administrador, como o é com os restantes condóminos (…)”
Os Réus através do requerimento com a refª 24988364 e face ao teor do invocado conflito de interesses por parte da sua mandatária, apenas consignam que “a mandatária reserva-se o direito de se defender quanto às acusações que lhe são dirigidas ao longo dos articulados na sede própria que serão as instâncias criminais, por respeito ao princípio da urbanidade e aos tribunais, sem deixar de aqui repudiar veementemente tais acusações que são gravíssimas, gratuitas e completamente falsas”.
A acção em causa é intentada pelo Autor, também condómino, contra o Condomínio do nº 12 da Rua Dr. Francisco … (i), MA... NS…, administrador do aludido condomínio (ii), CF… (iii), JG... (iv) e GF... (v), sendo que todos os Réus pessoas singulares são condóminos do dito condomínio, também Réu.
Importa assim analisar o pedido formulado pelo Autor na sua petição inicial em que pede que sejam declarado:
- “Anuladas as deliberações constantes da acta nº 42 do Condomínio da Rua Dr. Francisco …”;
- “Anulado o voto do Réu MS… na Assembleia de Condóminos onde votou, representando o Réu GL…, na deliberação aposta na sobredita acta nº 42”;
E que:
- “(…) o Réu MA...condenado a apresentar nos autos, no prazo de dez dias, todas as facturas de todos os pagamentos que efectuou - por via da conta do condomínio do supra referido prédio, desde o início da sua administração do prédio que administra – a RS…, sua esposa e convivente, bem como todas as facturas respeitantes a serviços de limpeza, seguros de trabalho, despesas judiciais e despesas com honorários de advogados, respeitantes ao prédio que administra, bem como os canhotos de todos os recibos de pagamento de quotas que emitiu desde o inicio da sua administração até à data da instauração da presente acção”;
- “seja este administrador condenado a pagar ao Autor indemnização diária não inferior a 20,00€, contados desde a citação que qualquer dos Réus, até junção aos autos de todos os documentos que lhe estão a ser pedidos”;
- “sejam os Réus condenados a pagar ao Autor todos os prejuízos danosos causados com a instauração de qualquer acção baseada na aludida acta nº 42 cuja anulação das deliberações nela constantes está requerida, prejuízos esses que ainda não estão em toda a extensão determinados nem quantificados e cujo ressarcimento se remete para liquidação em execução de sentença”;
- “(..) sejam cada um dos Réus CF..., JG… e GL… condenados a pagar ao Autor indemnização mensal não inferior a 300,00€, contados desde a citação para os termos desta acção, até de junção aos autos de documento comprovativo de todos os pagamentos de quotas de condomínio das respectivas fracções desde o ano de 2008 até à data de entrada em juízo desta acção”;
- “(…) seja o Réu MS, pelas razões constantes desta acção exonerado das suas funções de administrador do prédio com o nº 12 de policia da Rua Dr. Francisco …”;
- “(…) sejam os Réus condenados a pagar ao Autor a totalidade dos seus honorários devidos pela instauração da presente acção”;
- “(…) a condenação solidária de todos os Réus como litigantes de má-fé em multa e indemnização ao Autor, não inferior a 1.000€, porquanto conscientemente e com o seu procedimento, primeiro ao aceitarem os termos e razões do Autor na acção anteriormente interposta neste Tribunal e depois deliberando nos termos sobreditos e constantes da referida acta obrigaram o Autor a instaurar a presente acção”;
Citados, todos os Réus contestaram num único articulado pedindo a absolvição de todos os pedidos e deduziram reconvenção, tendo todos eles constituído com mandatária a Srª Drª SP..., de acordo com as procurações juntas com a contestação/reconvenção.
Sintetizados os factos analisemos então o enquadramento jurídico.
O Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no EOA, sendo que só o cumprimento escrupuloso e rigoroso de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.
O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado e o Cliente, sendo neste capítulo e designadamente no seu artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):
“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”
A norma citada (art. 99º do EOA e que reproduz o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) visa não só defender a comunidade geral, como ainda os clientes de um Advogado de qualquer actuação menos licita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem visar a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.[1]
«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[2]
É o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficaram salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, interprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[3]
Assim, o nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
O nº 2, por maioria de razão, impõe que o Advogado recuse o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
E o nº 3 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado não aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
É cristalino que a questão em análise terá assim que ser ponderada à luz do citado nº 3 do art. 99º do EOA.
Ora dos articulados e dos factos neles invocados por cada uma das partes (naturalmente que em oposição) e, especialmente, da contestação/reconvenção deduzida não resulta que existe um cruzamento ou intersecção de interesses entre algum ou alguns dos Réus que possa suscitar a existência de conflito de interesses e o enquadramento das respectivas posições não são, por definição, consideradas como antagónicas ou conflituantes.
Refira-se no entanto que o conflito de interesses pode desencadear-se a qualquer momento, na pendência de qualquer processo, quando os interesses em jogo deixam, mesmo que por um breve instante, de serem paralelos, coincidentes ou não conflituantes, para poderem ser, de forma manifesta ou mesmo meramente latente, opostos ou conflituantes.
Como se referiu o conflito de interesses resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado o que impõe, desde logo, que é em primeira linha uma questão de consciência do Advogado, cabendo-lhe em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de um conflito entre os interesses dos seus clientes.
Porém para além dessa vertente interna, existe também a necessidade, para a salvaguarda daqueles princípios que enformam a Advocacia, da analise da existência ou não de um conflito de interesses numa vertente externa e nesta, como se referiu, não é possível afirmar que existe, neste momento, tal conflito.
Sendo que, na eventualidade de se vir a verificar a existência de conflito de interesses entre um ou mais do que um Réu então, nesse momento, terá a Exmª Srª. Advogada de deixar de patrocinar todos aqueles seus constituintes por via do disposto no nº 4 do artigo 99º do EOA.
Conclusão:
Na situação em análise e face aos articulados e requerimentos apresentados para a emissão deste parecer entendemos que não existe, pelo menos até este momento, conflito de interesses.
É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.
Comunique-se ao processo supra referido.
Coimbra, 13 de Outubro de 2017
[1] Valério Bexiga, in Lições de Deontologia Forense, pág. 324
[2] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111
[3] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262
Manuel Leite da Silva
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