Parecer Nº 41/PP/2017-C
Processo de Parecer n.º 41-PP-2017-C
Por requerimento entrado no Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados e dirigido ao seu Presidente, o Exmº Sr. Dr. JG..., advogado, com escritório em Castelo Branco, veio requer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca, de eventual existência de conflito de interesses, onde expôs que:
- “Correm termos no Tribunal da Comarca de (…) os autos (…) que se consubstanciam num incidente de embargos de terceiro, em que o ora requerente é mandatário da embargante”;
- “A origem da apresentação dos embargos supra mencionados teve que ver com o contacto telefónico perpetrado pela embargante, que vive há muitos anos em França, com vista ao seu patrocínio na questão”;
- “A embargante é ex-cônjuge do executado nos autos que deram origem ao apenso, sendo que o executado também, se encontra patrocinado pelo ora consulente”
-“naqueles autos discute-se da falta de notificação da penhora à ex-cônjuge bem com a propriedade dos bens móveis penhorados, porquanto se defende que são bens comuns do executado e da embargante, pois ainda não se procedeu à partilha dos bens comuns do então casal, cujo casamento fora dissolvido, por divórcio, em 2009”;
- “Em complemento, refere-se que a execução funda-se em Acórdão proferido, que condenou o executado pela prática de ilícitos criminais e respectivos pedidos de indemnização civil, responsabilidade a que é alheia a embargante, porque pessoal e intransmissível”;
- “O requerente foi indicado à embargante pela filha do executado”;
- “Apesar de, ex-cônjuges não se comunicarem, tendo sabido do processo em causa pela filha, não existe processo de inventário para partilha de meações, nem sequer intenção de o iniciar, porquanto a falta de comunicação não indicia conflitos entre ambos mas apenas inércia, oriunda da distância física e emocional em promover acordo extrajudicial de partilha, que agora se vê gorado.”;
- “Indaga-se se estará o consulente impedido de patrocinar em juízo a embargante”
- “Insta-se, igualmente, se pelo facto de saber que o executado era divorciado, teria o consulente de adoptar outra postura nos autos, antes de ser contactado pela ex-conjuge do executado”;
Face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial própria, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.
O Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no Estatuto da Ordem dos Advogados, sendo que só o cumprimento escrupuloso e rigoroso de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.
O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado com os Clientes, sendo neste capítulo e designadamente no seu artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):
“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”
A norma citada (art. 99º do EOA e que reproduz o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados – Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) visa, por um lado, defender a comunidade geral e os clientes de um Advogado de qualquer actuação menos licita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem visar a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.
«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[1]
É o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficaram salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, interprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[2]
O nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
E o nº 2, por maioria de razão, impõe que o Advogado recuse o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
O nº 4 daquele preceito por sua vez prevê que se surgir um conflito de interesses entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes no âmbito desse conflito.
O conflito de interesses resulta, como se referiu, dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado o que impõe, desde logo, que é em primeira linha uma questão de consciência do Advogado[3], cabendo-lhe em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de um conflito entre os interesses dos seus clientes.
Ora, atenta a descrição efectuada pelo Sr. Advogado requerente temos, como questão essencial, a representação por aquele, do executado e de embargante de terceiro na mesma execução, pelo que desde logo encontra-se preenchido o primeiro requisito do nº 1 do aludido artigo 99º do EOA, porquanto dúvidas não existem de que os embargos constituem, como apenso que são da execução, uma questão conexa com esta, tanto que a procedência dos embargos produziria efeitos na execução.
Pelo que importa analisar se a embargante de terceiro (no caso a ex-cônjuge do executado) se pode considerar como “parte contrária” relativamente ao executado.
A lei processual civil, no artigo 26º do Código de Processo Civil (CPC), utiliza para a definição de legitimidade a verificação de um interesse comum em demandar ou em contradizer, a ser determinado objetivamente, sendo manifesto que o interesse objectivo do executado pode não coincidir com o interesse objectivo do embargante ao intervir na execução, deduzindo embargos e, por essa razão, nos termos do artigo 348.º do Código de Processo Civil, deduzidos e recebidos os embargos é o executado (para além do exequente) notificado para os contestar, o que transpondo para o caso concreto terá levado a que o Sr. Advogado requerente, foi notificado, enquanto mandatário do executado, para contestar, querendo, os embargos que ele próprio minutou e apresentou enquanto mandatário da embargante.
E se, face ao referido é manifesto que o Sr. Advogado requerente se colocou numa situação de conflito de interesse, impõe-se ainda verificar, face à ligação entre embargante e executado descrita no pedido de parecer, se assim é.
Ora, se a ex-cônjuge do executado defende os seus direitos relativos a bens próprios indevidamente apreendidos ou penhorados na execução em que o seu ex-marido é executado, poder-se-ia invocar que não existiria conflito de interesses se este, executado, não puser em crise terem sido indevidamente penhorados os bens em causa.
Mas tal não é sustentável, porque, nos termos do nº 4 do citado artigo 99º do EOA, se “(…) ocorrer risco de (…) diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito”, por outro, o artigo 89º do EOA consagra um dos pilares fundamentais da deontologia dos advogados, o principio da independência,, que impõe que o advogado, no exercício da sua profissão, mantém sempre em quaisquer circunstancias a sua independência, devendo do agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resultar dos seus próprios interesses, ou influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente.
Em questão similar e concluindo, também, pela existência de conflito de interesses, pronunciou-se o Conselho Distrital do Porto no seu parecer 48/PP/2009-P.
Conclui-se assim que existe conflito de interesses quando o mesmo Advogado patrocina no mesmo processo embargante de terceiro e executado.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
À Sessão
Coimbra, 12 de Janeiro de 2018
[1] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111
[2] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262
[3] Paulo Sá e Cunha – Parecer 39/2011 CDL
Manuel Leite da Silva
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