Parecer Nº 12/PP/2018-C
Processo de Parecer n.º 12/PP/2018-C
Requerente – Dra. IN (…)
Objecto: Documentos a entregar a cliente
Por requerimento entrado neste Conselho em 13/03/2018, veio a requerente, Dra. IN (…), solicitar parecer sobre a seguinte situação:
“No ano de 2016, no âmbito do Processo de Promoção e Protecção (…), fui nomeada patrona ao progenitor – FT (…).
Já no decorrer de 2018, o mesmo constituiu mandatária.
Na passada sexta feira, despois das 18.30h, quando já me encontrava em casa, liga-me insistentemente a esposa do Sr. FT (…), dizendo que queria determinado despacho, naquele momento, uma vez que o marido na segunda feira não estava.
Respondi, que já não iria ao escritório e que também na segunda (hoje) não estava.
A mesma afirmou que hoje de manhã o marido estaria à porta do meu escritório para eu lhe dar cópia de todos os despachos desde a nomeação.
Deixei entregue todos os documentos que o casal me tinha entregue, enviando-lhe sms nesse sentido e concluindo que o processo para consulta e cópia dos documentos se encontra em suporte físico, no respectivo Tribunal.
Queira por favor V. Exa. informar-me se me encontro obrigada a fornecer os despachos que me foram enviados via citius, enquanto patrona (sendo que alguns nem foram imprimidos e o processo já não se encontra disponível), ou se pelo contrário deverá ser a nova mandatária a fazer a respectiva consulta no Tribunal (sendo processo confidencial não tem tramitação electrónica).”[sic]
Considerando que se encontram reunidos todos os pressupostos para emissão deste Parecer, e que esta questão é, territorial e hierarquicamente, assunto sobre o qual este Conselho Regional se deve pronunciar, foi este processo entregue à aqui Relatora.
O Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do presente parecer, não apenas porque se trata de situação que ocorre em localidade pertencente à sua área de competência territorial, cfr. o art. 54º, nº1 do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante designado por EOA), mas ainda porque configura questão de carácter profissional submetida à sua apreciação, relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) desse normativo, tem competência para se pronunciar.
A questão formulada é relativa às relações entre advogado e cliente, expressamente prevista no artigo 101.º do E.O.A..
Determina o artigo 101.º do Estatuto da Ordem dos Advogados:
“Valores e documentos do cliente
1 — O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.
2 — Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objetos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.”
No caso em apreço, a questão que nos é colocada cinge-se tão somente à obrigação de entrega ao cliente, após a cessação de mandato dos despachos que foram enviados à Sra. Advogada, no decurso do mandato.
Admitir que os despachos judiciais devem ser entregues após a cessação do mandato, estaria a criar-se um dever deontológico que não tem respaldo em qualquer disposição legal ou é sequer fundada em uso, costume ou tradição profissionais (artigo 88.º n.º 1 do E.O.A.).
Com que fundamento sensato se pode dizer que uma cópia de um despacho pertence ao constituinte/patrocinado?
Em sede de jurisprudência esta questão vem sendo proficuamente debatida.
De modo esclarecedor o Parecer n.º E-11/00, aprovado na Sessão do Conselho Geral de 13.09.2000, em que foi relator Carlos Guimarães, refere entre o mais o seguinte:
“Foi intenção do legislador assegurar que o cliente não ficasse coarctado nos seus direitos pela não entrega de "valores ou objectos".
Neste sentido Dr. Augusto Lopes Cardoso, em Parecer emitido enquanto Presidente do Conselho Distrital do Porto, em 4.11.85, in ROA, 46-269, "...a lei é bem clara em fazer prevalecer o interesse do ex-cliente sobre o do advogado (...) o contencioso entre patrono e patrocinado não deve chegar ao nível do prejuízo concreto e palpável deste último, sob pena de se poder cair na tentação da pressão ilícita como meio de obter pagamento de honorários e reembolso de despesas."
Assim, e no seguimento deste parecer, é entendimento pacífico que o advogado apenas pode exercer direito de retenção relativamente àqueles valores e objectos que lhe foram confiados pelo cliente que não sejam necessários para a prova do direito do cliente, ou relativamente àqueles cuja retenção não acarreta, para o cliente, prejuízos graves.
De acordo com a anotação ao art. 84º do E.O.A., do Dr. Alfredo Gaspar, "...deve o Advogado assegurar ao ex-cliente as condições que lhe permitam a defesa satisfatória dos seus direitos, devolvendo-lhe todos os valores e elementos de prova que conservar em seu poder - à excepção daqueles em relação aos quais possa invocar o direito de retenção (nº 2)."
Os "valores" a que refere o art. 84º do E.O.A., e cuja retenção, de acordo com o seu nº 2, é lícita ao advogado como caução ao pagamento de honorários e ou reembolso de despesas, abrangem todos os documentos económica ou subjectivamente relevantes.
Escreve, ainda a este propósito, o Dr. Lopes Cardoso: "Apenas o direito de retenção é, por natureza, uma garantia especial de uma obrigação, como tal sendo tratado na lei e assim considerado na doutrina (C. Civ., arts. 754º e segs.). Segue-se que tem que ter um conteúdo patrimonial, susceptível de garantir economicamente a dívida de honorários e o reembolso de despesas, e não é mero instrumento de pressão.
Por isso quando a lei se referiu a "valores" ("outros valores") a respeito dos quais o Advogado pode exercer direito de retenção, não podia excluir os documentos que, pela sua especial natureza, se traduzam em valores económicos capazes de servirem de garantia às obrigações em causa. Será o caso de títulos de crédito ou outros documentos confessórios de dívidas, etc. ..."
B - O art. 84º E.O.A. in casu:
Ora, as fotocópias de peças processuais e de despachos judiciais não podem ser considerados "valores" do cliente, necessários ou até indispensáveis para prova do seu direito, e cuja retenção, pelo advogado, possa trazer graves prejuízos. Ou seja, o advogado não está obrigado a devolver essas cópias, nomeadamente de peças processuais por si elaboradas.
Apenas se concebe uma hipótese de tais cópias poderem ser eventualmente consideradas "valores do cliente", para efeito da aplicação das normas em apreço.
É a situação, extrema, de não haver tempo suficiente para que o próprio cliente, ou seu mandatário judicial, as consigam obter com a necessária urgência, v.g., para intentar uma providência cautelar. E nesta hipótese, abrangida, então pelo 84º nº 1, passam a ser valores, e "valores necessários para prova do direito do cliente" e cuja retenção pode "trazer a este prejuízos graves", pelo que, não se enquadrando no nº 2 do dito art., o advogado não pode delas servir-se para assegurar o pagamento dos seus honorários, exercendo a retenção.
Aliás, uma devolução desse tipo exigiria, até, a completa eliminação dessas peças no próprio computador - arquivo pessoal - do advogado, o que não se admite.
No entanto, apesar de tais cópias não se enquadrarem no nº 1 do art. 84º do E.O.A. e, por conseguinte, caberem no seu nº 2, i.e., poderem ser objecto de retenção, pelo advogado, para pagamento de honorários, tratando-se de cópias, estas não serão, certamente, suficientes para fazer com que o cliente proceda a esse pagamento.
Isto, pois, não sendo documentos originais, mas apenas cópias de trabalhos elaborados pelo advogado e de despachos, não possuem valor económico em si, nem tampouco valor subjectivo relativamente ao cliente que, com toda a facilidade, por si próprio, directamente, ou através de mandatário judicial pode ter acesso a esses documentos.
III - Conclusão:
1ª - As simples fotocópias de peças processuais e de despachos judiciais, sendo duplicados, i.e., reproduções de originais, não são valores do cliente, até porque não foram entregues, confiados pelo cliente ao advogado; pelo que
2ª - O advogado não é obrigado a entregá-las ao cliente, nem sobre elas pode exercer "direito de retenção para garantia do pagamento dos honorários e reembolso de despesas".”
Embora redigido ao abrigo do Decreto-lei n.º 84/84, de 16 de Março, as disposições legais indicadas encontram respaldo na Lei n.º 145/2015 de 9 de Setembro, mantendo-se actuais.
Voltando à questão colocada…
Importa concluir sem mais delongas que, as fotocópias de despachos judiciais, não estão compreendidas nos “valores e documentos” que têm de ser entregues ao cliente, cessado que seja o mandato. Tanto mais que a todo o tempo, quer o constituinte, quer o mandatário que venha a ser constituído, poderão ter acesso a tais despachos.
Não poderemos deixar de referir que por uma questão de entreajuda, solidariedade entre colegas, não impendendo tal dever sobre o advogado que cessa o mandato, frequentemente essas peças/despachos são cedidas ao colega que sucede no patrocínio.
Contudo, se bem atentarmos a Sra. Advogada confessa que alguns dos despachos nem foram impressos… Não é de estranhar tanto mais que o próprio pedido de parecer é manuscrito. Assim é de crer que efectivamente não dispõe dos mesmos.
Isto levar-nos-ia a outra questão de relevo, actual mas sucessivamente adiada, relativa ao dever do Advogado, manter “um domicílio profissional dotado de uma estrutura que assegure o cumprimento dos seus deveres deontológicos” - 91º, al. h)”… Mas não é esta a questão a dirimir.
Dito isto:
- Cessado o mandato, o advogado não tem que entregar cópia dos despachos que recebeu ao cliente, não constituindo tais despachos qualquer “valor ou documento” ao abrigo do disposto no artigo 101.º do EOA.
Este é o nosso Parecer.
Tomar, 10 de Maio de 2018
À sessão do CRC de 11 de Maio de 2018.
(escrito pela antiga grafia)
Maria de Fátima Duro
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