Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 14/PP/2018-C

Processo de Parecer n.º 14/PP/2018-C

 

Por ofício datado de 7 de Março de 2018 e através do douto despacho proferido nos autos de processo comum nº (…), veio a Exmª. Senhora Juíza do Juízo de Família e Menores da (…) do Tribunal Judicial da Comarca de (…) solicitar que este Conselho Regional de Coimbra se pronuncie sobre a eventual existência de conflito de interesses da Srª Advogada ali visada, Drª BF (…), mandatária/patrona da ali Ré porquanto nos demais apensos e no processo principal a Srª Advogada visada representou a mesma pessoa, encontrando-se porém esta na qualidade processual de Autora.

 

A acompanhar o douto despacho proferido a solicitar a emissão de parecer sobre a existência, ou não, do aludido conflito de interesses, foi remetida cópia extraída do aludido processo de requerimento apresentado pelo ali Autor, AG (…) e subscrito pelo seu Advogado, Dr. JC (…), no qual requer que “Seja requerido à Ordem dos Advogados parecer sobre a legitimidade do patrocínio pela Ilustre mandatária Drª BF (…), nomeada à Ré DM (…), no presente processo, em virtude de ter patrocinado todos os anteriores processos da mesma, quando era autora e cujo litigio tem por base esses mesmos processos” e concluir que “Esta nomeação pode conflituar com o disposto nos artigos 88º, nº 1 e 99º, nº 1 da lei 145/2015 de 09 Set”.

 

Face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – e porque a questão, singela e simples e que se reconduz à análise do artigo 99º do EOA cuja norma se destina a evitar o conflito de interesses e ainda, porque é indiscutível que a decisão sobre a verificação, ou não, de tal conflito compete em exclusivo à Ordem dos Advogados, deve ser emitido o solicitado parecer.

 

Desde já antecipando a conclusão que se extrairá, face à simplicidade da situação cuja análise foi solicitada, é indiscutível que não existe, qualquer conflito de interesses por parte da Srª Advogada visada.

 

Como se referiu, a questão da eventual existência de um conflito de interesses é colocada tendo por base, apenas e tão só, o facto de a Srª Advogada visada patrocinar a pessoa que tem sempre patrocinado naquele processo (quer no processo principal quer em apensos), mas que esta, que anteriormente sempre assumiu a posição processual de Autora, no apenso agora em causa, passou a ter a posição processual de Ré.

 

Sendo muito simples e escorreitos os factos analisemos o enquadramento jurídico.

 

O Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no EOA, sendo que só o cumprimento escrupuloso e rigoroso de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado e o Cliente, sendo neste capítulo e designadamente no artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser, como supra se referiu, avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):

 

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente

6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”  

 

A norma em causa (art. 99º do EOA e que reproduz o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) visa defender a comunidade geral, mas também os clientes de um Advogado de qualquer actuação menos licita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem visar a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.[1]

 

«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[2]

 

É o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficaram salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, interprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[3] 

 

Assim, o nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

 

O nº 2, por maioria de razão, impõe que o Advogado recuse o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

 

Por sua vez, o nº 3 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado não aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

 

Ora, no caso em análise a conduta da Srª Advogada visada não se enquadra em nenhum dos números daquele artigo, porquanto, como aliás o próprio requerimento onde se suscita a eventual existência de um conflito de interesses expressamente refere, a Srª Advogada em causa sempre patrocinou a D. DM (…) em todos os anteriores processos da mesma. Ou seja, é manifesto que não existe um cruzamento ou intersecção de interesses que possa suscitar a existência de conflito de interesses, pois a Srª Advogada não só sempre patrocinou a mesma pessoa como não resulta dos elementos e dos factos alegados que patrocine simultaneamente, naquele processo (principal e apensos), um outro cliente que pudesse estar em situação, declarada, emitente ou latente, de conflito de interesses.

O facto de o cliente ou patrocinado ter em processos ou em apensos distintos posições processuais diferentes (ser Autor ou Réu) não tem influência no decoro ou na lealdade que necessariamente deve existir no plano das relações entre advogado e cliente, visando a preservação do imprescindível valor da confiança, nem tal circunstância comporta qualquer risco de quebra do segredo profissional, riscos e interesses que aquele artigo 99º do EOA pretende acautelar.

 

 

Conclusão:

 

Não existe violação do disposto no artigo 99º do EOA e consequentemente não existe conflito de interesses, no exercício do mandato ou patrocínio do mesmo Cliente ou patrocinado, no mesmo processo (seja no processo principal seja em apensos), independentemente deste poder ter, no processo principal e/ou apensos diferentes, posição processual diferente, designadamente, de Autor ou Réu.   

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 

Comunique-se ao processo supra referido.

 

            Coimbra, 11 de Maio de 2018

 

            À sessão do Conselho Regional de Coimbra

 



[1] Valério Bexiga, in Lições de Deontologia Forense, pág. 324 

[2] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111

[3] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262

 

 

Manuel Leite da Silva

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