Parecer Nº 19/PP/2018-C
Processo de Parecer n.º 19/PP/2018-C
Por oficio entrado por correio eletrónico no dia 17 de Maio de 2018 no Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, veio a Exmª Srª Juiz de Direito do Juiz 1 do Juízo de Execução do Entroncamento do Tribunal Judicial da comarca de Santarém solicitar que este se pronuncie sobre a existência de incompatibilidade no patrocínio da embargante (de terceiro) e da executada embargada pelo mesmo mandatário, no processo nº (…) que corre termos naquele Juízo, tendo junto cópia do despacho de 11.04.2018, da petição de embargos de executado e da petição de embargos de terceiro.
Face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial própria, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.
Este Conselho Regional aprovou recentemente, designadamente em 12 de Janeiro de 2018 o Parecer 41-PP-2017, também relatado pelo aqui subscritor e que versava sobre idêntica questão, pelo que se irá seguir de muito perto o teor do mesmo.
Para melhor enquadramento da questão concreta e atento o teor da documentação anexa ao pedido formulado temos que:
Maria Otília (…) executada nos autos acima indicados deduziu embargos de executada sendo patrocinada pelo Exmº Sr. Dr. Joaquim José Jorge Patrício;
Cristina Maria (…) veio, também naqueles autos, deduzir embargos de terceiro, sendo também patrocinada pelo Exmº Sr. Dr. Joaquim José Jorge Patrício;
Nos embargos de terceiro, a embargante, que é irmã da executada, alega que alguns dos bens penhorados à ordem daqueles autos de execução lhe pertencem e que os havia emprestado à sua irmã, a referida executada Maria Otília.
Importa, face ao enquadramento fáctico acima descrito, verificar se existe incompatibilidade para o patrocínio simultâneo da executada e da embargante de terceiro.
Como sabemos o Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no Estatuto da Ordem dos Advogados, sendo que só o cumprimento escrupuloso e rigoroso de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.
O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado com os Clientes, sendo neste capítulo e designadamente no seu artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):
“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”
A norma citada (art. 99º do EOA e que reproduz o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados – Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) visa, por um lado, defender a comunidade geral e os clientes de um Advogado de qualquer actuação menos licita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem visar a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.
«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[1]
É o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficaram salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, interprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[2]
O nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
E o nº 2, por maioria de razão, impõe que o Advogado recuse o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
O nº 4 daquele preceito por sua vez prevê que se surgir um conflito de interesses entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes no âmbito desse conflito.
O conflito de interesses resulta, como se referiu, dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado o que impõe, desde logo e em primeira linha, que se trata de uma questão de consciência do Advogado[3], cabendo-lhe em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de um conflito entre os interesses dos seus clientes.
Ora, atenta a descrição factual acima efetuada e que resulta das peças processuais anexas ao pedido formulado a este Conselho Regional temos, como questão essencial, a representação pelo mesmo Sr. Advogado e na mesma execução, da executada e da embargante de terceiro, pelo que desde logo encontra-se preenchido o primeiro requisito do nº 1 do aludido artigo 99º do EOA que analisamos, porquanto dúvidas não existem de que os embargos de terceiro constituem, como apenso que são da execução, uma questão conexa com esta, tanto que a procedência destes embargos tem a capacidade de produzir efeitos na execução.
Assim, torna-se necessário verificar se a embargante de terceiro se pode considerar como “parte contrária” relativamente à executada.
A lei processual civil, no artigo 26º do Código de Processo Civil (CPC), utiliza para a definição de legitimidade a verificação de um interesse comum em demandar ou em contradizer, a ser determinado objetivamente, sendo manifesto que o interesse objectivo do executado pode não coincidir com o interesse objectivo do embargante ao intervir na execução, deduzindo embargos e, por essa razão, nos termos do artigo 328º do Código de Processo Civil, deduzidos e recebidos os embargos é o executado (para além do exequente) notificado para os contestar. Ora, transpondo para o caso concreto, sempre conduziria (ou terá conduzido porque se ignora o estádio da marcha processual dos autos em causa) a que o Sr. Advogado fosse notificado, enquanto mandatário da executada, para contestar, querendo, os embargos que ele próprio, enquanto mandatário da embargante, minutou e apresentou!
É assim manifesto que o Sr. Advogado que patrocina simultaneamente executada e embargante de terceiro na mesma execução encontra-se numa situação de conflito de interesse.
E, diga-se ainda, que a relação entre executada e embargante nada altera quanto àquele conflito. Poder-se-ia sustentar que se a irmã da executada defende os seus direitos relativos aos seus bens que, nos termos da sua alegação, emprestou à sua irmã, então poderia parecer que não existiria conflito de interesses se esta, a executada, não puser em crise terem sido indevidamente penhorados aqueles bens.
Mas tal não é sustentável, porque nos termos do nº 4 do citado artigo 99º do EOA, se “(…) ocorrer risco de (…) diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito”, por outro, o artigo 89º do EOA consagra um dos pilares fundamentais da deontologia dos advogados, o principio da independência, o qual impõe que o advogado, no exercício da sua profissão, mantém sempre e em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resultar dos seus próprios interesses, ou influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao(s) seu(s) cliente(s).
Em questão similar e concluindo, também, pela existência de conflito de interesses, pronunciou-se este Conselho Regional no parecer acima referido (41/PP/2017) e o Conselho Distrital do Porto no seu parecer 48/PP/2009-P.
Conclui-se assim que existe conflito de interesses quando o mesmo Advogado patrocina no mesmo processo embargante de terceiro e executada.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
À sessão do Conselho Regional de Coimbra
Coimbra, 8 de Junho de 2018
[1] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111
[2] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262
[3] Paulo Sá e Cunha – Parecer 39/2011 CDL
Manuel Leite da Silva
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