Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 17/PP/2018-C

Processo de Parecer nº 17/PP/2018-C

 

Requerente: LR...

Objecto: Incompatibilidade para o exercício da advocacia

 

I -

 

Por e-mail que dirigiu ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, datado de 17 de Abril de 2018, o Exmº Sr. Dr. LR..., veio solicitou a emissão de parecer sobre a eventual incompatibilidade entre o exercício da advocacia e o desempenho de funções, remuneradas, de presidente da direcção de um estabelecimento de ensino privado. Mais esclarece que se encontra inactivo desde 21.01.2002.

 

Não tendo o Requerente informado qual o estabelecimento de ensino em causa, veio a ser solicitado que este identificasse o mesmo, o que aquele fez, por comunicação dirigida a este Conselho datada de 15 de Junho de 2018, referindo que se trata de uma escola Profissional, no caso concreto a Escola Profissional de …

 

No seguimento da informação prestada pelo Requerente, e verificado o site institucional da Escola Profissional de …, retirou-se que esta “foi criada ao abrigo do Decreto-Lei nº70/93 de 10 de Março, em regime de contrato-programa com o Ministério da Educação, homologado em 29 de Julho de 1993, conjuntamente com o aditamento ao mesmo contrato em 24 de Fevereiro de 1995, adaptando-se ao novo regime legal de acordo com o Decreto-Lei nº4/98 de 8 de Janeiro.” (actual Decreto-Lei n.º 92/2014 de 20 de Junho).

 

Concluiu-se ainda que a entidade proprietária da mencionada Escola  é a Escola Profissional de … - Cooperativa de Interesse Público e Responsabilidade Limitada que assume a natureza Jurídica de Cooperativa, com o NIPC  … e com sede na Rua …

 

Assim, e com o objectivo de obter esclarecimentos necessários à emissão de parecer, foi o Requerente novamente notificado para juntar cópia dos Estatutos da entidade em que este exerce funções como presidente da direcção, cargo que justificou o esclarecimento por ele solicitado, o que este fez por comunicação datada de 19 de Julho de 2018.

 

Considerando que se encontram reunidos todos os pressupostos para emissão deste Parecer, e que as questões são, territorial e hierarquicamente, assuntos sobre os quais este Conselho Regional se deve pronunciar (art.º. 54º, nº1 al f) do Estatuto da Ordem dos Advogados), foi este processo entregue à aqui Relatora.

 

Posto isto e apreciando,

 

II –

 

Pretende o Requerente seja emitido parecer sobre a possibilidade de este, sendo Presidente da Direcção de um estabelecimento de ensino privado, regressar ao exercício da advocacia. Perante os estatutos disponibilizados, vejamos, em primeiro lugar a natureza da instituição em causa e os seus fins e finalidades, para após isso, concluirmos pela existência – ou não – de incompatibilidade (ou impedimento) entre o cargo exercido actualmente pelo Requerente e o exercício da advocacia, sendo essa, em súmula, a questão que se pretende ver tratada.

 

Refere o Requerente ser Presidente da Direcção da ESCOLA PROFISSIONAL DE … -"COOPERATIVA DE INTERESSE PÚBLICO E RESPONSABILIDADE LIMITADA", que, de acordo com os Estatutos juntos aos autos, “é uma Cooperativa de ensino, polivalente, de interesse público, de prestação de serviços e tem como objectivo o ensino profissional, a educação e a valorização dos recursos humanos, nos termos do Decreto-Lei número quatro barra noventa e oito, de oito de Janeiro[1].

 

Também com recurso aos referidos estatutos, temos que “O capital social cooperativo é subscrito da seguinte forma:

a) Município de …, como parte pública, subscreve títulos de capital no montante de quarenta e cinco mil euros;

b) A "ADERETON - Associação de Desenvolvimento da Região de ...", subscreve títulos de capital no montante de noventa mil euros;

c) O restante capital de quinze mil é subscrito por pessoas singulares, com o mínimo de títulos no montante de seiscentos euros cada.”[2]

 

A Direcção da referida Escola Profissional de … – Cooperativa de Interesse Público e Responsabilidade Limitada “ é composta por cinco membros efectivos, sendo: um presidente, um vice-presidente, um secretário, um tesoureiro e um vogal; e, ainda, um membro suplente[3], sendo esta um o “órgão de administração e representação da cooperativa[4]

 

Parece-nos inequívoco que a Escola Profissional de … – Cooperativa de Interesse Público e Responsabilidade Limitada é uma Cooperativa de interesse público que, nos termos do artº. 6º. do Código Cooperativo[5] se designa também por “régie cooperativa”. Estas cooperativas são caracterizadas “ pela participação do Estado, de outras pessoas coletivas de direito público e de cooperativas, de utentes de bens e serviços produzidos ou de quaisquer entidades da economia social.” e regem-se pelo regime estabelecido no Decreto Lei nº. 31/84, de 21 de Janeiro[6] assim como pelos respectivos estatutos.

 

Nos termos do nº1 do Decreto Lei nº 31/84, as” régies cooperativas, ou cooperativas de interesse público, são pessoas em que, para a prossecução dos seus fins, se associam o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público e cooperativas ou utentes dos bens e serviços produzidos ou pessoas colectivas de direito privado, sem fins lucrativos”, sendo que estas apresentam especificidades em relação ao regime das cooperativas puras e simples, regendo-se pelo Decreto Lei citado e, supletivamente, pelo disposto no Código Cooperativo e legislação complementar.

 

O diploma explicita ainda, no nº3 d art.1º que “são, entre outras, indicativas de fins de interesse público as situações em que a prossecução do objecto da cooperativa dependa da utilização, nos termos permitidos pela lei, de bens do domínio público, ou do domínio privado indisponível do Estado, ou se traduza no exercício de uma actividade que a Constituição ou a lei vedem à iniciativa privada”.

 

Na primeira versão do Decreto Lei 31/84, de 21 de Janeiro, foi mesmo questionado se as cooperativas de interesse público violariam princípios cooperativos, tendo o  Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade do diploma.

 

Do acórdão então proferido[7], retiram-se alguns ensinamentos relevantes para melhor entendermos a natureza das cooperativas em análise, que pela sua pertinência, nesta sede deixamos transcritos. Assim, o aresto em causa diz-nos que “O diploma cujas normas estão sub iudicio - o Decreto-Lei 31/84, de 21 de Janeiro - veio regulamentar a figura das régies coopertivas de interesse público, que são pessoas colectivas em que, para a prossecução dos seus fins - fins de interesse público - se associam o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público e cooperativas ou utentes dos bens e serviços produzidos. (…) A sua lógica repousa na consideração de que as colectividades públicas (Estado, províncias, municípios, departamentos) e certas grandes colectividades privadas ou semipúblicas podem, na medida em que representam os cidadãos nelas agregados, ser consideradas como consumidores indirectos de determinados serviços de interesse geral [Cf. Boletim de Ciências Económicas, suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito, vol. XIII, 1970, p. 46.] “

 

Ainda, “é, pois, indubitável que algumas das normas do diploma legal sub iudicio não são compatíveis com os princípios cooperativos atrás enunciados, cuja observância a Constituição impõe às cooperativas. Mas inquestionável é também que o legislador invoca razões de interesse público para dar uma especial modelação ao regime jurídico das régies cooperativas. Acresce que a existência destas, beneficiando de um estatuto similar ao das cooperativas no que toca a direitos e benefícios (cf. artigos 2.º, n.º 1, e 14.º) - ainda segundo o legislador -, encontra justificação no facto de haver que dar resposta a necessidades públicas que, de outro modo, não encontrariam cabal satisfação. O que assim se pretende é pôr o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público a cooperar com cooperativas e ou utentes de bens e serviços, a fim de acorrer a necessidade dos cidadãos que eles, só por si, teriam dificuldade em satisfazer. A atribuição de um estatuto de privilégio às régies cooperativas não se apresenta, assim, como irrazoável, arbitrária ou materialmente infundada, nem como desincentivadora da constituição de cooperativas. “ (sublinhado nosso)

 

Tratam-se, de facto, de entidades que estão sujeitas a regimes especiais de direito público, por desenvolverem actividades de interesse público, defendendo mesmo Gomes Canotilho e Vital Moreira que “As régies cooperativas, desde que contem com uma participação pública maioritária no capital ou na gestão da empresa, estão inequivocamente integradas no sector público[8]. No caso em apreço, a Câmara Municipal não detém a maioria da participação na Cooperativa, mas mantém-se os pressupostos que levaram à sua criação, ou seja a prossecução de actividades de interesse público, in casu o ensino, sendo esta a entidade proprietária da Escola Profissional de ….

 

Temos, por isso que presente cooperativa é também, segundo os Estatutos, uma cooperativa de ensino, definindo-a, o Regime Jurídico das Cooperativas de Ensino (Decreto-Lei nº 441-A/82 de 6 de Novembro ), como a que tenha  “por objecto principal a manutenção de um estabelecimento de ensino[9].

 

Por sua vez, a Escola Profissional de …, como acima se deixou dito, “foi criada ao abrigo do Decreto-Lei nº70/93 de 10 de Março, em regime de contrato-programa com o Ministério da Educação, homologado em 29 de Julho de 1993, conjuntamente com o aditamento ao mesmo contrato em 24 de Fevereiro de 1995, adaptando-se ao novo regime legal de acordo com o Decreto-Lei nº4/98 de 8 de Janeiro.”

Este último decreto-lei foi revogado pela Decreto-lei 92/2014 de 20 de Junho[10], mantendo-se, contudo, a certeza que as entidades proprietárias de escolas profissionais com autorização de funcionamento têm um regime especial de utilidade pública.   

 

Efectuada uma, ainda que breve, resenha sobre a natureza da Escola Profissional de … – Cooperativa de Interesse Público e Responsabilidade Limitada, vejamos se as funções de Presidente da Direcção são, ou não incompatíveis com o exercício da advocacia, face ao disposto no Estatuto da Ordem dos Advogados sobre esta matéria,

 

O art.º. 81º do EOA, refere no seu nº1 e 2, que:

1 - O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.

2 - O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.

 

Sumariamente diremos que o regime das incompatibilidades e Impedimentos pretende garantir a independência, isenção e o próprio decoro do advogado e, ainda, evitar que qualquer outra actividade ou função exercida por aquele colida com a sua dignidade e com princípios básicos do exercício da advocacia, nomeadamente pela via da angariação de clientela e/ou limitação da liberdade na condução das matérias que lhe são confiadas. Como refere Fernando Sousa Magalhães “ no campo das incompatibilidades e impedimentos concorrem de forma convergente os princípios deontológicos estruturantes da independência e da dignidade profissional, esta na perspectiva do interesse público inerente à função social da advocacia”.[11]

 

 No  art.º. 82º EOA  consta a indicação, meramente exemplificativa, de cargos, funções e actividades consideradas incompatíveis com o exercício da advocacia, indicando-nos o nº1 que, são incompatíveis com o exercício da advocacia os seguintes cargos, funções e atividades:

al. i) Trabalhador com vínculo de emprego público ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local;

al. j) Membro de órgão de administração, executivo ou director com poderes de representação orgânica das entidades indicadas na alínea anterior;

Perante isto, temos que o Requerente exerce funções de Presidente da Direcção da Escola Profissional de … – Cooperativa de Interesse Público e Responsabilidade Limitada, prevendo os Estatutos que “A Direcção é o órgão de administração e representação da cooperativa[12], sendo que a entidade se obriga “com as assinaturas conjuntas de dois membros da Direcção[13].

 

Da análise efectuada da natureza e finalidades da entidade em apreço, não nos parece resultar qualquer dúvida que a mesma enquadra a noção de entidade que prossegue finalidades de interesse público, tal como consta da al. i) do art. 82º do EOA, sendo o Requerente membro do órgão de direcção com poderes de representação da mencionada entidade, nos termos da al. j) do mesmo normativo.

 

Parece-nos, por isso, ser de concluir que a situação em apreço enquadra o disposto no art. 82º nº1 al. i) e j) do EOA, pelo que existe situação de incompatibilidade entre o exercício da advocacia e as funções de presidente da Direcção da Escola Profissional de … – Cooperativa de Interesse Público e Responsabilidade Limitada, pelo que enquanto se mantiver em tal cargo, não poderá o Requerente  acumular o mesmo com o exercício da Advocacia.

 

 

III –

Concluindo,  

 

1-      O Estatuto da Ordem dos Advogados, nomeadamente no seu art. 82º nº1 al. i) e j), prevê a incompatibilidade entre o exercício da advocacia e director com poderes de representação orgânica das entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público.

 

2-      O cargo de Presidente da Direcção de uma cooperativa de interesse público, ou régie cooperativa, proprietária de uma Escola Profissional, é incompatível com o exercício da advocacia.

 

3-      O Requerente, enquanto se mantiver no cargo de Presidente da Direcção da Escola Profissional de … - Cooperativa de Interesse Público e Responsabilidade Limitada, não poderá acumular o mesmo com o exercício da Advocacia.

 

É este o nosso parecer

 

Leiria, 07 de Setembro de 2018

 

À sessão do Conselho Regional de Coimbra

 



[1] Cfr. Artigo Quarto dos Estatutos.

[2] Cfr. Artigo Sétimo dos Estatutos

[3] Cfr. Artigo Trigésimo Sexto dos Estatutos

[4] Cfr. Artig Trigésimo Sétimo dos Estatutos

[5] Aprovado pela Lei 119/2015 de 31.08

[6] Com as alterações introduzidas pelo Dl. 282/2009 de 07.10

[7] Acórdão nº 321/89, de 29 de Março, publicado a 20 de Abril, na 1ª Série do Diário da República

[8] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa anotada, I Vol. Coimbra, 2007, p. 988;

[9] Art. 2º do Regime Jurídico das Cooperativas de Ensino

[10] Que procedeu à revogação do Decreto-Lei n.º 4/98, de 8 de janeiro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 74/2004, de 26 de março, 54/2006, de 15 de março, e 150/2012, de 12 de julho

[11] Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, 2015, 10ª Edição, Comentário ao art. 81º, Anot.3

[12] Cfr. Artigo Trigésimo Sétimo dos Estatutos

[13] Cfr. Artigo Trigésimo Nono dos Estatutos



Sílvia Carreira

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