Parecer Nº 24/PP/2018-C
Processo de Parecer nº 24/PP/2018-C
Em 4 de Junho de 2018, a Delegação da Ordem dos Advogados de Tomar, solicitou ao Sr. Presidente do Conselho Regional de Coimbra, a emissão de parecer perante a seguinte situação que se lhe apresentou:
“Acontece que, há sensivelmente dois meses atrás, o Colega, Dr. Manuel Carlos, foi pessoalmente contactado pelo Sr. presidente da AC..., que a pretexto de deixarem de ter avença com Advogado para racionalização de custos, e repescando as conversações de há anos atrás, pôs em equação a seguinte possibilidade:
- A AC... cederia uma sala e, sempre que necessário, o salão de reuniões aos Advogados de Tomar, ali se instalando a sede desta Delegação.
- Tal cedência seria totalmente gratuita, com a contrapartida de ser garantido apoio de e apenas consulta jurídica aos seus associados, por parte de Advogados de Tomar, em regime de voluntariado.”
Em jeito de conclusão de pedido de parecer, a Delegação da Ordem dos Advogados de Tomar sumaria a questão da seguinte forma:
“Na convicção que fazemos de existirem a funcionar em algumas zonas do país, Gabinetes de Consultadoria Jurídica, poderemos constituir também o nosso, mediante pressuposta regulamentação existente para o funcionamento daqueles gabinetes?”
O pedido de parecer foi distribuído à ora relatora em 8 de Junho de 2018.
Estamos perante uma proposta de consulta jurídica gratuita, dirigida aos associados da AC... – Associação Comercial e Industrial de …, a prestar pelos advogados do Município de Tomar, com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, concedendo aquela associação como contrapartida uma sala para a instalação da Delegação da Ordem dos Advogados de Tomar.
Vejamos o que a lei nos diz:
A Constituição da República Portuguesa no seu artigo 20º n.º 2 estatui que:
“2 -Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.”
Alberga este preceito um direito fundamental: o direito à informação e consulta jurídica. A Constituição, no entanto, não delimita o âmbito desse direito, remetendo antes para a lei, os termos em que tal imperativo constitucional deverá ser preenchido e concretizado. Há, então, que ter em conta os seguintes diplomas legais:
- a Lei n.º 34/2004 de 29 de Julho, na sua versão alterada pelos Decreto-Lei n.º 71/2005 de 17 de Março e Lei n.º 47/2007 de 28 de Agosto – Lei do Acesso ao Direito, doravante designada por LAD;
- a Lei n.º 49/2004 de 24 de Agosto – Lei dos Actos Próprios dos Advogados e Solicitadores, doravante designada por LAPAS.
Atentemos na Lei do Acesso ao Direito para aferir se nesta se consagra alguma excepção que confira a uma associação a possibilidade de prestar o serviço de consulta jurídica gratuita aos seus associados.
Havendo consciência de situações em que o recurso a Advogados no âmbito da sua profissão, tendo como natural contrapartida o pagamento de honorários pelos serviços prestados, se torna difícil em razão da situação de carência económica do consulente ou de particulares circunstâncias de cariz cultural ou social, o legislador da Lei do Acesso ao Direito (LAD), veio criar o sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais. Nesta análise, cingiremos as nossas reflexões à problemática da consulta jurídica, mesmo sabendo que o sistema de acesso ao Direito e aos Tribunais abrange ainda a modalidade de apoio judiciário.
No artigo 14º e seguintes da LAD, o legislador veio regulamentar a forma como deverá ser efectivada a prestação de consulta jurídica a quem reúna as condições legais para usufruir deste benefício. Resulta da LAD o seguinte:
- A consulta jurídica será prestada em gabinetes de consulta jurídica ou nos escritórios dos advogados que adiram ao sistema de acesso ao direito (artigo 15º n.º 1 LAD);
- Este serviço deverá, tendencialmente, cobrir todo o território nacional (artigo 15º n.º 2 LAD);
- A criação de gabinetes de consulta jurídica, bem como as suas regras de funcionamento serão objecto de aprovação por portaria de membro do Governo responsável pela área da justiça, ouvindo a Ordem dos Advogados (artigo 15º n.º 3 LAD).;
- Os gabinetes de consulta jurídica podem abranger a prestação de serviços por solicitadores em moldes a acordar entre a Câmara dos Solicitadores, a Ordem dos Advogados e o Ministério da Justiça (artigo 15º n.º 4 LAD).
- O disposto nos números anteriores não obsta à prestação de consulta jurídica por outras entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, nos termos da lei ou a definir por protocolo celebrado entre estas entidades e a Ordem dos Advogados e sujeito a homologação pelo Ministério da Justiça (artigo 15º n.º 5 LAD).
A possibilidade de criação de gabinetes de consulta jurídica fora do âmbito do sistema jurídico do acesso ao direito com outras entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos resulta expressamente da norma expressa no n.º 5 do artigo 15º da LAD.
No entanto, esta nova forma de cooperação que surgiu apenas com alteração legislativa à LAD, introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, carece de ser definida por lei ou por protocolo com a Ordem dos Advogados sujeito a homologação pelo Ministério Público.
À luz do artigo 15º da LAD é indispensável a intervenção da Ordem dos Advogados na prestação de serviços a cargo dos gabinetes de consulta. Esta intervenção é determinante para assegurar o cumprimento das normas estatutárias e demais legislação em vigor, delimitando a Ordem dos Advogados as regras do eventual protocolo, designadamente organizando as escalas dos advogados que se disponibilizem para participar na prestação de consultas no gabinete de consulta jurídica.
A referência à Ordem dos Advogados na LAD corporiza-se no Conselho Geral porquanto é este o órgão competente para definir a posição da Ordem dos Advogados, elaborando e aprovando o respectivo regulamento, ao abrigo do disposto no artigo 46º n.º 1 alínea h) do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Mormente a possibilidade prevista no artigo 15º n.º 5 da LAD, prever a celebração de protocolo para prestação de consulta jurídica, há que analisar, no caso em concreto, se a entidade que pretende tal protocolo tem os requisitos necessários para tal.
Assim, cumpre, primeiramente, apreciar se a “AC... – Associação Comercial e Industrial de …”, com o NIPC …, tem legitimidade para prestar consulta jurídica aos seus associados, ainda que por intermédio de profissional capacitado – advogado – à luz da LAPAS.
Para o efeito, tornou-se necessário diligenciar-se no Portal da Justiça pela obtenção dos estatutos da AC... - Associação Comercial e Industrial de …, os quais foram juntos ao processo.
Procurou-se, ainda, no site da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros pela confirmação se a AC... é uma associação com estatuto de utilidade pública. A pesquisa foi feita com várias designações, abreviadas e mais completas, designadamente por “AC...”, “Associação Comercial e Industrial de ...” e finalmente “AC... - Associação Comercial e Industrial de ...”. Em nenhuma das pesquisas resultou que a dita associação tenha requerido o estatuto de utilidade pública. Juntam-se ao processo os comprovativos dos resultados obtidos com as pesquisas efectuadas.
Vejamos perante os elementos recolhidos da AC... – Associação Comercial e Industrial de ... tem legitimidade ou não prestar consulta jurídica aos seus associados.
A matéria dos actos próprios dos advogados é regulamentada pelos artigos 66º a 68º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pela LAPAS. São actos próprios dos advogados o exercício da consulta jurídica. A consulta jurídica traduz-se na actividade de aconselhamento, que se consubstancia na interpretação e aplicação de normas jurídicas mediante a solicitação de terceiro.
O artigo 7º da LAPAS estatui que quem praticar actos próprios de advogados e solicitadores não cumprindo os requisitos previstos no artigo 1º do referido diploma, será punido pela prática de um crime de procuradoria ilícita. No entanto, prevê-se uma excepção à regra plasmada no n.º 1 do artigo 6º da LAPAS. No artigo 6º n.º 4 da LAPAS é excepcionado que os actos próprios dos advogados e solicitadores podem ser praticados por entidades sem fins lucrativos que requeiram o estatuto de utilidade pública, no qual submetam a autorização específica a prática de actos próprios dos advogados e solicitadores, desde que sejam praticados exclusivamente para defesa dos interesses comuns dos associados e sejam exercidos individualmente por advogado, advogado-estagiário ou solicitador.
No caso da AC..., não existem dúvidas de que a associação é uma entidade privada sem fins lucrativos, como se pode constatar nos seus estatutos artigo 1º. Nem se questiona que o aconselhamento jurídico seria feito e tem vindo a ser prestado por advogado com inscrição em vigor. No entanto, verifica-se que a AC... não dispõe de estatuto de utilidade pública. Pelo que, prejudicado fica a verificação dos demais requisitos exigidos no artigo 6º n.º 4 alíneas a), b) e c) da LAPAS, os quais são taxativos e cumulativos.
Face ao que se conclui que a AC... - Associação Comercial e Industrial de ... não preenche os requisitos legais aludidos no artigo 6º n.º 4 da LAPAS, pelo que não pode licitamente prestar serviço jurídico, designadamente consultadoria gratuita aos seus associados.
Dadas as circunstâncias, não é de todo possível a permuta nas condições propostas pelo Sr. Presidente da AC... - Associação Comercial e Industrial de ..., ou seja, obter consulta gratuita para os seus associados mediante a contrapartida de cedência de espaço destinado à instalação da sede da Delegação de Tomar.
Conclusões:
- A possibilidade de criação de gabinetes de consulta jurídica fora do âmbito do sistema jurídico do acesso ao direito com outras entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos resulta expressamente da norma expressa no n.º 5 do artigo 15º da LAD.
- A AC... - Associação Comercial e Industrial de ... é uma entidade privada sem fins lucrativos mas que não dispõe de estatuto de utilidade pública, pelo que não preenche os requisitos legais aludidos no artigo 6º n.º 4 da LAPAS.
- Não pode a AC... - Associação Comercial e Industrial de ... celebrar protocolo com a Ordem dos Advogados para prestação de consulta jurídica, com vista à criação de gabinete de consulta jurídica.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
Coimbra, 18 de Setembro de 2018
Graziela Antunes
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