Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 40/PP/2018-C

PROCESSO DE PARECER Nº 40/PP/2018-C

 

            A 20 de Dezembro de 2018 foi registada neste Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados comunicação dimanada da Comarca de V..., concretamente do Processo …/17.6T8V… que aí cursa pelo Juízo Local Cível de V.... O sobredito ofício capeia diverso expediente e solicita que se emita parecer sobre a questão de saber se “a junção aos autos da correspondência trocada entre as Ilustres Mandatárias das partes … configura violação do segredo profissional”.

Encontram-se juntas a fls. 8 do presente processo uma telecópia, datada de 22 de Março de 2016, dirigida pela Sra. Dra. ML… (Ilustre Advogada, mandatária da Ré nos sobreditos autos) à Sra. Dra. ÂS… (Ilustre Advogada, mandatária da Autora nos mesmos autos), onde se diz:

           

DRA. AP…

 

Exma. Colega

Considera a minha Cliente acima identificada que não é devedora da quantia de €10 000,00 (dez mil euros) à empresa ..., posição esta que anteriormente foi transmitida à sua constituinte.

Dado que a Dra. AP… me contactou e deu a conhecer a carta enviada pela Ex.ma Colega, venho transmitir estes dados e caso a sua cliente persista na intenção de propor a acção judicial, apresentarei a defesa nessa sede.

Com os meus melhores cumprimentos e votos de Feliz Páscoa”.

 

A fls. 9 está uma réplica exacta do mesmo texto, sendo certo que acrescentado do respectivo comprovativo de envio.

 

Apreciando:

 

Desde logo, importará assinalar que este Conselho Regional tem competência para a emissão do presente parecer, quer por se tratar de situação atinente à respectiva área de competência territorial (artigo 54º, 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados), quer porque consubstancia questão de carácter profissional relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) do sobredito inciso, lhe cabe pronunciar-se.

Por outra banda, a questão colocada colide, indubitavelmente, com matéria conexa ao dever de segredo profissional.

Ora, conforme resulta do n.º 1, do artigo 92º, do E.O.A., o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções, mesmo após o término da relação de mandato.

Saliente-se, por outro lado, que o regime da desvinculação do dever de manter segredo – pela exaustiva e minuciosa regulamentação de que é alvo no EOA e no respectivo regulamento – inculca justamente quão exigente é a sua concessão. Ora, tal condicionalismo prende-se, exactamente, à matricial importância que o sigilo profissional adquire e representa quer para a relação de confiança entre mandante e mandatário, quer, ainda e sobremaneira, pelo interesse público que lhe está subjacente, absolutamente indissociável do exercício da advocacia.

No entanto, in casu, emerge como indispensável para o sentido do parecer a emitir a indagação se a materialidade em causa está, ou não, a coberto do dever de segredo; ora, para a emissão de tal juízo mostra-se essencial considerar o teor do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados. Aí se estatui, na parte que para aqui interessa, que:

 

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

(…)

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

(…)

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

 

Da leitura dos segmentos da norma que se transcrevem parece resultar que a obrigação de guardar segredo tem uma vocação hegemónica; isto é, tudo quanto um advogado sabe no exercício funcional estará submetido ao dever de sigilo, só podendo efectuar revelações de forma extremamente limitada e nos casos rigorosamente previstos no texto legal.

Evidentemente que a referida asserção não reflecte a essência do dever de guardar segredo:

- dizendo de forma propositadamente enxuta, tal dever só existe desde que lhe subjazam obrigações de reserva e de ocultação conexas ao facto de se ter escutado uma confidência, a qual só ocorreu em virtude da confiança depositada na advocacia.  

A não ser assim, o exercício da função de um advogado seria um inferno burocrático para os profissionais que se dedicam a tal função, além de gerador de um caos permanente para os presidentes dos Conselhos Regionais da Ordem a quem compete decidir da desvinculação do dever de segredo. Na verdade, cada vez que um advogado escutasse a versão de um seu Constituinte para instruir um qualquer pedido junto de uma instância formal estaria manietado na sua acção enquanto não fosse desvinculado pelo órgão estatutariamente legitimado para o efeito do dever de segredo…

Contudo, como ressuma perspicuamente de uma qualquer actividade hermenêutica atenta aos valores e interesses que justificam a figura, esta não se erige sobre uma espúria intencionalidade de criar obstáculos ao normal exercício profissional. Com efeito e ao invés, tal específico dever radica no princípio da confiança e no dever de lealdade do advogado para com os constituintes e respeita à dignidade da advocacia e ao manifesto interesse público que a legitima.

Vale por dizer, pois, que a norma do nº 1 do artigo 92º do EOA tem, necessariamente, de ser alvo de uma interpretação restritiva; isto é, só quando estiver em causa uma confidência que traga inerente um desejo de reserva de quem a faz é que o advogado está, em princípio, sujeito ao dever de segredo.

Na hipótese dos autos é patente que a vontade que a constituinte da Senhora Advogada subscritora da telecópia enviou à Ilustre Colega destinatária não se inscreve entre as “confidências” carentes da protecção do dever de guardar segredo. Pelo contrário, a referida narrativa constitui mesmo o cerne da defesa que posteriormente foi apresentada em Tribunal.

No entanto, a sobredita indiscutível conclusão não esgota toda a problemática que aqui se suscita, já que a mesma convoca sobretudo a análise das alíneas d), e) e f) do n.º 1 do examinado artigo 92º do EOA.

Todavia, adiantando conclusões, dir-se-á que se afigura linear que a correspondência em causa não está sujeita a sigilo. Na verdade, a mesma não revela quaisquer factos comunicados à Senhora Advogada por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; nem factos que a parte contrária do cliente, ou respetivos representantes, tenham revelado durante quaisquer negociações para um desenlace amigável, nem, finalmente, alude a factos de que haja tido conhecimento em negociações malogradas em que tenha intervindo – de facto, as comunicações constantes de folhas 8 e 9 do presente processo (justamente aquelas que nos foram remetidas para análise), apenas revelam, de forma meramente proclamatória, que nada se pagará, porque nada se reconhece dever.

Assim, para rematar, em jeito de conclusão, sumaria-se:

 

a)     Os advogados apenas estão obrigados a guardar segredo do que lhes é revelado a título de confidência – que irrompe por se acreditar no dever de reserva e de lealdade para com o Constituinte que a função da advocacia reclama.

b)     Nesse conspecto, todas as informações transmitidas pelo Constituinte ao advogado destinadas a fazer valer os respectivos direitos em Juízo ou perante outra instância formal não estão sujeitas a segredo.

c)     A correspondência dimanada de um advogado, mesmo que dirigida a um Colega que patrocine interesses conflituantes com aqueles perseguidos pelo Constituinte do remetente, que reclame pagamento de quantias ou que simetricamente denegue esse pagamento, na medida em que não revela factos atinentes a qualquer negociação – em curso ou malograda – nem refere qualquer facto que lhe foi narrado pela parte contrária, não está sujeita ao dever de segredo.

d)    Sou, pois, de parecer que a junção da correspondência aqui em causa não violou qualquer dever de sigilo. 

 

Coimbra, 21 de Janeiro de 2019

 

Jacob Simões

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