Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 20/PP/2018-C

Processo de Parecer n.º 20/PP/2018-C

 

Requerente – Dra. MB...

Objecto: Casas Abrigo

 

Por requerimento entrado neste Conselho, veio a requerente, Dra. MB..., solicitar parecer sobre a seguinte situação:

[…] fui nomeada no âmbito do acesso ao direito e aos Tribunais para patrocinar uma beneficiária de protecção jurídica num processo de promoção e protecção que corre termos no Tribunal Judicial de Família e Menores de Coimbra. No âmbito do referido processo foi aplicada uma medida de apoio junto da mãe (M/Patrocinada), devendo esta permanecer acolhida com os filhos numa Casa Abrigo, pelo prazo de seis meses.

Na passada sexta-feira, fui contactada por correio electrónico pela técnica coordenadora que acompanha o caso – EMAT, que solicitou a minha colaboração para que o acolhimento fosse realizado […] compareci nas instalações da Segurança Social de Coimbra, para acompanhar aquela família […].

Questionei a Exma. Senhora Técnica da Segurança Social, sobre a localização e designação da Casa de Acolhimento, bem como sobre o número de contacto telefónico para que quando fosse necessário contactasse a M/Patrocinada, tais dados nunca me foram facultados, nem a mim nem à M/ Patrocinada, com o argumento de que eram confidenciais.

Informei a Técnica que me encontrava abrangida pelo sigilo Profissional, que a relação entre advogado e cliente assenta numa indispensável relação de confiança  e que os advogados devem ética e deontologicamente defender sempre os interesses dos seus clientes, o que implica um indispensável contacto… […]. ”[sic]

Considerando que se encontram reunidos todos os pressupostos para emissão deste Parecer, e que esta questão é, territorial e hierarquicamente, assunto sobre o qual este Conselho Regional se deve pronunciar, foi este processo entregue à aqui Relatora.

O Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do presente parecer, não apenas porque se trata de situação que ocorre em localidade pertencente à sua área de competência territorial, cfr. o art. 54º, nº1 do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante designado por EOA), mas ainda porque configura questão de carácter profissional submetida à sua apreciação, relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) desse normativo, tem competência para se pronunciar. 

A Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, consagrou o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência suas Vítimas.

O artigo 60.º deste diploma refere:

“Casas de abrigo

1 - As casas de abrigo são as unidades residenciais destinadas a acolhimento temporário a vítimas, acompanhadas ou não de filhos menores.

2 - Ao Estado incumbe conceder apoio, com carácter de prioridade, às casas de abrigo de mulheres vítimas de violência doméstica e assegurar o anonimato das mesmas.”

Já o Decreto Regulamentar n.º 2/2018 de 24 de Janeiro, veio revogar o Decreto Regulamentar 1/2006, de 25 de Janeiro, introduzindo, de forma inovadora, um conjunto de regras e de procedimentos tendo em vista a melhoria e eficácia do funcionamento das estruturas de atendimento, respostas de acolhimento de emergência e casas de abrigo, permitindo quer um processo de autoavaliação das mesmas, quer a revisão, de forma sistemática, do seu desempenho, identificando as oportunidades de melhoria e a ligação entre o que se faz e os resultados que se atingem.

A este respeito o anterior Decreto Regulamentar 1/2006, de 25 de Janeiro referia:

“Artigo 7.º

Acompanhamento

1 - O acompanhamento pessoal assenta numa intervenção sistemática e integrada, nomeadamente nas áreas do apoio social, psicológico, educacional, profissional e jurídico, e obedece à elaboração de um plano individual de intervenção.

[…]

Artigo 18.º

Articulação entre casas de abrigo, centros e núcleos de atendimento

1 - Sempre que se justifique, as casas de abrigo articulam-se com os centros e núcleos de atendimento, de forma a garantir:

b) O acompanhamento e o apoio jurídico durante a permanência das utilizadoras na casa de abrigo e aquando da cessação da permanência.”

O recente Decreto Regulamentar n.º 2/2018 de 24 de Janeiro refere:

“Artigo 5.º

Gratuitidade

Os serviços prestados pelas estruturas de atendimento, respostas de acolhimento de emergência e casas de abrigo às vítimas de violência doméstica são gratuitos.

Artigo 6.º

Apoio judiciário

Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, o apoio judiciário é prestado nos termos da legislação em vigor.

Artigo 7.º

Confidencialidade

1 — As entidades promotoras e os/as respetivos/as trabalhadores/as que intervenham em procedimentos de atendimento, encaminhamento, acolhimento e apoio às vítimas de violência doméstica estão obrigados/as ao dever de confidencialidade.

2 — O disposto no número anterior é aplicável às pessoas que se encontrem a desempenhar funções em regime de voluntariado e às restantes entidades que, no âmbito das suas funções, colaborem com as entidades promotoras.”

Neste sentido poderemos duas estruturas distintas de resposta às vítimas de violência doméstica, conforme artigo 2º do Decreto Regulamentar 2/2018:

a) «Casas de abrigo», as unidades residenciais destinadas a acolhimento temporário a vítimas de violência doméstica do mesmo sexo, acompanhadas ou não de filhos/as menores ou maiores com deficiência na sua dependência;

b) «Estruturas de atendimento», as unidades constituídas por uma ou mais equipas técnicas de entidades públicas dependentes da administração central ou local, de entidades que com aquelas tenham celebrado acordos ou protocolos de cooperação e de outras organizações de apoio à vítima que assegurem, de forma integrada, com carácter de continuidade, o atendimento, o apoio e o reencaminhamento personalizado de vítimas, tendo em vista a sua protecção;

Já a Resolução da AR n.º 4/2013, de 21 de Janeiro, relativa à Convenção de Istambul, aprova a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adoptada em Istambul, a 11 de maio de 2011 refere no seu artigo 20.º:

“Serviços de apoio geral

1. As Partes deverão adoptar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para garantir que as vítimas de violência tenham acesso a serviços que facilitem a sua recuperação das consequências da violência. Estas medidas deveriam incluir, se necessário, serviços tais como o aconselhamento jurídico e psicológico, a assistência financeira, o alojamento, a educação, a formação e assistência na procura de emprego.”

Reforçando o desiderato de combate ao flagelo que é actualmente a Violência Doméstica, o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género 2014 -2017, tem como segunda área estratégia “Proteger as Vítimas e Promover a sua Integração”.

Esta área vai ao encontro das medidas de protecção e de apoio plasmadas na Convenção de Istambul, visando a capacitação e a autonomização das vítimas e procurando melhorar o seu acesso aos serviços, em resposta às inúmeras necessidades que estas vítimas apresentam, contribuindo, assim, para a prevenção da revitimização e da vitimação secundária. Esta área, pela sua complexidade e pelas diferentes necessidades das vítimas (entre as quais aconselhamento jurídico, apoio psicológico, apoio social e económico, alojamento, formação e apoio na procura de emprego), implica um trabalho em rede entre as várias entidades, públicas e privadas, que atuam nas diferentes vertentes da violência doméstica.

Ora percorrendo a legislação aplicável é inequívoco que o apoio jurídico é fundamental a estas vítimas, sendo uma obrigação do próprio Estado.

Já a Lei n.º 145/2015 de 9 de Setembro que aprova o Estatuto da Ordem dos Advogados, dispõe no seu artigo 92.º

“Segredo profissional

1 — O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços […]”

Por último a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, relativa ao Acesso ao Direito e aos Tribunais refere entro o mais o seguinte: Artigo 31.º

“Notificação da nomeação

1 - A nomeação de patrono é notificada pela Ordem dos Advogados ao requerente e ao patrono nomeado e, nos casos previstos no n.º 4 do artigo 26.º, para além de ser feita com a expressa advertência do início do prazo judicial, é igualmente comunicada ao tribunal.

2 - A notificação da decisão de nomeação do patrono é feita com menção expressa, quanto ao requerente, do nome e escritório do patrono bem como do dever de lhe dar colaboração, sob pena de o apoio judiciário lhe ser retirado.”

No caso em apreço, a questão que nos é colocada cinge-se ao facto de o advogado estar impedido de comunicar com o cliente em função do carácter confidencial da localização das casas abrigo.

Admitir a imposição deste carácter confidencial e a proibição de contactos com o próprio cliente é fazer tábua rasa do sigilo profissional a que aquele se encontra adstrito.

Não sendo um fim em si mesmo, o segredo profissional tem um fundamento ético jurídico.

No propósito da consagração legal do dever de o guardar, está a defesa dos valores da confiança e da lealdade, transversais ao complexo das relações que o advogado estabelece no exercício da profissão, entre o mais com o cliente.

A este propósito: “O segredo profissional foi sempre considerado honra e timbre da advocacia, condição sine qua non da sua plena dignidade. (Parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de 21/04/1981, publicado na R.O.A., 41-900)”.

O segredo profissional tem assim carácter social ou de ordem pública e não natureza contratual. Ou seja, esta dimensão de interesse público que torna o segredo profissional indisponível: o Advogado está impedido de revelar factos, mesmo quando autorizado pelo seu Constituinte.

De tal forma essencial, o artigo 13º da Lei de organização e funcionamento do sistema judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de agosto) confere imunidade ao mandato conferido a Advogados:

“2 - Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

a)      O direito à protecção do segredo profissional”

Ora a violação deste dever de sigilo faz incorrer o advogado que o pratique em responsabilidade disciplinar, responsabilidade civil (artigo 483º Código Civil) e responsabilidade criminal (artigo 195º Código Penal).

Voltando ao caso concreto, podendo a vítima de violência doméstica ter em cursos processos distintos (processo crime, regulação das responsabilidades parentais, promoção e protecção, entre outros), na defesa do interesse daquele/a cliente e ou patrocinado/a, os advogados imperativamente terão de estabelecer contactos com aquele/a. Nomeadamente, existindo prazos a cumprir, tal não se compadece com uma estrutura pesada, lenta e burocrática, que em vez que promover a defesa das vítimas promove que a sua defesa seja prejudicada, afastando as vítimas da justiça.

É absolutamente inadmissível que a uma peça essencial do sistema judicial que protege os interesses destas vítimas (o advogado), seja vedado o acesso às mesmas. Sendo que o Advogado nunca pode ser excluído do processo de empoderamento destas vítimas mas como fazendo parte do mesmo.

Se por um lado o Estado tem o dever de assegurar a segurança destas vítimas, por outro lado tem de assegurar o acesso ao direito e à justiça às mesmas. Ambos são direitos constitucionalmente consagrados. Obviamente que um não terá de ceder perante o outro, sendo absolutamente compatíveis.

Se qualquer outro colaborador ou voluntário tem acesso à casa, com um dever de confidencialidade imposto por decreto regulamentar, mormente um advogado terá esse dever de sigilo imposto por Lei. Ou seja, tendo em conta a hierarquia até das próprias leis, o diploma relativo às casas abrigo surge revestido de Decreto Regulamentar, claramente com valor inferior à Convenção de Istambul e demais Leis supra citadas…

Se esse contacto será feito na própria Casa Abrigo, ou em qualquer outro local, o plano de segurança/individual elaborado pelas equipas multidisciplinares destas Casas Abrigo terá de se pronunciar.

Contudo, ab initio, um contacto nomeadamente telefónico ou e-mail deverá ser facultado para que o advogado possa atempadamente contactar com o/a Cliente.

Só assim poderá ser promovido o efectivo apoio jurídico às vítimas, o que se impõe, nomeadamente por todos os diplomas supra referidos.

Posto isto…

- Ao advogado de vítima de violência doméstica, acolhido em casa abrigo, deve ser ab initio, facultado um contacto telefónico ou email para que o advogado possa atempadamente contactar com o/a Cliente, tendo em vista a promoção dos interesses jurídicos do cliente.

Este é o nosso Parecer.

Tomar, 15 de Março 2019

 

Maria de Fátima Duro

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