Parecer Nº 27/PP/2018-C
Processo de Parecer n.º 27/PP/2018-C
Em 11 de Junho de 2018, por email remetido pela Ex.ma Sr.ª Advogada Dr.ª IM…, foi solicitado a emissão de parecer perante a seguinte situação que se lhe apresentou:
“Na qualidade de advogada da empresa de contabilidade E…, L.da, pessoa colectiva 507…, fui contactada pelo sócio gerente, contabilista certificado, que me interpelou no seguinte sentido:
Na qualidade de contabilista Certificado foi-me solicitado que tratasse do processo e pedido de consignação de IRS para uma IPSS,
Atendendo de que terei de representar a IPSS ao preencher documentos e enviar correios electrónicos, e provavelmente deslocações necessito de esclarecimentos acerca de 4 pontos:
- Na qualidade de Contabilista Certificado com plenos poderes declarativos posso proceder a tal serviço?
- Não estando mandatado para o efeito estarei a cometer procuradoria Ilícita?
- Um contabilista Certificado pode ser mandatado para o efeito?
- Há algum cuidado particular que tenha que tomar tendo em atenção a implementação do RGPD?”
Questionando ainda, a este Conselho Regional, no seguimento da questão formulada, o seguinte:
“… se dignem esclarecer se o mesmo poderá praticar tal acto, sem beliscar os preceitos legais inerentes ao crime de Procuradoria Ilícita.”
O pedido de parecer foi distribuído à ora relatora em 19 de Junho de 2018.
O Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, doravante designado por EOA, atribui competência aos conselhos regionais, no âmbito da sua competência territorial, para a pronúncia “sobre questões de carácter profissional”.
Os pareceres emitidos pelo Conselho Regional de Coimbra, doravante designado por CRC, nomeadamente os emitidos no âmbito da alínea f) do n.º 1 do artigo 54º do EOA, devem versar sobre questões claramente colocadas, que sejam de carácter profissional, sendo que, como é entendimento pacífico e muito consolidado na jurisprudência da Ordem dos Advogados, tais questões são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, designadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio, reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem.
Do pedido de esclarecimento formulado pela Ex.ma Sr.ª Advogada quanto aos cuidados a considerar tendo em conta a implementação do Regulamento Geral da Protecção de Dados, não se vislumbra que tal matéria seja enquadrável naquele conceito, como questão de carácter profissional, nos termos da citada alínea f) do n.º 1 do artigo 54º do EOA, pois não cabe a este Conselho regional esclarecer ou pronunciar-se sobre os cuidados a ter considerando as normas do RGPD.
Assim este Conselho Regional de Coimbra não tem legitimidade para fazer a solicitada apreciação sobre como aplicar ao caso em concreto as normas ínsitas no RGPD, pelo que não poderá responder a esta questão colocada pela Sr.ª Advogada requerente.
Para além desta questão, outras três questões foram colocadas pela Sr.ª Advogada requerente, as quais se prendem com a análise dos actos praticados por contabilista certificado e se aqueles se enquadram no conceito de acto próprio dos advogados e solicitadores, ou seja, se configuram a prática de procuradoria ilícita ou não?
Para responder às questões, acima enunciadas, é primordial definir o conceito de “Consignação de IRS” e qual o procedimento legal a que o mesmo se encontra sujeito para, então, se fazer uma correcta análise das questões colocadas à luz da Lei dos Actos Próprios dos Advogados e dos Solicitadores – Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto – e do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Vejamos o que a lei nos diz:
O Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) no seu artigo 152º estatui que:
“1 - Uma quota equivalente a 0,5 % do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, liquidado com base nas declarações anuais, pode ser destinada pelo contribuinte a uma pessoa coletiva de utilidade pública que desenvolva atividades de natureza e interesse cultural, por indicação na declaração de rendimentos.
2 - As verbas destinadas a entregar às entidades referidas no n.º 1 devem ser inscritas em rubrica própria no Orçamento do Estado.
3 - A Autoridade Tributária e Aduaneira publica na página das declarações eletrónicas, até ao primeiro dia do prazo de entrega das declarações, previsto no artigo 60.º, todas as entidades que se encontram em condições de beneficiar da consignação fiscal prevista no n.o1.
4 - Da nota demonstrativa da liquidação de IRS deve constar a identificação da entidade beneficiada, bem como o montante consignado nos termos do n.o1.
5 - As verbas referidas no n.o 1, respeitantes a imposto sobre o rendimento das pessoas singulares liquidado com base nas declarações de rendimentos entregues dentro do prazo legal, devem ser transferidas para as entidades beneficiárias até 31 de março do ano seguinte ao da entrega da referida declaração.
6 - A consignação fiscal prevista no presente artigo não é cumulável com a consignação fiscal prevista na Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, nem com a consignação fiscal prevista na Lei n.º 35/98, de 18 de julho, sendo alternativa face a essas consignações.”
O aludido preceito do CIRS prevê a possibilidade de os contribuintes poderem destinar a uma pessoa de utilidade pública que desenvolva actividades de natureza e interesse cultural, por indicação na declaração de rendimentos, uma quota equivalente a 0,5% do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, liquidado com base nas declarações anuais, pessoa colectiva de utilidade pública esta, escolhida pelo sujeito passivo para receber a consignação de quota do IRS prevista no artigo 152º do CIRS.
Para que estas entidades – pessoa colectiva de utilidade pública que desenvolva actividades de natureza e interesse cultural – no caso em apreço, uma IPSS, possam beneficiar da consignação de 0,5% do IRS, deverão observar determinados procedimentos. E quais são estes procedimentos e em que termos são disciplinados?
Há que ter em conta e analisar o seguinte diploma legal: Portaria n.º 22/2017, de 12 de Janeiro. Neste diploma é consagrado o procedimento para, no caso uma IPSS, poder beneficiar da consignação de IRS. No citado diploma no seu artigo 1º, dispõe o seguinte:
“1 - As pessoas coletivas de utilidade pública que desenvolvam atividades de natureza e interesse cultural, que queiram beneficiar da consignação da quota equivalente a 0,5 % do IRS liquidado aos sujeitos passivos deste imposto, nos termos do artigo 152.º do Código do IRS, deverão, junto do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC) do Ministério da Cultura, através do endereço eletrónico cultura.irs@gepac.gov.pt:
· a) Fazer prova que desenvolvem predominantemente atividades de natureza e interesse cultural, juntando cópia dos respetivos estatutos e do relatório de atividades referente ao ano anterior;
· b) Requerer a atribuição do benefício fiscal correspondente.
2 - A verificação do estatuto de utilidade pública será feita pelo GEPAC do Ministério da Cultura, através da base de dados pública «Pessoas Coletivas de Utilidade Pública» disponível em http://www.sg.pcm.gov.pt/, ou junto da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros através de correio eletrónico.
3 - As pessoas coletivas de utilidade pública de regime especial devem invocar essa qualidade e o dispositivo legal ao abrigo do qual são detentoras do estatuto de utilidade pública.”
Poderemos concluir que deverão ser as próprias pessoas colectivas de utilidade pública que queiram beneficiar da consignação de IRS, quem deverá requerer a atribuição do benefício fiscal junto do GEPAC do Ministério da Cultura, cumprindo os requisitos legalmente exigidos.
Esclarecido e definido o conceito de consignação de IRS e os respectivos procedimentos para a sua concessão, importa responder a cada uma das questões colocadas pela requerente deste parecer.
A primeira questão colocada pela Ex.ma Sr.ª Advogada requerente é se um contabilista certificado pode proceder a tal serviço?
A Lei dos Actos Próprios dos Advogados e dos Solicitadores, doravante designada por LAPAS – Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto – considera que os actos próprios ali elencados, desde que exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei. Assim, há que aferir no Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, doravante designado por EOCC – Lei n.º 139/2015, de 7 de Setembro – quais as funções atribuídas ao contabilista certificado e se estas se enquadram ou não na excepção prevista na LAPAS, no seu artigo 1º n.º 7. O EOCC no seu artigo 10º define as funções do contabilista certificado da seguinte forma: compete a estes planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades, públicas ou privadas, que possuam ou que devam possuir contabilidade organizada segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis ou o sistema de normalização contabilística, conforme o caso, respeitando as normas legais, os princípios contabilísticos vigentes e as orientações das entidades com competências em matéria de normalização contabilística; assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilísticas e fiscal, das entidades já referidas; assinar, conjuntamente com o representante fiscal das entidades referidas, as respectivas demonstrações financeiras e declarações fiscais, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Ordem, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respectivos órgãos; exercer funções de consultoria nas áreas da contabilidade e da fiscalidade; intervir, em representação dos sujeitos passivos por cujas contabilidades sejam responsáveis, na fase graciosa do procedimento tributário e no processo tributário, até ao limite a partir do qual, nos termos legais, é obrigatória a constituição de advogado, no âmbito de questões relacionadas com as suas competências específicas; e, finalmente, desempenhar quaisquer outras funções definidas por lei, relacionadas com o exercício das respectivas funções, designadamente as de perito nomeado pelos tribunais ou por outras entidades públicas ou privadas. Escrutinadas as funções do contabilista certificado no EOCC poderemos concluir que não se enquadra, em nenhuma delas, o acto de requerer junto do GEPAC do Ministério da Cultura o benefício da consignação de IRS a favor da IPSS. Pelo que a resposta a esta questão: se um contabilista Certificado pode proceder a tal serviço tem de ser negativa por não se enquadrar em qualquer das funções que são acometidas ao contabilista certificado pelo artigo 10º do EOCC. Acresce às razões acima invocadas que, nos termos do artigo 70º n.º 3 do EOCC, os contabilistas certificados apenas podem subscrever as declarações fiscais, as demonstrações financeiras e os seus anexos que resultem do exercício directo das suas funções.
A segunda questão colocada é: “não estando mandatado para o efeito estarei a cometer procuradoria ilícita?”
Ora, para que as pessoas colectivas de utilidade pública, no caso uma IPSS, possam ser representadas por terceiros, deverão mandatar estes terceiros por meio de procuração com poderes especiais para o acto. Assim sendo, como na realidade o é, não poderá o contabilista certificado requerer o benefício da consignação de IRS a favor da IPSS se não se encontrar mandatado para o efeito. Pelo que, também, relativamente a esta a questão a resposta é forçosamente negativa.
A terceira questão colocada na sequência da segunda é se o contabilista certificado pode ser mandatado pela IPSS para requerer o benefício da consignação de IRS a favor desta.
Antes de mais, saliente-se e note-se que, como acima já foi analisado, o contabilista certificado não tem a função de requerer junto do Ministério da Cultura o benefício da consignação de IRS a favor de pessoas colectivas de utilidade pública.
Mas ainda assim, é condição sine qua non verificar se este mandato pode configurar um acto próprio de advogado à luz quer da LAPAS, quer do EOA. A LAPAS define o mandato forense, como o mandato judicial conferido para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz. Considerando esta definição poderemos ser levados a concluir que poderá, então, o contabilista certificado ser mandatado uma vez que a procuração se destina a ser utilizada num processo administrativo que corre no Ministério da Cultura. Mas com a alteração do EOA em 2015, o conceito de mandato foi alargado muito para além do conceito definido na LAPAS. Senão vejamos, no artigo 67º alínea c) do EOA, é também definido como mandato forense: “O exercício de qualquer mandato com representação em procedimentos administrativos, incluindo tributários, perante quaisquer pessoas coletivas públicas ou respetivos órgãos ou serviços, ainda que se suscitem ou discutam apenas questões de facto.”. É evidente, perante esta definição de mandato forense no EOA, que o mandato de uma IPSS para poder ser representada junto do GEPAC do Ministério da Cultura no processo administrativo de obtenção do benefício de consignação de IRS a favor da IPSS é um mandato forense. No artigo 2º da LAPAS o mandato forense é classificado como um acto próprio dos advogados. Logo, tratando-se de um acto próprio dos advogados e dos solicitadores não pode este ser praticado por pessoa que não seja advogado ou solicitador, devidamente inscrito na respectiva Ordem profissional. Assim, também, a resposta a esta questão tem de ser negativa.
Na nossa opinião, o exercício de mandato forense por contabilista certificado junto do GEPAC, do Ministério da Cultura, configura a prática de procuradoria ilícita, nos termos do preceituado no artigo 1º n.º 5 alínea a) da LAPAS e punível pela prática de crime de procuradoria ilícita, previsto e punível pelo artigo 7º da LAPAS.
Conclusões:
1 – A pronúncia sobre o pedido de cuidados a ter tendo em conta a implementação do Regulamento Geral da Protecção de Dados, não é matéria que seja enquadrável no conceito de questão de carácter profissional, nos termos da citada alínea f) do n.º 1 do artigo 54º do EOA, porquanto tais questões são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, designadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem.
2 – A consignação de IRS a uma pessoa colectiva é a possibilidade de os contribuintes poderem destinar a uma pessoa de utilidade pública que desenvolva actividades de natureza e interesse cultural, por indicação na declaração de rendimentos, uma quota equivalente a 0,5% do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, liquidado com base nas declarações anuais.
3 - Escrutinadas as funções do contabilista certificado, concluímos que não se enquadra, em nenhuma delas, o acto de requerer junto do GEPAC do Ministério da Cultura o benefício da consignação de IRS a favor da IPSS. Pelo que, um contabilista certificado não pode proceder a tal serviço por não se enquadrar em qualquer das funções que são acometidas ao contabilista certificado pelo artigo 10º do EOCC.
4 – As pessoas colectivas de utilidade pública para que possam ser representadas por terceiros, deverão mandatar terceiros por meio de procuração com poderes especiais para o acto, não se encontrando o contabilista certificado mandatado não pode requerer o benefício da consignação de IRS a favor da IPSS.
5 - A representação de uma IPSS, por terceiros não advogados ou solicitadores, junto de qualquer entidade pública ou privada, designadamente do GEPAC do Ministério da Cultura, quando respeite a actos que reclamem conhecimentos jurídicos e da legislação a eles atinente e até mesmo quando apenas se suscite ou discuta meras questões de facto, configura o exercício de mandato forense, o qual configura a prática de procuradoria ilícita, nos termos do preceituado no artigo 1º n.º 5 alínea a) da LAPAS.
6 - Os actos próprios dos advogados e dos solicitadores praticados por terceiros que não sejam advogados ou solicitadores enquadram-se na prática de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punível pelo artigo 7º da LAPAS.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
Coimbra, 10 de Abril de 2019
À sessão do Conselho Regional
Graziela Antunes
Topo