Parecer Nº 03/PP/2019-C
Processo de Parecer n.º 3/PP/2019-C
A Exmª Srª Drª IG…, advogada com escritório em C…, mediante carta enviada e dirigida ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, veio solicitar a emissão de parecer sobre a interpretação do artigo 96º do EOA, no sentido de responder às sete questões que elenca, designadamente:
“1. Após a comunicação efectuada a colega ao abrigo do disposto no artigo 96º do EOA, informando que se irá intentar acção contra este, qual o prazo razoável para intentar essa mesma acção?”
“2.É razoável comunicar essa intenção em Setembro de 2016 e apenas intentar a acção em Maio de 2018, ou seja, quase dois anos após a comunicação?”
“3. É expectável que o advogado que receba a carta ao abrigo do disposto no artigo 96º do EOA, findo um ano sem que seja citado, ainda espere que a acção vai ser proposta?”
“4. É possível, que apesar da comunicação ao abrigo do citado artigo, o advogado que efectua essa mesma comunicação, seja posteriormente a entender que a mesma não tem viabilidade, desistindo da mesma?”
“5. Tem alguma obrigação de comunicar ao colega essa desistência?”
“6. Caduca a comunicação efetuada ao abrigo do artigo 96º do EOA?”
“7. Se sim, em que prazo?”
Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro, (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional de Coimbra, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de caráter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem dos Advogados (doravante OA) – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo às questões colocadas.
As questões colocadas radicam, no essencial, numa única questão, a de saber se, após a comunicação efectuada por um advogado a outro nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 96º do EOA, existe prazo para ser concretizada a intenção ali comunicada.
O artigo 96º do EOA sobre a epigrafe de “Patrocínio contra advogados e magistrados” dispõe que:
“O advogado, antes de intervir em procedimento disciplinar, judicial ou de qualquer outra natureza contra um colega ou um magistrado, deve comunicar-lhe por escrito a sua intenção, com as explicações que entenda necessárias, salvo tratando-se de procedimentos que tenham natureza secreta ou urgente.”
O referido artigo 96º integra-se no Titulo III do EOA, referente à Deontologia Profissional e no seu Capitulo I, que contém os princípios gerais.
Como refere o Conselho Superior da Ordem dos Advogados[1] a “ratio” deste preceito visa a salvaguarda de valores de solidariedade, cordialidade, urbanidade, honorabilidade e prevenção contra contenciosos inúteis, por suscetíveis de se resolverem por via da conciliação e da composição de interesses – e nesse sentido se justifica a necessidade de conter uma explicação mínima sobre a intenção que é comunicada – e por essa razão está integrado no aludido Capitulo I relativo aos princípios gerais da deontologia profissional e impõe que essa prévia comunicação seja feita não só aos seus pares (advogados) mas também a magistrados.
Aquele dever específico de prévia comunicação escrita previsto no citado preceito resulta assim daqueles valores e da constatação de que a vida judiciária, pela especial tensão que gera no plano do relacionamento pessoal, exige particulares cuidados na preservação de regras de cordialidade e urbanidade e, além disso, que o principio da solidariedade profissional deve estar sempre presente quando um advogado disponibiliza a sua prestação profissional contra interesses de outro advogado ou magistrado, a que acresce que a solidariedade constitui um dever deontológico relevante (ver art. 106º do EOA anterior) e está, inclusive, expressamente consagrada no Código de Deontologia dos Advogados Europeus (Cfr. Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, pag 152, Dr. Fernando Sousa Magalhães)
Resulta daquele preceito que o dever de comunicação é necessariamente, como se referiu, prévio, isto é ocorre antes da intervenção em procedimento disciplinar, judicial ou de qualquer outra natureza.
Mas, não consta do preceito qualquer obrigação do advogado, após o cumprimento daquela obrigação deontológica, de intervir no procedimento pretendido dentro de um determinado período temporal, o que aliás se compreende porque aquela obrigação não constitui, obviamente, nenhum requisito ou condição do próprio procedimento em que o advogado comunicante irá (ou pelo menos prevê) intervir, visando sim, como supra se referiu, salvaguardar valores deontológicos (de solidariedade, cordialidade, urbanidade, honorabilidade e, ainda, de possibilitar uma eventual e prévia conciliação ou composição dos interesses), os quais ficam integralmente preenchidos com a prévia comunicação contendo as explicações que o advogado comunicante entenda necessárias.
O prazo para intervir, ou no caso concreto colocado pela Exmª Srª Advogada requerente, o prazo para intentar a acção após ter sido cumprida aquela obrigação de prévia comunicação, é o que resultar da lei substantiva, em termos de caducidade ou prescrição, para a acção ou procedimento que se pretende intentar, sendo que tal prazo nem sequer se situa no plano em que nos debruçamos e que é somente o das obrigações deontológicas do advogado.
Assim, respondendo simultaneamente (por interligadas e sobrepostas) às questões supra identificadas e colocadas nos pontos 1., 2., 3. 6. e 7. do pedido de parecer, conclui-se que após ter sido dado cumprimento ao dever especifico de comunicação constante do artigo 96º do EOA, não existe nenhum prazo para o advogado intentar a acção cuja intenção de instaurar ali foi comunicada.
Quanto às questões contidas nos pontos 4. e 5. do pedido e parecer, o advogado se vier a entender que o procedimento que visava intentar não tem viabilidade tem o dever deontológico de se abster de o intentar, o que configura, com sabemos, uma obrigação essencial do advogado para com a comunidade, constante das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 90º do EOA. Nesse caso e tendo já previamente procedido à comunicação prévia a que alude o artigo 96º do EOA, o advogado deve comunicar ao colega a alteração da sua intenção, atento os deveres de solidariedade, cordialidade e urbanidade constantes dos artigos 111º e 112º, nº 1, alínea a), ambos do EOA.
Em conclusão:
I – Apos ter sido dado cumprimento à obrigação de prévia comunicação prevista no artigo 96º do EOA não existe prazo para que o advogado comunicante intervenha efectivamente no procedimento pretendido, obviamente sem prejuízo dos prazos de caducidade ou de prescrição constantes da lei substantiva e aplicáveis à acção ou procedimento que se pretende intentar.
II – Caso o advogado que previamente deu cumprimento à obrigação de comunicação constante do artigo 96º do EOA, venha a entender que o procedimento que visava intentar não tem viabilidade tem o dever de se abster de o intentar, o que configura uma obrigação essencial do advogado para com a comunidade, constante das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 90º do EOA e, nesse caso e face à comunicação já efectuada, deve proceder a nova comunicação ao colega, dando-lhe conhecimento da alteração da sua intenção, atento os deveres de solidariedade, cordialidade e urbanidade constantes dos artigos 111º e 112º, nº 1, alínea a), ambos do EOA.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
Aveiro, 11 de Abril de 2019
[1] Parecer do Conselho Superior de 7.11.2006, sendo de referir que a atual redacção do artigo 96º do EOA transitou, sem nenhuma alteração, do artigo 91º do anterior EO, pelo que se mantém atual aquele parecer.
Manuel Leite da Silva
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