Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 33/PP/2017-C

Processo de Parecer n.º 33/PP/2017-C

 

Requerente: Drª CB…

Objecto: Incompatibilidade e/ou Impedimento entre o exercício da advocacia e o cargo de Presidente de Junta de Freguesia

 

I -

 

Por requerimento que dirigiu ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, datado de 16 de Outubro de 2017, a Exm.ª Senhora Advogada Drª. CB…, com escritório em A…, solicitou a emissão de parecer sobre “a cumulação do exercício de advocacia com o exercício das funções de Presidente da Junta a meio tempo“. Pretende por isso, que seja analisada a eventual incompatibilidade ou impedimento entre o exercício da advocacia e o desempenho de funções de Presidente da Junta de Freguesia de A….

 

Considerando que se encontram reunidos todos os pressupostos para emissão deste Parecer, e que as questões são, territorial e hierarquicamente, assuntos sobre os quais este Conselho Regional se deve pronunciar (art.º. 54º, nº1 al f) do Estatuto da Ordem dos Advogados), foi este processo entregue à aqui Relatora.

 

II –

 

Prende-se o presente parecer com a temática do regime de incompatibilidades e impedimentos previso no art.º. 81º a83º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante designado por EOA), conjugado com as regras gerais de deontologia profissional elencadas nos art.º. 88º e 89º do EOA.

 

A análise da problemática suscitada, ainda que com respeito a funções de Secretária de Junta de Freguesia e não de Presidente do órgão, foi já ponderada e analisada em Parecer deste Conselho Regional, elaborado pela aqui relatora, com nº 29-PP-17[1], cuja análise do art. 82º nº 1 al. a) e j) e art. 83º nº 1 e 2 do EOA - essencial para concluir sobre a (in)existência de incompatibilidade ou impedimento no que respeita à cumulação de funções de membro de uma Junta de Freguesia com o exercício da advocacia -, se mantém válida, e que, por isso,  nesta sede damos por reproduzida.

 

Seguindo, por isso, de perto o parecer acima referido e sintetizando, caberá desde logo avaliar o regime das incompatibilidades e impedimentos (art. 81º a 83º do EOA), tendo por certo que este pretende garantir a independência, isenção e o próprio decoro do advogado e evitar que qualquer outra actividade ou função exercida por aquele colida com a sua dignidade e com princípios básicos do exercício da advocacia, nomeadamente pela via da angariação de clientela e/ou limitação da liberdade na condução das matérias que lhe são confiadas.

 

Assim,

 

O art.º. 81º do EOA, refere no seu nº1 e 2, que:

1 - O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.

2 - O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.

 

Já o art.º. 82º EOA efectua a indicação, meramente exemplificativa, de cargos, funções e actividades consideradas incompatíveis com o exercício da advocacia, indicando-nos o nº1 que, são incompatíveis com o exercício da advocacia os seguintes cargos, funções e atividades:

a)      Titular ou membro de órgão de soberania, representantes da República para as regiões autónomas, membros do Governo Regional das regiões autónomas, presidentes, vice-presidentes ou substitutos legais dos presidentes e vereadores a tempo inteiro ou em regime de meio tempo das câmaras municipais e, bem assim, respetivos adjuntos, assessores, secretários, trabalhadores com vínculo de emprego público ou outros contratados dos respetivos gabinetes ou serviços, sem prejuízo do disposto na alínea a) do número seguinte;(…)

j) Membro do órgão de administração, executivo ou director com poderes de representação orgânica das entidades indicadas na alínea anterior”

 

Já no que respeita aos impedimentos do advogado, reza o art.º. 83º do EOA, no seu nº1 e 2, que:

 “ 1 - Os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.

2 - O advogado está impedido de praticar atos profissionais e de mover qualquer influência junto de entidades, públicas ou privadas, onde desempenhe ou tenha desempenhado funções cujo exercício possa suscitar, em concreto, uma incompatibilidade, se aqueles atos ou influências entrarem em conflito com as regras deontológicas contidas no presente Estatuto, nomeadamente, os princípios gerais enunciados nos n.os 1 e 2 do artigo 81 (…).

 

Aqui chegados, e transcritas as disposições previstas no EOA que relevam para a ponderação da questão, debruçamo-nos, em primeiro lugar, na análise do art. 82º do EOA, nomeadamente das duas alíneas acima indicadas.

 

Do elenco da alínea a) do art. 82º do EOA não consta o cargo de Presidente de Junta de Freguesia como incompatível com o exercício da advocacia, sendo que o legislador optou por indicar como tal, nomeadamente, o cargo/as funções de presidente, vice-presidente, vereador a tempo inteiro ou em regime de meio tempo das câmaras municipais.

 

Mantemos pois, a posição já antes assumida de que não tendo o legislador efectuada essa indicação expressa, e não se retirando da letra da lei nem do seu espirito essa intenção, não cabe ao intérprete alargar a previsão normativa em causa.[2]

 

Neste mesmo sentido, se pronunciou também o Conselho Regional do Porto, no âmbito do Parecer nº 32/PP/2017-P, que considerou, com respeito ao art. 82º nº1 al. a) EOA que “numa redacção tão cuidadosa e exaustiva, nenhuma referência se faz aos presidentes das juntas de freguesia, o que nos leva a concluir ser intencional a não inclusão do exercício deste cargo no rol das incompatibilidades[3]

 

Dir-se-á ainda, em acrescento à posição acima referida e porque o argumento também se entende por relevante, que, em sede dos trabalhos que antecederam a revisão do EOA, foi sugerido que do elenco do artigo em apreço, constasse expressamente as funções de Presidente de Junta de Freguesia. Contudo, não mereceu tal proposta acolhimento, razão pela qual se conclui que, de facto, não foi pretendido que o exercício de tais funções constituísse incompatibilidade.

 

Importará, num segundo momento, analisar a al. j) do art.82º do EOA em conjugação com a al. i)[4] , que, e seguindo mais uma vez o raciocínio expendido em anterior parecer, não nos parece que pretenda abranger os membros dos órgãos das autarquias locais que se não encontrem já abarcados pela incompatibilidade da al.a). Isto porque o EOA determinou a referida incompatibilidade para alguns órgãos ou membros das Câmaras Municipais, tendo deixado de fora do elenco os vereadores sem tempo atribuído[5] e sem delegação de poderes ( não obstante serem membros do órgão executivo), e também as Juntas de Freguesia. A entender-se que a al. j) tem uma previsão abrangente, nomeadamente de aplicação a todas os órgãos e membros das autarquias locais, a verdade é que seria inútil a al.a) do mencionado artigo, porque as funções/actividades/cargos ai mencionados estariam já englobadas na primeira das alíneas referidas.

 

Considerando também que a Exmª Srª Advogada expressamente refere que irá exercer as funções de Presidente da Junta a meio tempo, não será de aplicar ou de nos debruçarmos exaustivamente sobe o disposto no art. 12º da  Lei n.º 11/96, de 18 de Abril [6], que determina a aplicação da Lei 64/93 de 20 de Agosto[7] mas apenas aos membros da junta de freguesia que exerçam o mandato em regime de permanência a tempo inteiro.

 

Do exposto resulta claro que se mantém o nosso entendimento que não existe incompatibilidade entre o exercício da advocacia e as funções de membro da Junta de Freguesia, nomeadamente de Presidente, sendo esse também o entendimento maioritário da OA sobre a questão, que vem entendendo “que a incompatibilidade existia apenas quanto aos Presidente das Câmaras e para os Vereadores com poderes delegados ou executivos, com ou sem remunerações ou abanos, ficando os demais, bem como os membros das assembleias municipais e de freguesias e os membros das juntas de freguesia apenas incursos em situações de eventual impedimento[8] .

 

Carlos Mateus, seguindo a linha de entendimento maioritário acima referida, defende também que “Não existe incompatibilidade para o exercício da advocacia por parte de Advogado que seja Presidente de Junta de Freguesia”.[9]

 

Somos, por isso, a concluir que inexiste incompatibilidade absoluta entre o exercício da advocacia e o exercício da função de Presidente de Junta de Freguesia, ao abrigo das disposições acima referidas.

 

Por outro lado,

 

Importa finalmente analisar, face ao disposto no art. 83º do EOA, se no caso em apreço estamos perante “circunstância que choque (ponha em risco) com a isenção, a liberdade ou a independência do Advogado, deve ser vista a priori como um impedimento ao exercício da actividade.”[10]

 

Ora, os impedimentos são formas mitigadas de incompatibilidade, constituindo o que se designa de incompatibilidades relativas. De facto “os impedimentos diminuem, no caso concreto, a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão –art. 78.º, n.º 1 do EO[11].

 

Fernando de Sousa Magalhães ensina que “os impedimentos resultam de circunstâncias concretas que devem levar os advogados a recusar o mandato ou prestação de serviços em função de conflitos de interesses ou de simples decoro, já que o exercício da profissão deve ser livre, independente e adequado à dignidade da profissão – vide art.º. 88º e 89º do EOA[12]

 

Assim, e seguindo também de perto os ensinamentos de Carlos Mateus, em obra já citada, “O Advogado está impedido de praticar actos profissionais e de mover qualquer influência junto de entidades, públicas ou privadas, onde desempenhe ou tenha desempenhado funções cujo exercício possa suscitar, em concreto, uma incompatibilidade, se aqueles actos ou influências entrarem em conflito com as regras deontológicas contidas neste Estatuto, nomeadamente, os princípios gerais enunciados nos nºs 1 e 2 do artigo 76.º – art. 78.º, n.º 2 do EOA.

A advocacia é uma profissão livre e independente que presta um serviço à sociedade, de interesse público. O Advogado não deve aproveitar-se dos seus cargos, funções ou actividades para angariar clientela por si ou por interposta pessoa, nem perturbar a livre escolha do Advogado pelo cliente[13]

 

Assim, e no que respeita à questão do impedimento, também na senda do Parecer deste Conselho Regional de Coimbra que vamos seguindo, entendemos que o mesmo se verifica no caso em apreço, considerando os princípios de independência, probidade, lealdade, rectidão, honestidade e cortesia que constituem obrigações profissionais do advogado, e que decorrem também dos art.ºs 88º e 89º do EOA.

 

Ora, atendendo que a Exmª Srª Advogada irá desempenhar funções como Presidente de Junta de Freguesia, entendemos que esta estará limitada no exercício da advocacia, quer por razões de conflito de interesses e de decoro profissional, pois não poderá representar, pela via do mandato constituído a seu favor, a Junta de Freguesia onde exerce funções[14] e não poderá representar terceiro contra a mencionada Junta, considerando que em ambas as situações o potencial mandato afecta ou é susceptivel de afectar a autonomia técnica, a independência, a isenção e a própria dignidade do Advogado (art.º. 83º nº2 e art.º. 81º do EOA).

 

Em qualquer uma das situações, poderia existir, sem dúvidas, um potencial conflito de interesses e seria notória a suspeita na comunidade pública no que respeita a eventual movimentação de alguma influência na condução do mandato atendendo à especial relação existente entre a Exmª Srª Advogada e o cargo que desempenha na Junta de Freguesia.

 

É por isso, por demais evidente que a ligação da Exmª Srª Advogada à Junta de Freguesia, contamina os princípios que norteiam a o exercício da profissão, nomeadamente a isenção e independência, colocando em causa a amplitude do exercício da advocacia, concluindo-se pela existência de impedimento nos termos do art.º. 83º nº1 e 2 do EOA.

 

 

III –

Concluindo,  

 

I – Não existe incompatibilidade, ao abrigo dos  art. 81ºe 82º al. a) e j)  do EOA entre o exercício da Advocacia e o exercício do cargo de Presidente da Junta de Freguesia, nomeadamente quando tais funções são exercidas em regime de meio tempo.

 

II  – Existe impedimento para o exercício do mandato, ao abrigo do art. 83º nº1 e 2 do EOA,  sempre que a Srª Advogada, assumindo cumulativamente as funções de Presidente da Junta de Freguesia,  represente a respectiva Junta ou terceiro em litigio contra esta, atendendo que ambas as situações afectam ou são susceptíveis de afectar a autonomia técnica, a independência, a isenção e a própria dignidade do Advogado.

 

É este o nosso parecer

 

Leiria, 24 de Novembro de 2017,

 

À sessão do Conselho Regional de Coimbra

 



[1] Parecer aprovado na sessão do Conselho Regional de Coimbra, de 14 de Julho de 2017, disponível em:

http://www.oa.pt/cd/Conteudos/Pareceres/detalhe_parecer.aspx?sidc=31846&idc=31890&idsc=116053&ida=153050

 

[2] No sentido da impossibilidade da interpretação extensiva, vg. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.04.2002, de onde decorre, ainda que com referência a anterior redacção do EOA e sobre a questão da incompatibilidade doas funções de vereador, mas com relevância para a questão em apreço: “E deve acrescentar-se que não é possível interpretar extensivamente a alínea no sentido de nela incluir as funções inerentes àquele cargo. Há interpretação extensiva quando, a partir da menção legal de uma qualquer espécie, se ascende à consideração do seu género próximo, de modo a possibilitar-se a ulterior descida a outra espécie desse género, afinal também considerada «mente legislatoris». Mas, no que toca à redacção daquela alínea f), é temerário dizer-se que o legislador do DL n.º 84/84, de 16/3, que aprovou o EOA, disse nela menos do que pretendia dizer, pois não só restringiu a incompatibilidade a alguns presidentes de câmara, abstendo-se de a estender a todos, como não podia ignorar que nas câmaras municipais havia vereadores e que o art. 55º da Lei n.º 79/77, de 25/10, então vigente, contemplava mesmo a figura dos vereadores em regime de permanência.”

[3] Parecer nº32/PP/2017-P, de 25 de Julho de 2017, disponível em www.oa.pt  

[4] Da conjugação das duas alíneas resulta que está sujeito ao regime das incompatibilidades do EOA o membro do órgão de administração, executivo ou director com poderes de representação orgânica dos serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local

[5] Cfr. Acórdão do Conselho Superior n.º R-151/2006, de 8 de Janeiro de 2008, Relator: Dr. Miguel Galvão Teles, publicado em www.oa.pt que refere :” O resultado será o de que se encontrarão em situação de incompatibilidade o Vice-Presidente, que substitui o Presidente da Câmara nas suas faltas e impedimentos, e os vereadores com delegação de competência do Presidente da Câmara. Por via da delegação de competências, esses vereadores partilham dos poderes do Presidente da Câmara e exercem poderes próprios daquele, pelo que se lhes aplicam as razões do legislador  para tornar incompatível o exercício da advocacia com o cargo de Presidente da Câmara”.

[6]  De onde consta: “Aplica-se aos membros das juntas de freguesia que exerçam o seu mandato em regime de permanência a tempo inteiro o disposto nas normas da Lei n.º 64/93, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 28/95, de 18 de Agosto”

[7] O Diploma em causa estabelece o regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos público, sendo que, e com referência às autarquias locais, apenas menciona que são considerados titulares de cargos políticos o presidente e vereador a tempo inteiro das câmaras municipais, não efectuando, mais uma vez, referência às juntas de Freguesia

[8] Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, 2015, 10ª Edição, Comentário ao art. 82º, Anot.3

[9] Carlos Mateus, In Deontologia Forense, Limites ao exercício da profissão de Advogado, Verbo Jurídico, pág.  79, que indica, no sentido do ora defendido,  Parecer CDP de 29 de Outubro de 2006, Relator: Dr. Pedro Machado Ruivo e Parecer do CDE, proc. Nº. 6/PP/2012-E, de 28 de Fevereiro de 2013: Relator: Dr. José António Belchior.

[10] Carlos Mateus, In Deontologia Forense, Contributo para a formação dos Advogados Portugueses, 2014, Verbo Jurídico, pág. 53

[11] Carlos Mateus, In Deontologia Forense, Limites ao exercício da profissão de Advogado, Verbo Jurídico, pág.  79

[12] Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, 2015, 10ª Edição, Comentário ao art. 83º,Anot.1

[13] Carlos Mateus, In Deontologia Forense,  Contributo para a formação dos Advogados Portugueses, 2014, Verbo Jurídico, pág. 76

[14] O que poderia implicar, em termos abstractos, a prática de um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art. 370º do CP.

 

Sílvia Carreira

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