Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 20/PP/2019-C

Processo de Parecer n.º 20/PP/2019-C

 

Por ofício datado de 28 de Maio de 2019 e através dos doutos despachos proferidos naquela mesma data nos autos de processo de Incumprimento das Responsabilidades Parentais nº …/19.4T8MR e no seu apenso de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais (apenso A), veio o Exmo. Senhor Juiz do Juízo de Família e Menores de Tomar, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de S… solicitar que este Conselho Regional de Coimbra se pronuncie sobre a eventual existência de conflito de interesses da Srª Advogada ali visada, Drª CG…, mandatária constituída da Exmª Srª MT…, requerente nos autos principais (de Incumprimento das Responsabilidades Parentais) e requerida no Apenso A (de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais) em virtude de a aludida Srª Advogada ter patrocinado ambos os cônjuges (a citada MT... e o à data seu marido CS…) mediante mandato forense por eles outorgado em 23 de Janeiro de 2016, no processo de divórcio por mutuo consentimento nº …/2016 e no qual, inclusive, na conferencia de divórcio, a Srª Advogada em causa representou o dito CS… por este se encontrar ausente no estrangeiro e ali, em sua representação, confirmou os acordos relativos ao exercício das responsabilidades parentais e ao destino da casa de morada de família, para além das declarações prestadas no requerimento inicial e, ainda, renunciou ao prazo de recurso.

 

A acompanhar o douto despacho proferido a solicitar a emissão de pareceres sobre a existência, ou não, do aludido conflito de interesses, foram remetidas cópias extraídas do aludido processo principal e do apenso, designadamente dos respectivos requerimentos iniciais, das alegações, dos doutos despachos proferidos em 7 de Maio de 2019, dos requerimentos apresentados pela Srª Advogada visada em que sustenta que não existe conflito de interesses (e nos quais, para fundamentar a sua interpretação invoca que sempre foi mandatária da MT… e não do CS… – cfr. art. 16º – e que apenas fez “um favor” à aludida MT… quando representou, no divórcio, o CS…), das respostas apresentadas e dos doutos despachos de 28 de Maio de 2019.

 

Face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – e porque a questão, singela e simples e que se reconduz à análise do artigo 99º do EOA cuja norma se destina a evitar o conflito de interesses e ainda, porque é indiscutível que a decisão sobre a verificação, ou não, de tal conflito compete em exclusivo à Ordem dos Advogados, deve ser emitido o solicitado parecer.

 

Refira-se ainda que apenas se elaborará um único parecer, para ambos os processos (processo principal e apenso A), uma vez que a factualidade relevante e a questão em causa são idênticas.

 

Como se referiu, a questão da eventual existência de um conflito de interesses é colocada tendo por base o facto de a Srª Advogada visada ter patrocinado ambos os cônjuges aquando do processo de divórcio por mútuo consentimento cuja conferência teve lugar no dia 13 de Junho de 2016 e de, nos autos em causa, patrocinar a ali ex-cônjuge mulher, a referida MT…, contra o seu ex-cônjuge, o CS....

 

Sendo muito simples e escorreitos os factos analisemos o enquadramento jurídico.

 

O Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no EOA, sendo que só o cumprimento escrupuloso e rigoroso de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado e o Cliente, sendo neste capítulo e designadamente no artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser, como supra se referiu, avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):

 

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente

6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”  

 

A norma em causa (art. 99º do EOA e que reproduz o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) visa, por um lado, defender a comunidade geral, mas também os clientes de um Advogado de qualquer actuação menos lícita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem visar a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.[1]

 

«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[2]

 

São o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficarem salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, intérprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[3] 

 

Assim, o nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

 

O nº 2, por maioria de razão, impõe que o Advogado recuse o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

 

Por sua vez, o nº 3 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado não aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

 

Por sua vez o nº 5 refere-se ao eventual risco de violação do segredo profissional e às eventuais vantagens ilegítimas ou injustificadas do novo cliente por via do conhecimento dos assuntos do anterior cliente por parte do advogado.

 

O conflito de interesses resulta, como se referiu, dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado o que impõe, desde logo, que seja em primeira linha uma questão de consciência do Advogado[4], cabendo-lhe em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de um conflito entre os interesses dos seus clientes.

 

Neste caso concreto estamos perante o conflito de interesses previsto no nº 1 do artigo 99º do EOA dado que no processo de divórcio acima referido, onde também foi acordada a regulação das responsabilidades parentais (cujo eventual incumprimento é discutido na acção principal e cuja alteração é o objeto do apenso A) a Srª Advogada visada patrocinou ambos os cônjuges, desde a apresentação na Conservatória do Registo Civil, do respectivo pedido, incluindo assim, o cônjuge (CS...) contra o qual a sua atual cliente (MT…) litiga, sendo que existe uma evidente conexão entre o processo de divórcio com o estabelecimento do acordo de responsabilidades parentais e o litígio do processo principal (o invocado incumprimento daquele acordo) e do apenso A (o pedido de alteração daquele acordo) e, se é certo que tiveram existências autónomas e em momentos temporais não sobrepostas, está porém suficientemente consolidada na jurisprudência da Ordem dos Advogados que a conexão referida naquele preceito significa uma relação evidente entre várias causas, o que manifestamente ocorre neste caso.

 

A situação descrita trata-se, aliás, de um caso vulgar de aplicação do nº 1 do aludido artigo 99º do EOA, como tem sido decidido na Jurisprudência da OA (vd. Acórdão do Conselho Superior de 20/7/84, in ROA, Ano 44, pág 465 e Parecer do Conselho Geral de 13/10/2000, in ROA, Ano 61, pág 417).

 

E, se é certo que se verifica a existência de conflito de interesses na situação em análise por via do nº 1 do citado artigo 99º do EOA, sempre se verificaria o preenchimento do nº 5 daquele dispositivo, porque é evidente, por um lado, a existência de risco do incumprimento do dever de manutenção do sigilo profissional por parte da Srª Advogada visada e, por outro, do exercício do mandato anteriormente conferido pelo CS... à Srª Advogada visada, é manifesto que podem resultar vantagens ilegítimas ou injustificadas para a sua atual patrocinada MT….

 

É líquido que existe uma ligação estreita e de proximidade entre o processo de divórcio (onde também se regularam, por acordo, as responsabilidades parentais) e os autos em causa (onde se discutem um eventual incumprimento daquele acordo e a sua alteração), reportando-se aqueles processos ao âmbito das relações familiares mais intimas do anterior cliente (CS...) da Srª Advogada visada, que necessariamente levou a que esta tomasse conhecimento de diversos factos por via daqueles mandatos que então assumiu com os seus anteriores clientes e que por essa razão se encontram sujeitos ao dever de guardar sigilo profissional e que a aceitação (e obviamente a manutenção) do mandato da MT… contra aquele seu anterior cliente (o CS...) é susceptível de criar uma situação de risco de violação do segredo profissional e até da diminuição da independência na condução do processo, violando assim para alem do nº 5 do citado artigo 99º, o disposto no artigo 89º, ambos do EOA.

 

Pelo que, também por esta via, sempre existe potencialmente o risco de conflito de interesses que se poderá repercutir na violação das normas constantes do nº 5 artigo 99º e do nº 89º ambos do EOA.

 

A Srª Advogada visada, em sua defesa, chega a afirmar que “na verdade (…) sempre foi mandatária” da MT… e não do CS... e que o mandato exercido e a representação deste por via daquele mandato, foi “um favor” que fez à MT…, o que se por um lado em nada afasta a existência de conflito de interesses, impõe contudo, face à gravidade da aparente (e confessada) violação dos seus deveres deontológicos de integridade e independência, a sua apreciação pelos órgãos disciplinares da Ordem dos Advogados.

 

Conclusão

 

A Advogada que patrocinou, representando-os, ambos os cônjuges num processo de divórcio por mútuo consentimento com regulação das responsabilidades parentais, fica impedida de representar qualquer um dos cônjuges em posterior processo de incumprimento e, ou de alteração daquele acordo de responsabilidades parentais, por violação do disposto no nº 1 e 5 do artigo 99º do EOA e, consequentemente, deve cessar de imediato o patrocínio.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 

Comunique-se ao processo principal e ao apenso A supra referidos.

 

Remeta-se cópia do pedido de parecer e do presente parecer ao Concelho de Deontologia de Coimbra para eventual apreciação disciplinar.

 

Coimbra, 14 de Junho de 2019

 



[1] Valério Bexiga, in Lições de Deontologia Forense, pág. 324 

[2] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111

[3] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262

[4] Paulo Sá e Cunha – Parecer 39/2011 CDL

 

 

Manuel Leite da Silva

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