Parecer Nº 4/PP/2018-C
Processo de Parecer n.º 4/PP/2018-C
Requerente – Dra. BM…
Objecto: Certificação documentos no processo em que intervém como advogado
Por requerimento entrado neste Conselho, veio a requerente, Dra. BM..., solicitar parecer sobre a seguinte situação:
1. A signatária partilha escritório com três colegas, partilhando assim a mesma morada profissional, o mesmo número de telefone fixo/fax.
2. No entanto, a signatária exerce a sua actividade numa sala, dentro desse escritório, sozinha, e sem qualquer intervenção dos demais colegas.
3. Portanto a signatária não partilha clientes ou honorários com as demais colegas, não intervindo nos processos umas das outras.
4. Uma dessas Colegas autenticou, elaborando e assinando o respectivo termo, uma confissão de dívida que agora se pretende dar à execução.
5. De salientar que essa Colega, apesar de ter sido ela a assinar o termo, representou apenas o credor, porquanto a devedora estava representada por uma Colega, que a apoiou nas negociações.
6. Assim, pergunta-se se há algum conflito de interesses em a signatária dar à execução a confissão de dívida, cujo termo foi assinado pela sua Colega de escritório, em representação do mesmo credor.
7. Mais se pergunta se, uma vez que a devedora esteve sempre acompanhada de advogada nas negociações, se a própria colega signatária do termo, estará impedida de o dar à execução, enquanto mandatária do credor. [sic]
Considerando que se encontram reunidos todos os pressupostos para emissão deste Parecer, e que esta questão é, territorial e hierarquicamente, assunto sobre o qual este Conselho Regional se deve pronunciar, foi este processo entregue à aqui Relatora.
O Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do presente parecer, não apenas porque se trata de situação que ocorre em localidade pertencente à sua área de competência territorial, cfr. o art. 54º, nº1 do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante designado por EOA), mas ainda porque configura questão de carácter profissional submetida à sua apreciação, relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) desse normativo, tem competência para se pronunciar.
A questão formulada no número 6 é relativa às relações entre advogado e cliente, nomeadamente conflito de interesses.
Balizemos a questão:
Dispõe o artigo 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados:
Conflito de interesses
1 — O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 — O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 — O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 — Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 — O advogado deve abster -se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 — Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.
Quanto à questão número 6 é inequívoco que não há qualquer conflito.
A dificuldade está quanto à questão número 7.
O Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março veio introduzir no ordenamento jurídico mecanismos de simplificação na certificação de actos, admitindo formas alternativas de atribuição de valor probatório a documentos.
Este diploma atribuiu, entre outras coisas, aos advogados e aos solicitadores competência para certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais que lhes sejam apresentados para esse fim e ainda proceder à extracção de fotocópias dos originais que lhes sejam apresentados para certificação, adquirindo essas fotocópias o valor probatório dos originais. Foi ainda publicado o Decreto-Lei n.º 237/2001, de 30 de Agosto. Este diploma, por sua vez, veio permitir aos advogados e aos solicitadores fazer reconhecimentos com menções especiais, por semelhança e ainda certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos. Com o mesmo escopo, foi publicado o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março que atribuiu aos advogados e aos solicitadores competência para poderem fazer reconhecimentos de quaisquer espécies, simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, bem como, para a autenticação de documentos particulares. Em síntese, as competências notariais agora atribuídas aos advogados e aos solicitadores são as seguintes:
1. Certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais apresentados e proceder à extracção das mesmas para esse efeito.
2. Fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais ou por semelhança.
3. Autenticar documentos particulares.
4. Certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos.
Dispõe o artigo 38.º DL n.º 76-A/2006, de 29 de Março
Competência para os reconhecimentos de assinaturas, autenticação e tradução de documentos e conferência de cópias
1 - Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos, nos termos previstos na lei notarial, bem como certificar a conformidade das fotocópias com os documentos originais e tirar fotocópias dos originais que lhes sejam presentes para certificação, nos termos do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março. – Sublinhado nosso.
Sublinhamos “nos termos previstos na lei notarial” porquanto o regime jurídico dos actos notariais dos advogados está sujeito nomeadamente ao Código do Notariado.
Jamais, a segurança jurídica pode ser colocada em causa, independentemente do agente (Notário ou Advogado) da certificação de documentos ou do reconhecimento de assinaturas.
A fé pública notarial não poderá ser nunca ser colocada em causa.
Em concretização deste princípio, atentemos ao disposto no Código Notariado:
Dispõe o DL n.º 207/95, de 14 de Agosto
“Artigo 5.º
Casos de impedimento
1 - O notário não pode realizar actos em que sejam partes ou beneficiários, directos ou indirectos, quer ele próprio, quer o seu cônjuge ou qualquer parente ou afim na linha recta ou em 2.º grau da linha colateral.
2 - O impedimento é extensivo aos actos cujas partes ou beneficiários tenham como procurador ou representante legal alguma das pessoas compreendidas no número anterior.
3 - O notário pode intervir nos actos em que seja parte ou interessada uma sociedade por acções, de que ele ou as pessoas indicadas no n.º 1 sejam sócios, e nos actos em que seja parte ou interessada alguma pessoa colectiva de utilidade pública a cuja administração ele pertença.”
Ora, combinando o atrás disposto com o art. 38º, nº 1, do DL 76-A/2006, resulta que o impedimento se aplica a qualquer advogado que pretenda realizar acto notarial de que seja parte ou beneficiária, directa ou indirectamente. E porquê? Por não estarem nesse caso asseguradas as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade.
Confiramos agora o que refere o Acórdão da Relação de Évora, de 07-07-2005, disponível em www.dgsi.pt:
“1 – O advogado subscritor da petição inicial, mandatário do A. e representante dos seus interesses, não pode traduzir, ele próprio, documentos e a certificar a sua própria tradução, e destinados a fazer prova no processo que patrocina, por não estarem asseguradas as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade.”
“2 – As limitações e incompatibilidades impostas aos notários, são aplicáveis, mutatis mutantis, à actividade de tradução e reconhecimento de documentos, exercida pelos Sr.s Advogados, nos termos do disposto nos arts. 5º nº1 e 6º do DL nº 237/01.”
E continua…
“Não podemos deixar de concordar, em absoluto, com o decidido. Na verdade embora não haja norma expressa a impedir a cumulação da função notarial do advogado com a função representativa enquanto mandatário forense. Os princípios éticos e deontológicos que regem o exercício da profissão e bem assim os processuais, impõem uma separação absoluta das funções. A não ser assim, qualquer dia teríamos o mandatário forense a intervir num dado processo, não só na qualidade de advogado, como também de perito, notário/certificador ou mesmo como parte (para prestar depoimento) ….. Haja pudor….!”
Sem necessidade de mais considerandos, o advogado tem a obrigação de não se colocar numa situação violação dos deveres estatutários, nomeadamente de conflito de interesses. E nesta situação, para tanto, tal sucederá se vier a ser alegada a falsidade do documento ou do termo.
O advogado enquanto advogado não poderá vestir as vestes de advogado e de certificador numa mesma causa, sob pena de estarmos a colocar em causa a independência e a fidedignidade das funções exercidas.
III - Conclusão:
1ª – Não há conflito de interesses quando advogado dá à execução a confissão de dívida, cujo termo foi assinado por Colega de escritório, mantendo situação de independência entre si.
2ª – O advogado em representação de cliente não pode efectuar reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos, destinados a fazer prova em processo que patrocina, por não estarem asseguradas as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade, que devem presidir aos actos notariais, para além de violar o nº 1 do artigo 5º do Código do Notariado, ex vi do artigo 38º, nº 1, do Decreto Lei 76-A/2006, de 29 de Março, colocando-se em situação de conflito de interesses.
Este é o nosso Parecer.
Maria de Fátima Duro
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