Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 6/PP/2020-C

Processo de Parecer nº 6/PP/2020C

 

Assunto: Segredo profissional: factos conhecidos fora do âmbito do exercício da atividade profissional

 

Por comunicação efetuada por correio eletrónico dirigida a este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exmª Srª. Drª. AS…, advogada portadora da cédula profissional nº …c, com escritório em V…, veio requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca e que é a seguinte:

“Fui notificada pela G.N.R. da M… para comparecer no seu posto territorial com o intuito de prestar declarações como testemunha no Processo n.º 72/… que corre termos na Comarca de A…, DIAP, Ministério Público de E….

Atendendo à situação, venho informar sobre o sucedido, questionando se será necessário pedir levantamento do sigilo (sendo certo que não agi como mandatária da ofendida) ou se poderei / deverei comparecer em tal ato processual como testemunha relatando o que tomei conhecimento direto.

De forma resumida, sou amiga da ofendida e dou-me bem com o arguido, com quem aliás fiz parte da mesma turma durante alguns anos escolares. Devido a estas relações, quando a ofendida e o marido me pediram para os representar em anteriores processos (judiciais e extrajudiciais) contra o arguido, sempre me recusei, invocando não me sentir de todo à vontade em representá-los contra alguém que eu conheço, tendo aconselhado a procurar outro Colega.

No entanto, já fui advogada da família em questões que não têm ligação à presente.

Após a resolução de um anterior processo crime (do que me deram conhecimento terminou por arquivamento do processo pelo MP, no seguimento de acordo), a ofendida desabafou comigo, na qualidade de amiga (porque já sabia que não aceitava representá-la), sobre o facto do arguido a seguir quase diariamente, muitas vezes até à sua casa.

Como é meu apanágio, tentei acalmar a situação, referindo que devia ser pura coincidência; as filhas de ambos frequentam a mesma escola e seria normal cruzarem-se na estrada ou percorrerem por vezes o mesmo percurso. Atendendo a que a ofendida mantinha-se bastante nervosa e cada vez mais convencida que estava a ser perseguida, relatando insistentemente situações que a deixavam com medo e angustiada, continuei a dizer-lhe para manter a calma, mas que podia e devia, caso se continuasse a sentir "perseguida" e com receio, ir à GNR dar conhecimento dos factos, devendo-se fazer aconselhar e acompanhar por Advogado.

Na noite de 26 de março do presente ano, após uma reunião da catequese onde tanto eu como a ofendida participámos, fui contatada pela mesma que, tendo chegado a casa, deparou-se com o arguido. Ficou muito assustada porque estava sozinha em casa, com a sogra e as crianças suas filhas. Quando me telefonou disse-me entre lágrimas que já tinha chamado a GNR, que estes andavam na zona para ver se encontravam o arguido e que estava muito assustada.

Como já era muito tarde e percebi que estas mulheres e crianças estavam sozinhas desloquei-me para casa da ofendida, tendo ficado a acalmar a ofendida junto ao portão de entrada da sua casa.

Entretanto, chegou a patrulha da GNR e enquanto estávamos todos na rua, junto ao portão de entrada da casa da ofendida, o arguido passou no seu veículo automóvel a uma velocidade baixa.

Eu encontrava-me virada para o lado contrário da estrada e só verifiquei o veículo no momento em que passou por nós mas, como a ofendida tinha acabado de referir as características do veículo automóvel (nomeadamente marca, modelo, cor e matricula) reconheci o mesmo, tendo o cuidado de olhar para a matricula. No entanto, não visualizei o condutor.

Apenas tenho conhecimento destes factos e agradecia que me informassem se existe algum impedimento a prestar declarações como testemunha no processo em causa.”

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

A obrigação de sigilo profissional do advogado encontra-se consagrada no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro), que, no seu n.º 1 nos diz que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a)    A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b)    A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c)    A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d)    A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e)    A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f)     A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

E, o nº 2  daquele artigo diz-nos que “A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.”

No nº 3, podemos ler “O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

O nº 4 daquele artigo dispõe da seguinte forma: “O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”

O nº 5 diz-nos que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”

A regra é, assim, a da absoluta confidencialidade dos factos de que o Advogado tenha conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas.

Isto, porque, o fundamento do dever de sigilo profissional radica na proteção da privacidade do advogado e dos seus clientes e, consequentemente, da própria liberdade de exercício da profissão.

 

Significa isto que, tudo quanto chega ao conhecimento de um advogado no exercício funcional da sua atividade está submetido ao dever de sigilo, só podendo o advogado efetuar revelações de forma extremamente limitada e nos casos rigorosamente previstos no texto legal.

 

Assim, não podemos deixar de dizer que a norma do nº 1 do artigo 92º do EOA tem, forçosamente, de ser alvo de uma interpretação restritiva, no sentido, de que só quando estiver em causa uma confidência que obrigue a reserva, em virtude da confiança na advocacia, é que o advogado está, em principio, sujeito ao deve de segredo.

 

A dispensa do segredo profissional tem carácter excecional (artigo 4º-1 do Regulamento nº 94/2006).

 

Na decisão, o Presidente do Conselho Regional deve aferir da essencialidade, atualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos Autos pelo requerente da dispensa (artigo 4º-3 do Regulamento nº 94/2006).

 

Este dever de guardar segredo, apesar da primordial importância que reveste, não é absoluto, como qualquer outro dever (ou direito), por mais essencial que seja.

 

Com efeito, o n.º 4 do supra referido artigo do EOA diz-nos que “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes...”.

 

Ou seja, a obrigação de sigilo que, estatutariamente, impende sobre o advogado, só poderá decair se tal for absolutamente necessário para a defesa de valores que o legislador considera poderem, em determinadas circunstâncias, prevalecer sobre o valor que é o segredo profissional, como sejam, a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes. Daqui resultando, que só em defesa do seu cliente é que o Advogado pode ser dispensado de guardar segredo profissional.

 

O artigo 113º do Estatuto da Ordem dos Advogados (anterior artigo 108º) refere que o advogado que pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado, tenha carater confidencial, deve exprimir claramente essa intenção e que tais comunicações, não podem constituir, de modo algum, meio de prova, não lhe sendo aplicável o nº 4 do artigo 92º do Estatuto.

 

Mas, nem todos os factos estão sujeitos ao dever de guardar segredo. Efetivamente, como vimos, para que os factos revistam caracter sigiloso, é necessário que o conhecimento que o advogado tem de tais factos lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. Mas é necessário, previamente, que se trate de matéria sigilosa.

Se a matéria de facto em causa não constituir segredo, obviamente não está o advogado obrigado a guardar um segredo que inexiste.

Finalmente, importa ter presente que os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

 

Posto isto, analisados os factos sobre que versa o pedido de parecer temos de concluir que se trata de factos que não estão a coberto do segredo profissional. Efetivamente, os factos em causa chegaram ao conhecimento da Sra, Advogada requerente não por força e no exercício da sua atividade profissional de advogada, ou seja, fora do âmbito profissional, mas antes como amiga/pessoa conhecida da ofendida.

 

Conclusões:

1.    O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

 

2.    O nº 1 do artigo 92º do EOA tem de ser alvo de uma interpretação restritiva, no sentido, de que só quando estiver em causa uma confidência que obrigue a reserva, em virtude da confiança na advocacia, é que o advogado está, em princípio, sujeito ao dever de segredo.

 

3.    Quando os factos estão sujeitos ao dever de guardar segredo, o advogado apenas pode depor sobre os mesmos desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo.

 

4.    Sempre que o advogado seja confrontado, na prestação de depoimento, com factos sujeitos a sigilo, deve escusar-se a depor sobre os mesmos enquanto a tal não estiver autorizado pelo Presidente do respetivo Conselho Regional.

 

5.    Os factos descritos no pedido de parecer não advieram ao conhecimento da consulente por força do exercício das suas funções de Advogada, como tal, não se encontram a coberto da obrigação de guardar segredo profissional, não existindo qualquer impedimento para a prestação de depoimento como testemunha no inquérito nº 72/19.4GAETR, desde que, o mesmo seja limitado à descrição dos factos presenciados.

 

É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

António Sá Gonçalves

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