Parecer Nº 9/PP/2022-C
Parecer n.º 09/PP/2022-C
Assunto: Membro de Conselho de Disciplina de Associação Desportiva e Advogado constituído como mandatário dessa mesma Associação.
Através de email dirigido ao Conselho Regional de Coimbra em 10 de abril de corrente ano, veio o Sr. Advogado solicitar parecer quanto à possibilidade de existência de incompatibilidade em situação de representação da Associação de Futebol da G…, junto do Tribunal Arbitral do Desporto, por advogada que integra o Conselho de Disciplina da mesma Associação, em processo no qual a Associação é demandada.
Notificado para o efeito, o Sr. Advogado requerente juntou ao processo cópia da petição do recurso com pedido de providência cautelar e da contestação do processo que corre termos junto do TAD, dos quais se extrai que a Sra. Advogada visada representa a Associação de Futebol da G..., num processo em que o ato recorrido foi proferido pelo próprio Conselho de Disciplina que integra como vice-presidente.
Notificada a Sra. Advogada visada, veio a mesma esclarecer que integra o Conselho de Disciplina daquela Associação no presente mandato 2020-2024, com o cargo de Vice-presidente.
Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.
O nosso parecer é balizado pela questão concreta que nos é colocada – saber se existe incompatibilidade na representação de uma associação desportiva por advogado que integra o conselho de disciplina dessa mesma associação, em processo em curso junto do Tribunal Arbitral do Desporto.
A matéria das incompatibilidades está regulada nos artigos 81º e 82º do E.O.A. - o primeiro referindo os princípios gerais e o segundo fazendo a menção, a título exemplificativo, de cargos, funções e atividades consideradas incompatíveis.
Sob a epígrafe “Princípios gerais” dispõe o artigo 81º do EOA o que segue:
“1 – O Advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.
2 – O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”
O artigo 81º, nº2 do E.O.A estabelece o principio geral de que o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.
Sob o artigo 82º do EOA é feita uma enumeração exemplificativa dos cargos, atividades ou funções que inequivocamente são incompatíveis com o exercício da advocacia; sem prejuízo da existência de outras situações que, não obstante a inexistência de expressa previsão legal, possam reputar-se incompatíveis com a advocacia.
Com o estabelecimento de um regime de incompatibilidades, o Estatuto visa proteger a generalidade dos demais deveres de isenção, independência e dignidade da profissão de advogado, prevenindo, igualmente, situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses ou angariação de clientela pelo próprio ou por interposta pessoa, de molde a garantir que o Advogado cumpra a sua atuação livre de qualquer pressão, especialmente dos constrangimentos inerentes aos seus próprios interesses ou de influências exteriores.
Como refere Carlos Mateus, “As incompatibilidade e impedimentos, estão em estreita conexão com os princípios da integridade (artº 88 do EOA) e da independência (artº 89º do EOA) e visam evitar situações que possam traduzir-se em falta de independência do Advogado; perda de dignidade e de isenção no exercício da profissão; a promiscuidade do Advogado; a vantagem de um advogado relativamente aos demais Colegas; e angariação ilícita de clientela por causa de outro cargo, função ou Actividade que o Advogado venha a exercer.“
O artigo 82º do EOA enuncia, em abstrato e de forma exemplificativa, uma série de impedimentos absolutos, ligados ao exercício de cargos, funções, atividades e profissões. Enquanto ests durarem, o exercício da advocacia é incompatível para todas as pessoas em relação às quais se verifique a situação, por se entender que podem afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.
As incompatibilidades ou impedimentos absolutos proíbem o Advogado de exercer a profissão e determinam a impossibilidade originária ou superveniente da inscrição – art. 188º, nº 1, al. d e nº 4, art. 91º, al. d) do EOA.
Se a incompatibilidade ou impedimento absoluto preexistir à data da inscrição, esta deve ser recusada – artº 188º, nº 1, al. d) do EOA.
Se a incompatibilidade for superveniente, cabe ao Advogado e Advogado Estagiário suspender imediatamente o exercício da profissão e requerer, no prazo máximo de 30 dias, a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados.
Ora, do elenco das incompatibilidades descritas no artigo 82º do EOA não se vislumbra qualquer incompabilidade entre o exercício da advocacia e o facto de o advogado do Advogado integrar os órgãos sociais e/ ou disciplinares duma qualquer associação desportiva, seja uma associação de clubes ou um mero clube.
Por outro lado, atendendo à teleologia do nº 2 do artigo 81º do E.O.A. também não se vê como pode existir incompatibilidade para o exercício da advocacia com o facto de um advogado integrar os órgãos disciplinares de uma associação desportiva. Com efeito, a integração de um advogado num órgão disciplinar de uma associação desportiva em nada contende com a isenção, a independência e a dignidade da profissão de advogado.
Pelo contrário, até a prestigia, pois significa o reconhecimento da sociedade civil de que o profissional de advocacia, pelo seu saber técnico e experiência profissional, tem um contributo positivo a dar na defesa do desporto e da verdade desportiva.
Vedar, à partida, tal possibilidade significaria reconhecer uma “capitis deminutio” ao advogado relativamente a outras profissões, para a qual, muito sinceramente, não encontramos fundamento.
Por tal conjunto de razões é de concluir que, em abstracto, não existe qualquer incompatibilidade entre o exercício da advocacia e a função de Vice -presidente do Conselho de Disciplina de uma Associação de Futebol.
Sucede, porém, que, a nosso ver, a questão deve ser analisada noutra perspectiva, qual seja no sentido de apurar se o facto de um advogado integrar os órgãos disciplinares de uma associação desportiva dimiminui a amplitude do exercício da advocacia por parte desse advogado e constitui uma incompatibilidade relativa do mandato forense e da consulta jurídica.
Sobre os impedimentos, o artigo 83º do E.O.A, diz-nos o seguinte:
1 - Os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.
2 - O advogado está impedido de praticar atos profissionais e de mover qualquer influência junto de entidades, públicas ou privadas, onde desempenhe ou tenha desempenhado funções cujo exercício possa suscitar, em concreto, uma incompatibilidade, se aqueles atos ou influências entrarem em conflito com as regras deontológicas contidas no presente Estatuto, nomeadamente, os princípios gerais enunciados nos n.os 1 e 2 do artigo 81.º
3 - Os advogados que sejam membros das assembleias representativas das autarquias locais, bem como os respetivos adjuntos, assessores, secretários, trabalhadores com vínculo de emprego público ou outros contratados dos respetivos gabinetes ou serviços, estão impedidos, em qualquer foro, de patrocinar, diretamente ou por intermédio de sociedade de que sejam sócios, ações contra as respetivas autarquias locais, bem como de intervir em qualquer atividade da assembleia a que pertençam sobre assuntos em que tenham interesse profissional diretamente ou por intermédio de sociedade de advogados a que pertençam.
4 - Os advogados referidos na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior estão impedidos, em qualquer foro, de patrocinar ações pecuniárias contra o Estado.
5 - Os advogados a exercer funções de vereador sem tempo atribuído estão impedidos, em qualquer foro, de patrocinar, diretamente ou por intermédio de sociedade de que sejam sócios, ações contra a respetiva autarquia, bem como de intervir em qualquer atividade do executivo a que pertençam sobre assuntos em que tenham interesse profissional diretamente ou por intermédio de sociedade de advogados a que pertençam.
6 - Havendo dúvida sobre a existência de qualquer impedimento, que não haja sido logo assumido pelo advogado, compete ao respetivo conselho regional decidir.
Os impedimentos diminuem amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica – art. 83º, nº 1 do EOA.
Como refere Fernando Sousa Magalhães, os impedimentos resultam de circunstâncias concretas que devem levar os advogados a recusar o mandato ou a prestação de serviços em função de conflito de interesses ou de simples decoro, já que o exercício da profissão deve ser livre, independente e adequado à dignidade da função.
Conjugando o disposto no artigo 81º, nº 2 com o disposto no nº 1 do artigo 83º, ambos do E.O.A., somos de opinião que existe impedimento para o exercício do mandato forense, para além das situações expressamente previstas no citado artigo 83º, sempre que possam ser postos em causa os princípios da isenção e independência no exercício da advocacia, princípios que se pretendem garantir com a consagração das incompatibilidades e dos impedimentos.
Por último, importa ter presente que o artigo 89º do E.O.A impõe que o advogado, no exercício da profissão, deve agir de forma livre de qualquer pressão exterior e deve abster-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente.
Ora, da matéria factual que nos foi trazida, entendemos que existe impedimento para o exercício do mandato pela Sra. Advogada Sra. Dra. SVA..., em representação da Associação de Futebol da G..., junto do TAD, num processo de impugnação de uma decisão proferida pelo Conselho de Disciplina daquela Associação e que a própria integra.
Com efeito, ao assumir o patrocínio jurídico da Associação de Futebol da G..., no processo de impunação da decisão do órgão disciplinar de que é Vice-Presidente, a Sra. Advogada, Dra. SVA... põe em causa a independência e a dignidade do exercício da advocacia, pois que a Sra. Advogada, , no exercício do mandato assumido, não deixará de estar sujeita à pressão externa decorrente do facto de ser Vice-Presidente do orgão de que emana a decisão recorrida e por cujos termos, fundamentos e sentido a mesma é co-responsável.
Como escreveu Louis Crémiu no seu Traité de la profession d’Avocat, “L’Avocat est independente est ce sens qu’il dispose d’une liberte entiére dans léxercice de son ministére. Rien, sauf le respect dú aux lois es à lórdre públic, ne doi entraver sa liberte de penseé et d’action. Il échappe à toute subordination. Cette indépendence est pour les justiciables la plus sure des garanties.”
Ou, como podemos ler na pág. 45 obra “O Advogado e a Moral “A independência é o esteio da consciência. A consciência está para a dignidade da advocacia como as margens para o rio: são elas que garantem a regularidade do seu curso. Se não existirem, a corrente transforma-se em lago, ou em charco (…).”
De resto, em abstrato, até poderíamos falar aqui numa situação de angariação ilicita de clientela. Efetivamente, o Advogado, como servidor do Direito e da Justiça, tem deveres especificos para com a comunidade, devendo abaster-se de solicitar clientes, por si ou por interposta pessoa, conforme lhe impõe o disposto na alínea h) do nº 2 do artigo 90º do EOA.
É a dignidade e decoro da profissão que exigem que o Advogado não promova a captação da clientela por si ou o seu agenciamenro por outrem.
Chamando à colação o ditado “À mulher de Cesar não basta ser séria, deve parecê-lo”, impõe-se afirmar que também a conduta do advogado também tem de se apresentar, aos olhos da comunidade, como séria, não lhe bastando (apenas) sê-lo.
No nosso entender, assume-se como especial forma de potenciar a angariação de clientela, o facto de alguém integrar os próprios órgãos sociais de uma associação.
Não obstante tal abstracta equação, o que é certo é que nenhum concreto elemento foi apurado de modo a suportar a conclusão de que a Sra. Advogada solicitou diretamente à Direção da Associação que a constituísse como sua mandatária no indicado processo.
Ora, tal como supra referimos integrar os órgãos disciplinares de uma associação desportiva é prestigiante para a própria advocacia – o próprio relator é Presidente do Conselho de Justiça de uma Federação Desportiva – mas, o mesmo, a nosso ver, já não pode dizer-se da constituição como mandatário, em processo concreto, da associação desportiva, cujo objecto seja precisamente uma decisão proferida pelo órgão que a mandatária constituída integra.
Por força do exposto consideramos que, no caso concreto, se verifica uma situação de impedimento de exercício da advocacia, nos termos do disposto nos artº.s 81º, nºs 1 e 2 e artº. 83º, nºs e 2 do E.O.A.
Entendemos, por isso, que a Sra. Advogada, Sra. Dra. SVA... deve, de imediato, cessar o patrocínio da Associação de Futebol da G... no âmbito da acção de impugnação que corre termos junto do TAD
Em conclusão:
- O artigo 81º, nº2 do E.O.A estabelece o principio geral de que o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.
2. O artigo 82º do EOA estabelece uma enumeração exemplificativa dos cargos, atividades ou funções que inequivocamente são incompatíveis com o exercício da advocacia, sem prejuízo da existência de outras situações que, não obstante a inexistência de expressa previsão legal, possam reputar-se incompatíveis com a advocacia.
3. Com o estabelecimento de um regime de incompatibilidades, o Estatuto visa proteger a generalidade dos demais deveres de isenção, independência e dignidade da profissão de advogado, prevenindo, igualmente, situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses ou angariação de clientela pelo próprio ou por interposta pessoa, de molde a garantir que o Advogado cumpra a sua atuação livre de qualquer pressão, especialmente dos constrangimentos inerentes aos seus próprios interesses ou de influências exteriores.
4. No caso concreto, tendo a Sra. Advogada o cargo de Vice-Presidente do Conselho de Disciplina da Associação de Futebol da G..., não pode assumir e intervir como mandatária desta Associação, num processo de impugnação de uma decisão proferida pelo Conselho de Disciplina que integra, por tal representação por em causa a independência e a dignidade do exercício da advocacia.
5. Assim, face ao impedimento verificado, deve a Sra. Advogada renunciar, de imediato, ao mandato que lhe foi conferido.
É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.
António Sá Gonçalves
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