PARECER Nº 10/PP/2024-C
Processo de Parecer n.º 10/PP/2024-C
Requerente: Tribunal Administrativo e Fiscal de V…
Assunto: Conflito de Interesses
Em 04 de abril de 2024, o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados recebeu pedido de parecer, emanado no processo judicial nº 460/20.3BE..., que corre termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de V... – Unidade Orgânica 1, que consigna o seguinte:
“Por ordem do Mmo. Juiz de Direito deste Tribunal, venho por este meio solicitar a V. Exa. que aprecie e decida sobre a eventual existência de impedimento do Exmo. Mandatário da Autora em assumir o patrocínio da mesma nesta ação administrativa, comunicando a este Tribunal a decisão final.
Para melhor esclarecimento, segue em anexo cópia dos seguintes elementos:
Ø Petição inicial (004748066 Petição Inicial);”
Ø Procuração da Autora (004748078 Procuração);
Ø Dois contratos de empreitada (004748067 Documentos da PI e 004748068 Documentos da PI);
Ø Contestação (004765675);
Ø Réplica (004770904 Réplica).”
Posteriormente, em 12 de abril de 2024, ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados foi dado conhecimento do conteúdo do douto despacho proferido no referido processo judicial, e que consigna o seguinte:
“Considerando que a Autora juntou aos autos substabelecimento sem reserva (conforme Requerimento (258594) Substabelecimento (004973316) de 05/04/2024 15:41:11):
- Julgo regularizada a respetiva representação processual nestes autos (artigo 48°, n.® 2, primeira parte do CPC), já não se suscitando nestes autos a questão do eventual impedimento do Exmo. Mandatário da Autora que ora substabeleceu (e que foi suscitada pelo Tribunal no Despacho (004971677) de 28/03/2024 14:38:04);
- Declaro finda a suspensão da instância decretada (artigo 276°, n.° 1, alínea c) do CPC);
- Oficie o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, comunicando a presente decisão para os efeitos que entender convenientes, com referência ao ofício que lhe foi remetido em Ofício (004971875) de 01/04/2024 14:45:49, juntando cópia do substabelecimento junto aos autos;
- D.N.”
Tendo o pedido sido devidamente instruído com toda a documentação a que aludem as comunicações referidas, foi o mesmo distribuído ao aqui Relator, em 19 de abril de 2024, para emissão do correspondente parecer.
Atenta a dimensão dos articulados juntos, importa, em primeiro lugar, relacionar a factualidade com relevância para a pronúncia solicitada.
Em suma:
O Ilustre Advogado Dr. LM..., em representação dos Autores Lopes e Irmãos, Lda, propôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de V..., Ação Administrativa de Condenação em Processo Comum sob a forma ordinária, contra o Réu Município de Penalva do Castelo, daqui em diante designado apenas por réu, formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Ex.a doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e consequentemente:
Deve o réu município ser condenada, no pagamento à autora da quantia de 182.931,73 (cento e oitenta e dois mil novecentos e trinta e um euros e setenta e três cêntimos referente às obras realizadas e respetivo iva à taxa legal em vigor de 6%.
Montante acrescido de juros à taxa apenas de 4% sobre o capital desde 06/10/2015, mas vencidos também apenas nos últimos cinco anos, no montante de 36.586,34 (trinta e seis mil quinhentos e oitenta e seis euros e trinta e quatro cêntimos).
E vincendos contados até efetivo e integral pagamento à taxa legal em vigor.
ou,
se assim se não entender e a titulo subsidiário,
deve o reu município ser condenado a pagar a aludida quantia segunda as regras do enriquecimento sem causa.
Finalmente deve ser o reu condenado a assim o ver julgar, acrescido das custas devidas.
Requer a citação do réu, para querendo contestar a assim o entender, no prazo e sob as cominações legais.”
A Ilustre Advogada Dra. SC..., em representação do réu, contestou a ação, peticionando a respetiva improcedência e a consequente absolvição do Réu de todos os pedidos contra si formulados.
Com relevância, na contestação oferecida, o Réu reconhece a celebração, em 13/12/2010 do contrato de empreitada no âmbito do Processo n.º 3/2010, designado “Área de Acolhimento Empresarial de Es… ", pelo prazo de 550 dias, pelo preço de €672.704,61, acrescido de IVA à taxa legal.
Admite que a Autora realizou trabalhos no âmbito dessa empreitada, tendo os mesmos sido medidos e pagos.
O Réu nega que o segundo contrato de empreitada, com a designação de "Empreitada de "área de acolhimento empresarial de Es..., com o nº de processo n.º 3/2013, diga respeito à mesma empreitada, afirmando que o mesmo versou sobre empreitada distinta, com o intuito de colmatar os trabalhos complementares em falta relativos ao primeiro contrato de empreitada, sendo que esses trabalhos tiveram o seu início em 14/08/2013 e conclusão em 27/01/2015.
A Ilustre Advogada Dra. SC... refere, ainda, que, à data da celebração desses contratos, o Réu era presidido pelo Dr. LM..., Ilustre Mandatário da Autora nos autos em crise, tendo requerido a sua inquirição, pelo facto de o mesmo ter conhecimento e intervenção direta nos factos.
Com relevo para a decisão a proferir, o Réu nega que os trabalhos tenham sido executados por ordens do município, que este nunca tenha levantado qualquer desconformidade ou defeito dos trabalhos em causa e que os mesmos tenham sido incorporados na obra, tendo assim enriquecido o seu património.
Mais considera que essa alegação, por parte do Ilustre Mandatário da Autora, é suscetível de gerar uma situação de conflito de interesses, porquanto o mesmo, que alega as ordens do Município e a aceitação dos trabalhos, era, à data, o Presidente do Órgão Executivo do Réu.
A este propósito, a Ilustre Mandatária do Réu, tendo requerido a inquirição do Ilustre Advogado da Autora, acaba por suscitar a questão de um eventual conflito de interesses e consequente dever de recusa de patrocínio, nos termos do artigo 99°, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, considerando tratar-se de uma questão em que o Ilustre Advogado já tinha tido intervenção na qualidade de Presidente da Câmara Municipal.
A Autora acrescenta, ainda, que o actual Presidente do órgão executivo do município Réu só tomou posse em 21/10/2013, depois de terem sido adjudicadas e de se terem iniciado as duas supra referidas empreitadas.
Em Réplica à Contestação oferecida, o Ilustre Mandatária da Autora admite que à data da celebração de ambos os contratos de empreitada, em 2010 e 2013, presidia ao município.
Acerca do eventual conflito de interesses, suscitado pela Ilustre Advogada do Réu, o mesmo refere que “…embora os contratos referidos tivessem sido outorgados no mandato 2009/2013, o certo é que o que está em causa nos presentes autos e é a questão nuclear, não tem qualquer conexão com aqueles contratos, a não ser a sua execução naquelas obras, de trabalhos a mais e obra não prevista nos dois referidos contratos e em quantidades de trabalho a mais, para além do legalmente admissível…”.
Concluindo assim que o objecto da presente acção nada “…tem a ver com os contratos realizados e outorgados pelo mandatário da autora, mas a falta de pagamento de obra mandada executar com trabalhos em quantidades a mais do legalmente admissível a pagamento sem novo concurso, e trabalhos diferentes dos contratados, mas com preços acordados.”.
Ainda a propósito do eventual conflito de interesses, pugna o Ilustre Advogado que “Vem ainda o réu, através da sua jurista avençada e mandatária neste processo, em tom de ameaça velada, suscitar a eventual irregularidade do mandato do signatário, suscitando, até, e pasme-se, a intervenção da ordem dos advogados”.
Considera o mesmo que essa “…pseudo questão entronca, apenas, na postura omissiva do réu, que devia pagar o que deve e honrar os compromissos que assumiu.”.
E que a mesma “…traduz a subversão total das regras processuais (até da boa fé) ao indicar-se como testemunha o advogado que no mesmo processo patrocina uma das partes - in casu a autora.”.
Compulsadas as posições processuais assumidas pelas partes, designadamente, no que concerne à potencial existência de um conflito de interesses susceptível de afetar o mandato forense conferido ao Ilustre Advogado da Autora, o Mmo. Juiz do processo solicitou a intervenção do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, com vista à obtenção do necessário parecer.
Entretanto, atento o facto de o Ilustre Advogado da Autora ter substabelecido, sem reserva, os poderes que lhe haviam sido conferidos para intervir nos identificados autos, o Mmo. Juiz proferiu despacho considerando “regularizada a respetiva representação processual nestes autos (artigo 48°, n.® 2, primeira parte do CPC), já não se suscitando nestes autos a questão do eventual impedimento do Exmo. Mandatário da Autora que ora substabeleceu…”, declarou finda a suspensão da instância e determinou que se “Oficie o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, comunicando a presente decisão para os efeitos que entender convenientes, com referência ao ofício que lhe foi remetido em Ofício (004971875) de 01/04/2024 14:45:49, juntando cópia do substabelecimento junto aos autos.”.
Feito o enquadramento do pedido de parecer efectuado, cumpre, neste momento, aferir da competência do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados para a respectiva emissão.
Nos termos do disposto no artigo 54º, nº 1 alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro, na sua versão actual (doravante designado por EOA), que compete aos Conselhos Regionais, no âmbito da sua competência territorial, “Pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional;”.
A jurisprudência da Ordem dos Advogados tem sido unânime em definir como questões de carácter profissional todas as que assumam natureza estatutária, resultantes de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.
Considerando, de acordo com o supra vertido, que este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados é competente, material e territorialmente, cumpre emitir parecer quanto à questão suscitada no presente processo.
Compulsado o teor do pedido de parecer apresentado pelo Tribunal, resulta inequívoco tratar-se de uma questão relacionada com a conduta profissional do Ilustre Colega, mandatário da Autora, passível de consubstanciar uma situação de conflito de interesses.
Importa, pois e antes de mais, examinar o seu contexto jurídico para, de seguida, verificar a sua aplicabilidade à situação em análise.
A problemática do conflito de interesses no exercício da advocacia encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA, que dispõe o seguinte:
Artigo 99.º
Conflito de interesses
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”
O supra citado normativo salvaguarda e preserva valores essenciais da advocacia como a independência, confiança e lealdade e, bem assim, a salvaguarda do segredo profissional.
O artigo 99º do EOA enuncia, nos seus números 1 e 2, situações que determinam, ao advogado, a recusa, perentória, do patrocínio.
Assim, o advogado deve abster-se de assumir o mandato:
- Em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;
- Em questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;
- Em questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
O nº 3 do citado artigo determina ainda que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
Por seu turno, o nº 4 dispõe sobre a hipótese de um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como, sobre a hipótese de ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, situações em que o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
Nos termos do n.º 5, o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, procurando-se, assim, defender a comunidade e os clientes dos advogados em especial, de atuações ilícitas destes, conluiados ou não, com outros clientes, bem como, defender o advogado da hipótese de sobre ele recair a suspeita de uma atuação visando qualquer outro fim, que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.
Finalmente o nº 6 determina que sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores do referido artigo 99º do EOA é aplicável quer à associação, quer a cada um dos seus membros.
Sendo certo que, em regra, o processo de aferição da existência ou não de um conflito de interesses é um exercício eminentemente casuístico, certo é que o legislador estabelece, a priori, alguns casos em que o conflito de interesses impõe um dever de recusa do patrocínio, não porque em concreto e no imediato se verifique o conflito de interesses, mas porque, objetivamente, as circunstâncias, em si mesmas, concorrem para a eclosão desse conflito.
Ao longo do tempo, o Conselho Regional de Coimbra tem proferido inúmeros pareceres sobre o conflito de interesses, sendo entendimento firmado que é ao advogado que cabe a responsabilidade maior de avaliar, casuisticamente, se ocorre, ou não, uma situação de conflito de interesses.
Genericamente, o advogado não se encontra impedido de exercer patrocínio contra um anterior cliente desde que o patrocínio não configure uma situação de conflito de interesses.
Como já se referiu, o artigo 99º do EOA pretende evitar o risco sério, ainda que meramente potencial, de um conflito de interesses entre clientes, ou ex-clientes do causídico, quando os mesmos acabam em lados diferentes da barricada.
Analisados os elementos trazidos aos presentes autos à luz do descrito enquadramento, parece-nos evidente que a factualidade se subsume à previsão do citado artigo.
Senão vejamos,
O Ilustre Advogado Dr. LM..., mandatário da Autora, admite que, pelo menos, entre 2010 e 2013, presidiu ao Município de Penalva do Castelo.
Em representação dessa pessoa colectiva de direito público, em 13 de dezembro de 2010 outorgou, na qualidade de Presidente da Câmara Municipal de Penalva do Castelo, com poderes para o acto, um contrato de empreitada, referente ao processo nº 3/2010, com a sociedade por quotas denominada “L.... & Irmão Lda”.
Em 05 de abril de 2013, o Ilustre Advogado Dr. LM..., uma vez mais em representação do Município e na qualidade de Presidente da Câmara Municipal de Penalva do Castelo, com poderes para o acto, outorgou um novo contrato de empreitada, no âmbito do processo nº 3/2013, com a sociedade comercial supra referida.
Em 21 de outubro de 2013, tomou posse o actual Presidente do órgão executivo desse município, isto é, em momento posterior a terem sido outorgados os contratos supra referidos e terem tido início as respectivas empreitadas.
Em 2020, o Ilustre Advogado Dr. LM..., após ter assumido o patrocínio da sociedade comercial “L.... & Irmão Lda” e, em sua representação, propôs acção administrativa contra o Município de Penalva do Castelo.
Da análise das peças processuais remetidas pelo TAF de V..., resulta factualidade diversa cuja avaliação e escrutínio para efeitos de natureza processual não cabe na presente sede, revelando-se, contudo, com interesse para a avaliação que aqui se realiza, que o cerne da questão controversa reside, precisamente, nos contratos de empreitada assinados entre o município de Penalva do Castelo e a sociedade comercial “L.... & Irmão Lda”, nos trabalhos por esta desenvolvidos nessa sequência, no cumprimento das condições dos respectivos cadernos de encargos e, bem assim, na eventual falta de pagamento dos mesmos.
É, pois, com base na factualidade vertida nos documentos fornecidos que passaremos a responder ao pedido formulado pelo TAF de V..., desta feita por via da emissão de parecer, e mais concretamente, no definido quadro de ocorrência de conflito de interesses.
Aqui chegados, não podemos deixar de antecipar o entendimento quanto à efectiva existência de conflito de interesses entre a Autora/sociedade comercial e o Réu/município, desde logo no que se refere ao cumprimento dos contratos celebrados entre as partes litigantes, contratos esses outorgados pelo, ao tempo, Presidente da Câmara Municipal de Penalva do Castelo, o Sr. Dr. LM..., que agora surge na veste de Ilustre Mandatário da Autora.
Com efeito, a factualidade apurada é subsumível ao nº 1 do artigo 99º do EOA que, recorde-se, refere, taxativamente, que um advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária. Tudo com vista a prevenir a violação de deveres deontológicos que, consagradores dos princípios de conduta dos advogados, visam a salvaguarda dos princípios da independência, do segredo profissional, da dignidade, da lealdade, confiança e ética (a que a doutrina também junta o decoro), quais valores fundamentais no exercício da advocacia.
A referida subsunção dos factos ao estatuído no artigo 99º do EOA – por via do respectivo exame para efeitos de determinar se os mesmos configuram, ou não, uma concreta situação de conflito de interesses.
Resulta do inequívoco e assente facto de que o Ilustre Advogado da Autora, no que à matéria dos autos diz respeito, interveio em duas qualidades díspares, enquanto Presidente da Câmara Municipal outorgou, em representação do município, os contratos de empreitada em causa nos autos e, posteriormente, enquanto mandatário da sociedade comercial que outorgou esses contratos, na acção administrativa instaurada com vista à condenação do indicado município no pagamento de quantias devidas, vencidas e não pagas no âmbito ou por força dos mesmos – sendo, por isso, forçoso concluir que existe evidente conflito de interesses, nos termos do previsto no n.º 1 do artigo 99º do EOA.
Conclusões:
1. A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia concerne, encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA, no qual são elencadas as situações em que o Advogado deve recusar o patrocínio, por se afigurar que nas indicadas hipóteses a independência, confiança, lealdade e dever de guardar sigilo profissional, podem ficar irremediavelmente comprometidos.
2. O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
3. O Advogado que, na qualidade de Presidente da Câmara e em representação do município, tenha outorgado contratos de empreitada ou quaisquer outros contratos públicos, deve recusar o patrocínio do cocontratante que também tenha outorgado esses mesmos contratos, em acção administrativa que verse sobre o seu (in)cumprimento ou sobre questões que com os mesmos se relacionem.
O Conselho Regional de Coimbra detém competência para a emissão do presente parecer, por lhe estar subjacente situação e conduta praticada por Advogado com escritório na sua área de circunscrição territorial (o Sr. Dr. LM... tem domicílio profissional em Penalva do Castelo), por um lado, e porque em causa está questão de carácter profissional expressamente submetida à sua apreciação, nos termos do art. 54º, nº1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), por outro.
São questões de carácter profissional todas aquelas que se prendem com o exercício da advocacia, tradicionalmente concebidas como decorrentes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam a profissão resultantes, em especial, das normas do nosso Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados. (neste sentido, a Consulta nº31/2007, Relatada por Sandra Barroso e o Parecer 20/2015, Relatado por Rui Souto, ambos do ora Conselho Regional de Lisboa).
Os poderes atribuídos aos Conselhos Regionais para a emissão de parecer têm, necessariamente, de ser harmonizados com a competência específica conferida a outros órgãos da estrutura da Ordem dos Advogados, como é o caso dos Conselhos de Deontologia a quem cabe o exercício do poder disciplinar e de zelar pelo cumprimento das normas de deontologia profissional (art. 58º do EOA).
O respeito pela estrutura orgânica e consequente repartição de funções e competências materiais para o seu exercício, determina, pois, que o Conselho Regional de Coimbra – no que importa à apreciação de assuntos referentes a deontologia ou ética profissional – apenas possa pronunciar-se quanto a tais matérias, em termos de mera orientação, em estrita resposta à consulta colocada.
O exercício da indicada competência ocorre, como se disse, por via da resposta às questões profissionais que lhe são colocadas, sem embargo, contudo, de, por respeito ao princípio da legalidade, comunicar ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os efeitos tidos por convenientes, os casos identificados como condutas passíveis de configurar violação de deveres e princípios ético-deontológicos.
No caso em apreciação foi emitido Parecer, resultando do respectivo teor que, dos elementos disponibilizados para o efeito, emerge a verificação de uma situação de conflito de interesses. Ora, porque uma situação de tal natureza se revela apta a configurar conduta disciplinarmente censurável, impõe-se a extracção de certidão do mesmo e a sua remessa ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os efeitos tidos por convenientes.
É este o nosso parecer.
Carlos Santos Silva
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