Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 8/PP/2024-C

PROCESSO DE PARECER Nº 08/PP/2024-C

 

 

I. Relatório

 

1. Por ofício de 12.12.2023, dirigido ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem Advogados[1], solicitou o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de ... – Juiz 5, emissão de “Parecer sobre a (i)legalidade da junção pela ré da comunicação aludida nos arts. 19º, 20º e 21º da contestação” que integra a Ação de Processo Comum nº 3244/23.3...;

2. Em 14.03.2024 o Tribunal enviou email de importância alta ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados, indicando no Assunto: MUITO URGENTE - Processo nº 3244/23.3..., aditando a seguinte nota: “Ofício URGENTE em anexo. Julgamento próximo dia 24 Abril 2024”;

3. O ofício anexado é dirigido ao Conselho Distrital de Lisboa, e tem por assunto “Insistência - Despacho”, dele constando que, “Não tendo até ao momento sido satisfeito o solicitado (…) vimos novamente junto de V. Exª solicitar no sentido de, tão urgente quanto possível, ser satisfeita a nossa pretensão”;

4. A mensagem eletrónica enviada pelo Tribunal Requerente ao Conselho Geral foi por este remetida, pela mesma via, ao Conselho Regional de Lisboa (a quem se dirigia o pedido) em 14.03.2024;

5. Atendendo a que o Senhor Advogado em causa, Senhor Dr. LS..., tem domicílio profissional em Pombal, foi o processo foi remetido, em 18.03.2024, a este Conselho, por ser o competente;

6. Assim, deu entrada nos Serviços Administrativos do CRC apenas em 19.03.2024 (Reg. 2422), sendo que no dia 20.03.2024 foi o Tribunal Requerente informado da exata data da sua receção, e ainda de que o mesmo seria distribuído na sessão seguinte, a realizar em 05.04.2024;

7. O pedido foi unicamente instruído com cópia da Contestação/Reconvenção e com o doc. 2 junto com a mesma; cópia da ata da audiência prévia de 15.11.2023; e cópia do requerimento de resposta à invocada violação do segredo profissional, pelos Autores. Aquando da insistência foi igualmente remetida ata da audiência de discussão e julgamento realizada em 13.03.2024.

8. A matéria submetida a apreciação foi assim exposta:

“Art. 19º: A dita missiva teve resposta através do e-mail de 03 de Agosto de 2022, enviado pelo Mandatário da R., ao Mandatário dos AA., que aqui se junta como doc. nº2.

Art. 20º: Conforme se pode verificar do doc. nº2, supra junto, foram dadas as explicações necessárias e ainda solicitada marcação da escritura.

Art. 21º: O que foi renovado, nos diversos e-mails que a A. mulher foi trocando com a R., e com a filha da R., e-mails esses que aqui se juntam como documentos nº3”;

9. Para a exigida perceção e contextualização da situação em análise, em particular no que respeita à identificação da troca de correspondência entre as partes processuais – por si e através dos seus Mandatários – em 10.04.2024, afigurando-se necessário para apreciar e decidir, foi solicitada ao Tribunal a procuração forense outorgada ao Senhor Dr. LS... bem como a carta junta com a p.i. sob o doc. nº7, documento este recebido na sua integralidade em 11.04.2024;

10. Como informação relevante há a reter o seguinte:

10.1. Em causa está contrato-promessa que não se concretizou;[2]

10.2. De acordo com os AA., a Ré encontra-se em mora por não lhes ter facultado as “explicações acerca das questões”[3] que colocaram por carta (junta como doc. 7 da p.i.);

10.3. Tal carta foi enviada diretamente pelo mandatário dos AA. à Ré;

10.4 Nela, “a A. mulher escusou-se desde logo a pagar as despesas das infraestruturas e de urbanização, apesar da transação que tinha sido feita no Proc. nº 14786/14.1..., que correu termos no Juízo Central Cível de ... – Juiz 5, homologada por sentença de 07 de fevereiro de 2017”[4];

10.5. Constata-se, então, a existência de processo conexo, sendo objeto do litígio (entre outros) “o comportamento das partes na execução do acordado e das respetivas consequências”[5];

10.6. Entende a Ré[6] que “decorre [daquela] transação” judicial homologada por sentença de 07.02.2017, que “se mantiveram todas as obrigações dos (…) AA. e da (…) R., derivadas do contrato-promessa de compra e venda, com exceção do que respeita ao prazo para realização da escritura pública que passou a ter nova redação”;

10.7. “Na sequência da nova redação da cláusula terceira do contrato-promessa”[7] a Ré enviou diretamente à A. mulher a carta junta com a p.i.  como doc. nº5 e, embora não tenha sido junta aos presentes autos, é possível extrair que se trata de carta trocada diretamente entre as agora partes;

10.8. Por sua vez, a carta de resposta a essa, datada de 26.07.2022, foi diretamente remetida à Ré pelo Advogado dos AA., Senhor Dr. LM..., em representação da A. mulher – junta, como se disse, à p.i., sob o doc. 7 –, comunicando-lhe ter o seu escritório sido incumbido de tomar posição sobre o teor da missiva enviada à sua constituinte em 13.05.2022;

10.9. Mais comunica que após análise dos documentos “temos que, e muito resumidamente, tanto o contrato promessa de 31.03.1995 como a cessão de posição contratual, de 12.6.1997, encontram-se em vigor e são, tal como redigidos, reconhecidos como válidos, tanto por V. Exa. [Ré] como pela n/ Constituinte (tudo por via da transação judicial de 7.02.2017).”;

10.10. Deixa ainda que “decorre inequívoco para nós, da evolução do texto do contrato promessa (que previa «livre de ónus e encargos exceto urbanização e infraestruturas» para o texto da cessão de posição (que prevê «é feita livre de quaisquer ónus e encargos e com a urbanização e infraestruturas pagas conforme recibo que se junta», contrato último este que teve como anexos os recibos referentes a «taxas de urbanização» pagas pelo cedente (…), que o único montante em falta, e a entregar aquando da realização da escritura são os 3 milhões de escudos (14.963,94€).”;

10.11. Refere que não são colocados em causa os «custos totais» apresentados, “nem teríamos, nesta fase, como o fazer” mas “apenas, e partindo dos documentos que tenho comigo, não estou a dar por bom que seja a promitente compradora a ter de os suportar (ainda que na proporção da área do seu lote)”;

10.12. O Senhor Dr. LM..., dirigindo-se, portanto, diretamente à contraparte (desacompanhada de Advogado), invoca ter a sua cliente “sido particularmente lesada pela expressiva mora” na conclusão do negócio, com expetativas defraudadas e “expressivas despesas, inclusivamente recurso a tribunal”; E

10.13. Coloca à ora Ré 2 questões (as identificadas no art. 18º da Contestação):

“Mais aproveito para solicitar:”[8]

«i) Que explique a que distrate se refere porquanto da certidão permanente que fez o favor de enviar não resulta nenhum ónus a levantar;

ii) Que esclareça que o valor remanescente em dívida ascende a 14.963,94€ e não aos 16.000€ que identifica na carta em resposta.»,

deixando o seu email “por modo a facilitar a troca de comunicações” (entre Ré/Advogado da A., portanto);

10.14. Termina a carta comunicando ficar a aguardar proposta de data para a realização da respetiva escritura pública;

10.15. A Ré, através do seu Advogado, Senhor Dr. LS..., enviou a correspondente resposta via eletrónica, por mensagem de 03.08.2022. – Ou seja, tratou-se de email enviado por um Advogado a outro, ambos em representação dos seus constituintes;

10.16. Foi incluído por este no art. 19º da Contestação precisamente esta mera informação: “A dita missiva [remetida pelo Mandatário dos AA. diretamente à Ré] teve resposta através do e-mail de 03 de Agosto de 2022, enviado pelo Mandatário da R., ao Mandatário dos AA.”, sendo que, para prova, procedeu à sua junção (doc. nº2);

10.17. Aí se pode ler que a Ré o incumbiu de “remeter o presente e-mail, em resposta v/ missiva datada de 26/07/2022”;

10.18. “Quanto ao conteúdo da dita missiva”, escreve aquele que “não resulta da transação alcançada na Ação de Processo Comum n° 14786/14.1... (…) a leitura que V. Exª está a fazer acerca do assunto em apreço”, razão pela qual, Para uma melhor compreensão, (…) [passa,] de forma sequencial a fazer a análise da transação, ponto por ponto;

10.19. Assim, transcreve as 6 cláusulas da transação, introduzindo abaixo do texto de cada uma breves notas que mais não são do que a “tradução” das mesmas (até pela utilização das expressão “resulta desta cláusula”/ “Daqui resulta”/…). De certa forma, reescreve-as de modo simplificado, fornecendo o que, quando muito, serão simples, por óbvias, explicações. Assim:

“Ponto 1:

«Tendo em consideração, a declaração junta pela atual proprietária do prédio objeto do presente litígio, o réu e EFS... reconhecem que os autores assumiram a posição de promitentes compradores no Contrato de Promessa outorgado no dia 31 de Março de 1995 entre ISS... e MASS... na qualidade de promitente compradores e os aqui réus na qualidade de promitentes vendedores, por força do contrato de cessação da posição contratual outorgado no dia 12 de Junho de 1997, onde figuram os supra ditos Ilídio e mulher como cedentes e os aqui autores como cessionários.»

Resulta desta cláusula que a sua cliente passou a figurar no primitivo contrato promessa como promitente compradora e a minha cliente como promitente vendedora, respeitando o clausulado nesse contrato (sendo este unicamente o contrato que vincula as partes)

Ponto 2:

«Por força do que se deixou dito, o réu e EFS... reconhecem que os autores pagaram o sinal de 1.000.000$00 de escudos, correspondendo atualmente ao montante de 4.987,98€.»

Daqui resulta que o único sinal que os promitentes compradores deram foram de 1.000.000$00 de escudos.

Ponto 3:

«Mais reconhecem os réus e a atual proprietário EFS... que os autores entregaram à Associação de Moradores do Bairro da Ab… o montante de 4.074,36€ por conto das obras de infraestruturas e urbanização que no Contrato de Promessa ficaram a cargo dos promitentes-compradores.»

Está, portanto, reconhecido a entrega deste valor à Associação.

Ponto 4: «Os autores reconhecem e aceitam que a posição contratual, de promitente vendedor, no contrato de promessa de compra e venda datado de 31 de Março de 1995 outorgado entre o identificado ISS... e mulher MASS... na qualidade de promitentes-compradores, e MO... por si e em representação da sua mulher MPBO... na qualidade de promitentes vendedores se transferiu, por força da transferência de propriedade do prédio rústico melhor descrito no artigo 1º da petição inicial, para EFS....»

É clara esta cláusula, não merece qualquer comentário

Ponto 5:

«Autores e réus e EFS... acordam que se mantém em vigor, o Contrato de Promessa de Compra e Venda outorgado em 31 de Março de 1995 com as alterações das posições contratuais acima referidas e reconhecidas.»

Resulta desta cláusula que as partes reconhecem que o primitivo contrato-promessa se mantêm em vigor, apenas alterado quanto à identificação do promitente vendedor e do promitente comprador, que passam a ser na posição do promitente vendedor a D. EFS... e na posição de promitente comprador a cliente de V. Ex.ª.

Ponto 6:

«Autores, réus e EFS... acordam em alterar a cláusula 3ª do Contrato de Promessa de Compra e Venda no gue respeita ao prazo para realização da escritura nos seguintes termos:

A escritura realizar-se-á no prazo de 60 dias a contar da data da conclusão das obras de urbanização, a qual será comunicada pela proprietária EFS... à aqui autora, ZN... por meio de carta registada com aviso de receção.»

Resulta desta cláusula que após a comunicação da conclusão das obras, a cliente de V. Ex.° tem 60 dias para marcação e realização da escritura.”;

10.20. Apenas na parte final do email conclui naturalmente, a partir do próprio texto da transação: “Conforme se pode retirar do clausulado na transação, o que se encontra em vigor, é o primitivo contrato promessa, unicamente com as alterações das partes que o compõem, sendo a minha cliente alheia e sem qualquer vinculação jurídica ao que se encontra clausulado no contrato de cessão da posição contratual, que só vincula as partes que o subscreveram.”;

10.21. Mais conclui, reproduzindo os artigos do contrato-promessa, que “Resulta do artigo 4º do contrato-promessa que «A escritura de compra e venda fica a cargo do 2º outorgante, que suportará as despesas daí decorrentes, da sisa, das infraestruturas e urbanização.»  Ainda resulta do artigo 6º do contrato-promessa que «o prédio é vendido livre de ónus ou encargos, exceto urbanização e infra- estruturas e aprovado para construção.», com o que transmite que “Em parte alguma da transação se alterou esta realidade!”;

10.22. Da mesma forma, esclarece em resumo que transmite em jeito de interpelação, que, “Uma vez que os valores apresentados pela minha cliente, para além do valor do remanescente do preço, se referem a custos com as infraestruturas (para além daquelas já pagas à associação), está a sua cliente obrigada contratualmente a suportá-los, sob pena de Incumprimento definitivo do contrato, com as legais consequências.”;

10.23. E finalmente, reportando-se à questão abordada na carta do Colega a que responde, avança que “nos termos do contrato o encargo da marcação da escritura é da cliente de V. Ex.ª, pelo que ficamos a aguardar pela marcação da mesma”, transmitindo a posição expressa da sua cliente: “advertindo desde já, que a minha cliente apenas assina a escritura contra a entrega no ato de um cheque bancário com o valor do remanescente do preço, acrescido dos custos das infraestruturas. Aguardo v/ prezadas notícias …”;

10.24. No art. 20º da contestação referiu o Mandatário da Ré, de forma ampla, ou genérica, “Conforme se pode retirar do doc. nº2 (…) foram dadas as explicações necessárias e ainda solicitada a marcação da escritura”;

10.25. O que, conforme consta do art. 21º, “foi renovado, nos diversos e-mails que a A. mulher foi trocando com a R., e com a filha da R., e-mails esses que aqui se juntam como documentos nº 3” – Ou seja, correspondência eletrónica diretamente trocada pelas partes entre si;

11. Em sede de Audiência Prévia, realizada em 15.11.2023, o Exmo Mandatário dos AA. ditou para a ata requerimento no qual levantou a questão da violação do segredo profissional, pelo seu Colega, ao juntar aquele documento para suporte do alegado no art. 19º da Contestação;

12. Conforme referiu expressamente, “a transcrição [que nem está entre aspas, frisa-se] da comunicação, ao processo (…) resulta de contatos estabelecidos entre os Advogados, contatos esses portadores de uma tentativa de negociação que se veio a malograr;

13. Acrescenta que, “à medida de comunicação refiro-me ao Documento 2 da Contestação [email enviado pelo Mandatário da Ré ao Mandatário dos AA. em 03.08.2022] subsume-se situação prevista na al. f) n. 1 e 3 Art. 92º nº1 do EOA e como tal estar coberto no segredo profissional não podendo o seu conteúdo ser revelado com a sua junção aos autos e os documentos não podem ser utilizados como documento de prova.” (sic);

14. De modo que requereu que fosse “determinado o desentranhamento” de tal documento e que fosse “considerado por não escrito o constante nos artºs. 19 e 20 e até «renovado» do artº 21 da Contestação”;

15. Concedido ao Senhor Dr. LS... prazo para se pronunciar, veio este, em 20.11.2023, sustentar que “o email em causa não contém matéria sigilosa, nem está sujeito à confidencialidade prevista no art. 113º do EOA[9] [norma que nem foi invocada no requerimento em que a questão foi suscitada, e tem por epígrafe “Correspondência entre advogados e entre estes e solicitadores”], pelo que o seu conteúdo não está sujeito a sigilo profissional, podendo licitamente ser divulgado o seu conteúdo.”[10];

16. No entanto, insurge-se[11] contra a invocação, pelo Mandatário dos AA., de violação de sigilo por troca de correspondência, porquanto “ele próprio juntou correspondência que enviou à R.”, referindo-se, pois, ao doc. 7 junto com a p.i., ou seja, à carta diretamente enviada por aquele à cliente deste em 26.07.2022;

17. O presente processo foi distribuído e recebido pela signatária em 05.04.2024;

18. O Conselho Regional de Coimbra analisa todo os pedidos que dão entrada, com explícita indicação e motivação, pelos requerentes, do seu caráter de urgência, dando prioridade de decisão aos requeridos pelos Tribunais e a todos os que têm diligências agendadas/prazos em curso, e tratando primeiramente aqueles cujas datas se encontram mais próximas;

19. Tal implica, pois, a remessa – para o órgão competente, utilizando o seu endereço atualmente em vigor – de todos os elementos relevantes para uma decisão circunstanciada, devidamente fundamentada e consciente, além da comunicação expressa, e cautelosamente atempada, das datas das mesmas/prazos em causa;

20. Os Pareceres, contudo, têm de ser aprovados em sessão do CRC, que reúne, conforme foi transmitido, quinzenalmente, sendo que o que ora se aprecia será apresentado em 19.04.2024.

 

II. Apreciação

 

                A. A competência consultiva do Conselho Regional de Coimbra

 

                O Conselho Regional de Coimbra detém competência para a emissão do presente parecer, não apenas por estar subjacente situação que, embora verificada em processo que corre os seus trâmites fora da sua área de competência territorial, tem como protagonista Advogado que a ela pertence (tem o mesmo domicílio profissional em Pombal) mas também porque em causa está questão de carácter profissional expressamente submetida à sua apreciação, nos termos do art. 54º, nº1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), que define, precisamente, a competência material do Conselho.

                Procedendo à delimitação do âmbito material desta norma, são questões de carácter profissional todas aquelas que se prendem com o exercício da advocacia, tradicionalmente concebidas como decorrentes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam a profissão. Resultantes, em especial, das normas do nosso Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.[12]

                Todavia, os poderes atribuídos aos Conselhos Regionais para a dita pronúncia têm, necessariamente, de ser entendidos e conciliados com a competência específica que é conferida, em áreas concretas, a outros órgãos da estrutura da Ordem dos Advogados. É o caso do poder disciplinar, e do de velar pelo cumprimento das normas de deontologia profissional, atribuído aos Conselhos de Deontologia (art. 58º do EOA).

                Uma tal consideração, com o respeito que é devido à estrutura orgânica e consequente repartição de funções e competências materiais para o seu exercício, determina, pois, que o Conselho Regional de Coimbra – no que importa à apreciação de assuntos referentes a deontologia ou ética profissional – apenas possa pronunciar-se quanto a tais matérias, em termos de mera orientação, em estrita resposta à consulta colocada. Precisamente por, neste âmbito, deter unicamente competência consultiva e carecer, portanto, de competência decisória. Por tal razão, não foi o Senhor Advogado visado notificado nos termos e para os efeitos do art. 121º do Código de Processo Administrativo.

                Tem sido prática deste Conselho responder às questões profissionais deste foro que lhe são colocadas, sem embargo de, em função do respeito pelo princípio da legalidade, comunicar os casos identificados como condutas passíveis de integrar, ou que integram, violação de deveres e princípios ético-deontológicos, ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os devidos efeitos. Esta concreta opção determina, não apenas a circunscrição da apreciação – estritamente a efetuar a partir dos elementos constantes do processo –, mas ainda a natureza não vinculativa da correspondente decisão, que não configura, nem pode alcançar relativamente à questão de fundo, uma decisão de mérito.

                No caso em apreciação solicitou o Tribunal Requerente “Parecer sobre a (i)legalidade da junção pela ré da comunicação [email] aludida nos arts. 19º, 20º e 21º da contestação.” Não cabendo a este Conselho exata pronúncia nos termos requeridos, atentas as suas competências e o mencionado caráter do Parecer a emitir, apenas nos pronunciaremos sobre a questão na perspetiva do dever de manutenção de Segredo Profissional que vincula os Advogados, i.e., apreciando se tal junção e a sua correspondente descrição no articulado consubstanciam, ou não, violação deste especial dever.

                Assim apresentada, a situação subsume-se efetivamente no identificado dispositivo, sendo que a pronúncia importará, naturalmente, no prisma da validade da prova, em função do determinado no art. 92º, nº5[13] do EOA. O interesse no sentido da resposta à dita questão é, em primeira instância, do Tribunal, que, no exercício da sua função jurisdicional, resultante do art. 202º da CRP e art. 2º, nº2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário[14], decidirá da validade dos meio probatórios.

 

                B. O Segredo Profissional do Advogado

 

Emerge como imprescindível para a devida apreciação e, portanto, para a tomada da posição a emitir, não apenas a contextualização (fáctica) dos artigos 19º a 21º da Contestação, como ainda, o seu enquadramento, nos pontos que se intercetam no instituto do Segredo Profissional.

Neste conspecto e para melhor perceção do alcance da questão, deixam-se algumas notas a propósito dos assuntos que, respeitantes ao sigilo advocatício, sobressaem no presente processo judicial.

 

1. O dever de guardar segredo profissional

 

O segredo profissional inscreve-se “no património cultural da advocacia”[15], constituindo “um

dos pilares em que a advocacia firma a sua dignidade e independência. Mas é também condição da sua existência.”[16]

Este especial dever pressupõe – e exige – uma “relação de causalidade necessária”[17] entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos sigilosos, precisamente “em termos de causalidade adequada.”[18]

Ora, é no nº1 do art. 92º do EOA, que o legislador define o âmbito subjetivo da obrigação de sigilo: o próprio advogado que, no exercício das suas funções, toma conhecimento de (certos) factos. Dúvidas não restarão de que consubstancia uma obrigação daquele que exerce a profissão. Logo, será sempre dever que impende exclusivamente sobre Advogado.

O EOA e, no que aqui importa, esta sua norma, é aplicável linearmente, como se viu, a Advogados e Advogados-Estagiários[19] inscritos na Ordem dos Advogados, não vinculando – além dos que com estes colaboram – terceiros. 

                Para aferir se determinada matéria está, ou não, sujeita ao dever de segredo profissional, há que averiguar a natureza dos factos, verificando se os mesmos se enquadram em alguma das alíneas enunciativas daquela norma, ou se caem na cláusula geral estipulada pelo nº1.

                A amplitude aplicativa da norma resulta, desde logo, do emprego pelo legislador do vocábulo “designadamente”, que a transforma numa norma aberta, i.e., de caráter que, não sendo taxativo, é, antes, meramente indicativo. Como, aliás, foi explicado na Consulta 1/2009 do então Conselho Distrital de Lisboa[20], sufragando o entendimento do Bastonário Lopes Cardoso: “Sob a fórmula constante do [atual nº1 do art. 92º] do EOA, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. As demais regras previstas nas alíneas da mesma, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação. O sentido da letra de tal disposição, bem como a utilização do advérbio «designadamente», não deixam, a este propósito, grandes margens para dúvidas.” [21]

                Salienta-se que a expressão utilizada na formulação desse segmento normativo, no que respeita a “todos os factos” que o advogado é obrigado a guardar segredo no exercício da sua profissão, deverá ser interpretada cum grano salis, e não no seu estrito sentido literal, sob pena de se ultrapassar a ratio do comando legal, esvaziando de sentido o próprio sigilo[22]. Assim, como ensina Sousa Magalhães, “O conceito de «factos» para efeito do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais suscetíveis de alegação, como os próprios documentos”[23],[24].

               A exegese implica, pois, um trabalho de equilíbrio e razoabilidade, com início no reconhecimento de que factos há que são transmitidos ao advogado precisamente para que este os leve e transmita, os dê a conhecer a terceiros, sejam outras pessoas ou mesmo processos judiciais[25]. Tal como outros existem que não se encontram, sequer, abrangidos pela obrigação do segredo advocatício.

Impõe-se, pois, determinar ab initio o conteúdo do nomen iuris “segredo”. Ora, a Ordem dos Advogados tem já um considerável filão jurisprudencial[26] que, através do que é designado “triplo crivo”,  identifica o que é “segredo”, permitindo traçar o perímetro da norma estatutária. O sigilo dependerá, então:

  1. Da forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
  2. Do teor do próprio facto; e
  3. Das concretas circunstâncias do conhecimento e da revelação.

A natureza do problema demanda uma prévia análise casuística, levando a concluir, contudo, no que se acompanha de perto Rodrigo Santiago, que “estarão a coberto do segredo facto ou factos relativamente aos quais a pessoa com quem ele ou eles respeitem tenham um «interesse objetivamente fundado» em que se mantenham reservados.”[27]

              

2. A cessação do dever de guardar segredo profissional

 

A excecional possibilidade de desvinculação do segredo profissional encontra-se consagrada no nº4 do mencionado art. 92º do EOA, a interpretar rigorosamente no seu sentido literal. Na mesma linha, refletindo o nosso entendimento tradicional, o Regulamento de dispensa de sigilo[28] determina, no nº1 do art. 4º, que a autorização de cessação do segredo tem caráter excecional. Ou seja, e a contrario, a regra é a da manutenção do segredo advocatício, pelo indeferimento do levantamento da sua obrigação.

               Como não podia deixar de ser. Sendo este o mais importante e característico dever do Advogado, na verdade, “uma questão de honra e de dignidade profissional”[29], naturalmente que só poderá ceder em circunstâncias de exceção, verificados que sejam os estritos requisitos legais. Além de que o seu levantamento terá de ser apreciado, e decidido, dentro de precisos e rigorosos limites, escalpelizando a situação e os factos a desvelar, e realizando uma minuciosa subsunção legal. Sempre, atendendo aos superiores interesses a salvaguardar.

Tanto mais que “Uma banalização da desvinculação dos Advogados do dever de guardarem segredo profissional descaracterizaria e desvirtuaria a Advocacia perante a comunidade.”[30] Atente-se: A obrigação de segredo profissional, há muito estabelecida no interesse geral, é indissociável da imagem do Advogado. [31]  De tal modo que a violação deste especial dever extravasa o Homem e o profissional que o desrespeitou e, com tal atitude, atraiçoou quem confiou em si. Na verdade, “fere uma sociedade inteira, porque retira à profissão, uma das bases sobre que a sociedade se apoia, ou seja, a confiança que a deve cercar.”[32] Relembre-se que “O Advogado não é no ponto de vista deontológico uma pessoa vulgar. A sua atuação tem uma dignidade e estatuto incompatíveis com o procedimento de um mero averiguador. Não é preciso que o cliente lhe solicite confidencialidade, pois esta é automática.”[33] Aqui reside a natureza do segredo, desde logo se afastando a tese de que assenta na relação contratual.

                É absolutamente determinante que a consciência da amplitude do especial dever de guardar segredo profissional, i.e., a consciência da sua dimensão ético-profissional, social e mesmo cívica, e bem como das suas efetivas repercussões, esteja a tal ponto imprimida na pessoa do próprio Advogado, que se assuma, mais do que como uma regra, como um imperativo de conduta. Que integre e faça parte da essência do Advogado e, assim, da profissão que exerce e da forma como a exerce.         Como adianta Carlos Pinto de Abreu, “não perdendo, todavia, o horizonte mais vasto que a preservação da imagem pública do advogado implica, como face da mesma moeda que garante e justifica as prerrogativas no exercício da advocacia, nomeadamente o dever de sigilo profissional”[34]. Trata-se do dever-ser do advogado.

 

3. O Pedido de Dispensa de Sigilo Profissional e a consequência, ao nível da prova, da atuação advocatícia desprovida da necessária autorização

 

O levantamento do dever de sigilo que onera o Advogado pode ocorrer, além do caso especial de revelação por obrigação ex lege (branqueamento de capitais), por uma dúplice via – voluntariamente, mediante pedido de dispensa, ou através do incidente de quebra de sigilo.

Assim, o pedido efetuado por iniciativa do seu detentor – o único com legitimidade para tal – encontra-se subordinado a condição: a prévia autorização do/a Presidente do Conselho Regional, que averiguará as circunstâncias extraordinárias da absoluta necessidade da desvinculação, tendo exclusivamente como fim “a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes” (art. 92º, nº4 do EOA).

               Esta dispensa tem, forçosamente, de ser solicitada em momento prévio à revelação do segredo, a priori; sob pena de, após a divulgação da matéria sigilosa e independentemente do meio através do qual foi exposta, a formulação do pedido ser desprovida de qualquer sentido. Na verdade, nessa ocasião já não existe segredo, assistindo-se a uma verdadeira impossibilidade de autorização. Qualquer pedido de levantamento de sigilo efetuado posteriormente à exposição dos factos sigilosos determina que não possa, já, emitir-se decisão – seja de deferimento ou indeferimento. Tendo deixado de haver segredo a dispensar, a situação apresenta-se como um non liquet, implicando a comunicação ao Conselho de Deontologia, por violação do dever[35].

               Uma tal situação, analisada exclusivamente numa perspetiva processual, tem repercussões significativas, maxime em termos probatórios. A tal ponto que o legislador deixou expressa a correspondente cominação no próprio dispositivo. Com efeito, preceitua o nº5 do art. 92º do EOA que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, traduzindo-se numa efetiva proibição de valoração da prova. “O que significa que, quando se emprega o termo «prova» neste contexto, se pensa no resultado obtido através de um determinado meio de prova.”[36]A prova assim obtida é, pois, materialmente proibida, constituindo, consequentemente, prova ilícita[37]. Será, então, nula, com sujeição ao regime geral das nulidades processuais[38] sempre que “possa influir no exame ou decisão da causa” (art. 195º, nº1, in fine, do Código de Processo Civil).

               Rodrigo Santiago aborda o tema nas suas Considerações Acerca do Regime Estatutário do Segredo Profissional dos Advogados, adiantando que, “da perspetiva processual – seja ela civil, seja penal, seja estatutária, ou qualquer outra – o dever de guarda de segredo profissional corporiza aquilo que nesta sede a doutrina vem chamando de «regra de proibição de produção de prova»”, asseverando com acuidade que “Como quer que seja ou deva ser: o referido nº5 do artigo [atual 92º do EOA] constitui comando da maior importância pela respetiva aplicação a vastos âmbitos do processo civil e do penal, «heteronomamente determinada».”[39]

 

III. Pronúncia

 

Enquadrada a solicitação do Tribunal, quer pela determinação das atuações dos Senhores Advogados, quer pela cronologia, autoria e conteúdo dos documentos sobre que residem dúvidas e, traçada que foi, a perspetiva teórica dos aspetos relevantes, avança-se para a sua apreciação.

Ora, em causa começa por estar a eventual revelação, em peça processual (arts. 19º a 21º da Contestação), de factos alegadamente sigilosos, mediante a descrição/narração do teor de documento que foi junto como suporte (doc. 2 da mesma peça) – email enviado por um Avogado a outro.

Invocou o Representante dos AA., na audiência prévia realizada, que tal mensagem eletrónica integra troca de correspondência entre Advogados com vista a tentativa de negociação. Refere, inclusive, que “a transcrição da comunicação ao processo (…) resulta de contatos estabelecidos entre Advogados, contatos esses portadores de uma tentativa de negociação que se veio a malograr”, adiantando expressamente que tal situação se subsume na previsão do art. 92º, nº1, al. f) e nº3 do EOA. A saber: “1. O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: (…) f) A factos que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. (…) 3. O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

Pronunciando-se sobre tal requerimento ditado para a ata, defende o Senhor Advogado visado não ter violado, por qualquer forma, o dever de segredo profissional (art. 92º do EOA), recordando que embora seja acusado de junção de documento sigiloso, fê-lo na sequência da junção, na petição inicial (o doc. 7 da p.i.), da carta a que respondeu (a enviada pelo Senhor Dr. LM... à ora Ré). Este é, segundo se percebe, o seu principal argumento justificativo, ao que acrescenta que o email em causa “não trata de negociações malogradas” e que, efetivamente, “Não estamos mediante qualquer negociação entre mandatários tendentes à resolução de um conflito.”[40]

Salienta-se que este não é, nem poderia alguma vez vir a ser, o critério da junção de documentos, em particular tratando-se de documentação abrangida pelo sigilo profissional.

Em reforço da sua defesa lança ainda mão do art. 113º do EOA – que não foi, sequer, invocado pelo Colega que invoca a violação daquele dever –, para retirar que “o e-mail em causa não contém matéria sigilosa, nem está sujeito à confidencialidade prevista no ar. 113º do EOA”[41]. Isto, dado que não figura qualquer referência destacada quanto à confidencialidade do seu conteúdo, designadamente com referência concreta a este normativo. Por conseguinte, nada o impedia de juntar, como fez, a identificada mensagem, razão pela qual entende não estar em causa qualquer ilicitude.

Daqui se extraem, pois, os seguintes aspetos que carecem de esclarecimento e integração:

1.      Narração escrita e junção de documento alegadamente abrangido pelo segredo profissional;

2.      Troca de correspondência entre Advogado e contraparte desacompanhada de Advogado;

3.      Troca de correspondência entre Advogados e negociações malogradas;

4.      Articulação dos arts. 92º e 113º do EOA – segredo profissional e confidencialidade de correspondência entre Advogados.

Todas elas, note-se bem, têm apenas sentido, como é bom de ver, quando em causa está matéria sujeita ao segredo profissional advocatício.

 

1. Narração escrita e junção de documento alegadamente abrangido pelo segredo profissional

 

Existindo factos sigilosos incorporados em documentos escritos – o mesmo será dizer existindo documentos sujeitos a segredo profissional –, o Advogado sobre o qual recai o dever de o guardar segredo carece de autorização – prévia, como se disse – quer (i) para a sua revelação, mediante exposição, eventualmente até, por citação/transcrição dos seus factos em articulado; quer ainda (ii) para a junção do documento em si (físico/digital), onde foi aposta a matéria exposta (o texto). Em cumulação, portanto, e não alterna ou facultativamente.

Não obstante, assistem-se a pedidos de dispensa para a junção de documentos a processo judicial, já depois do seu conteúdo ter sido revelado, designadamente pela sua narração em peça processual. Patente é, pois, a impossibilidade de invocar em juízo factos abrangidos pelo sigilo profissional e só em momento posterior, para prova do alegado, solicitar a imprescindível autorização para junção documental.

                Escreve Lopes Cardoso, a propósito dos Modos de Revelação Proibidos e, em concreto, sobre a “Narração escritas dos factos”, que “Outro é o da simples narração ou articulação dos factos no processo, aquando do exercício do mandato. Ninguém poderá questionar que essa atitude, por si mesma, já constitui ofensa à obrigação de sigilo (…). É que esta invocação, por si mesma, já é revelação dos factos sujeitos a segredo, pelo que será absurdo pretender mais tarde, ou seja «a posteriori» solicitar apenas autorização para juntar documentos destinados, por exemplo, a provar os quesitos onde os factos sigilosos, porque antes articulados, já estão contidos.”[42]

                Cita-se igualmente a Jurisprudência dos Conselhos[43], que o tem entendido unanimemente: “E porque o regime legal instituído, acima de tudo, protege factos abrangidos pelo sigilo e vincula o Advogado, a mera e simples narração ou articulação dos mesmos, pela sua pena (ainda que em desempenho do mandato), com a indicação da intervenção de Advogados na questão, encontra-se-lhe vedada, salvo se tiver sido previamente dispensado para o efeito pelo Presidente do Conselho Distrital competente, conforme exige o [art. 92º, nº4] do EOA”.

                No caso, não foi apresentado qualquer pedido de dispensa.

 

2. Troca de correspondência entre Advogado e contraparte desacompanhada de Advogado

 

As cartas dirigidas a uma das partes desacompanhada de Advogado não exoneram o Advogado que as enviou do segredo profissional. E enquadram-se na previsão do art. 92º, nº1, al. e) do EOA, uma vez que em causa estão factos advindos ao seu conhecimento a partir “da parte contrária do cliente”. E se dúvidas não existem de que “o sigilo é exigível quando interveio apenas um Advogado, estando ao tempo a outra parte desacompanhada de patrono”[44], também é certo que, na situação em apreço, tal não se verifica.

               In casu, constata-se que na carta de resposta dirigida pelo Exmo Senhor Dr. LM... à ora Ré, em representação da A. mulher, apenas é feita a transmissão da posição daquela, que sai vincada, sendo fornecidas meras informações adicionais ou complementares (v.g. os danos sofridos).

Sublinha-se que responde em nome da sua cliente, que o incumbiu precisamente para esse efeito, como faz questão de mencionar. De onde resulta com precípua linearidade que contém matéria que aquela não quis que ficasse confinada ao conhecimento do seu Advogado mas, antes, que pretendia que por ele fosse levada ao conhecimento de quem lhe tinha escrito (a Ré). Como se depreende, até, pelas 2 questões colocadas, relativamente às quais aguardava esclarecimentos para firmar a visão da sua cliente sobre o assunto. Estamos, assim, perante “Factos revelados por ordem do cliente.”[45]

            Esclarece a propósito Orlando Guedes da Costa que “A correspondência dirigida pelo Advogado, em representação do seu cliente, à contraparte ou ao Advogado desta, como seu representante, para a produção de determinado efeito jurídico, como a interpelação (…) não estão, porém, abrangidas pelo segredo profissional e terão valor probatório”[46]. Pelo que mais uma questão suscitada fica esclarecida.

 

3. Troca de correspondência entre Advogados e negociações malogradas

 

A abordagem deste particular aspeto do dever de manutenção do segredo advocatício torna-se facilmente percetível tendo por assente, no seguimento da doutrina e jurisprudência da Ordem e dos nossos Tribunais, que “Não consta nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor, uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada entre Advogados ou subscrita por Advogado. Existe, sim, essa proibição quando, do seu teor decorram factos sujeitos a sigilo profissional. Isso mesmo prescreve o n.º 3 do artigo [92º] do Estatuto – «O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo»”[47].

O facto de uma carta ter sido subscrita, ou recebida, por Advogado, ou de um email ter sido assinado e enviado, ou recebido, por Advogado, só por si, e automaticamente, não determinam que estejam submetidos ao regime do sigilo profissional. Tal só acontecerá se o seu conteúdo, os factos que relatam, forem, eles próprios, sigilosos. A contrario, e apenas neste conspecto, dir-se-á que não integrando conteúdo ou proposta negocial, não estão a coberto do segredo profissional.

Da simples leitura das 2 missivas em causa – carta remetida por Advogado à contraparte (em resposta a carta anterior) e email através do qual o Mandatário da contraparte, dirigindo-se ao seu Colega (o autor da carta, em representação da cliente), respondeu em nome da constituinte – sobressai à evidência que em causa não estão negociações.

Não só esta correspondência não foi trocada entre os mesmos intervenientes, como não resulta de qualquer um dos textos qualquer caráter negocial. No entanto, ainda que tal coincidência se verificasse, nunca estaria em causa negociação entre Advogados, até porque a primeira carta foi dirigida por Advogado diretamente à contraparte – que se encontrava, como se tem vindo a deixar dito, desacompanhada de Mandatário – ao passo que o email de reação foi dirigido diretamente por um Colega (“novo no processo”) ao Advogado signatário da carta anterior.

Com efeito, e contrariamente ao que resulta do requerimento em que a questão foi suscitada, nenhuma das missivas integra conteúdo negocial, nem como mera proposta, nem como reação a qualquer uma que tivesse sido feita.

Nesta assimetria de intervenientes, onde não estiveram em simultâneo, em fase prévia, os Advogados de ambas as partes, munidos da precisa intenção de composição de litígio, ou até de apenas envidar esforços para o evitar, ressalta que aquelas 2 mensagens não foram trocadas entre Mandatários na intimidade, liberdade e abertura intencionais, e propícias, à resolução de um diferendo (nem dirigidas aos seus respetivos constituintes). Apresentam-se, sim, com conteúdos meramente declaratórios, de certa forma até interpelatórios, conforme se mencionou, bem se percebendo que cada um defende e frisa com certa inflexibilidade a posição dos seus clientes, não manifestando qualquer abertura a cedências ou posições diferentes ou alternativas. Não consubstanciam, portanto, uma negociação, por não assumirem, pelas suas características, tal natureza. E muito menos malogradas, como melhor se verá.

Do ponto de vista teórico, circunscrevemo-nos agora ao campo das negociações conduzidas por Advogados e à sua particular proteção e, em especial, às negociações malogradas – como deixa expresso o Senhor Dr. LM... no requerimento que fez constar da ata da audiência prévia – relativamente às quais tem a jurisprudência da nossa Ordem estabelecido uma tripla justificação de reserva, uma vez que visa:

1. Garantir a independência do advogado;

2. Proteger os interesses legítimos e expectativas do seu cliente; e ainda

3. Proteger os interesses legítimos da parte contrária, e bem assim do seu Mandatário.

Sublinhe-se que “nas negociações transacionais malogradas, a obrigação de segredo tem especial relevo porque as partes estiveram dispostas a fazer cedências, a abdicar do que julgam ser o seu direito, na convicção de que «mais vale um mau acordo do que uma boa demanda» ou (…) «mais vale um pássaro na mão que dois a voar», e seria muito perturbador para  a justiça, influenciando psicologicamente a apreciação da prova, dar a conhecer o que ocorreu nas negociações que se malograram, de nada adiantando para o desfecho do processo saber o que alguém, em negociação transacional malograda, estava disposto a aceitar.”[48]                  

                A ininvocabilidade das negociações e dos seus precisos termos deriva igualmente da obrigação de respeito pelos deveres recíprocos entre advogados, prima facie pelo dever de lealdade (art. 108º do EOA), mais do que, estamos em crer, do dever de solidariedade entre Colegas (art. 111º do EOA), como tem vindo a defender-se. Contudo, não é a violação de tais deveres que implica, como consequência imediata, a violação do dever de sigilo profissional. Sucede apenas que a divulgação de factos conhecidos durante negociações para acordo amigável é mais grave quando envolve outro Colega[49]. Entramos já, portanto, no domínio das relações entre Colegas, sendo certo que se têm por malogradas aquelas que, “por natureza, pressupõem uma «composição» com cedência recíproca de direitos no sentido de encontrar solução à margem do que cada uma entende ser a sua máxima força.”[50]

Retomando o caso concerto, realça-se, repetindo, que a carta do Mandatário dos AA. foi dirigida diretamente à – posteriormente – Ré, e não contém quaisquer indícios de pretender desenvolver negociação com aquela, ou de que um processo negocial estaria já em curso. Por outro lado, e no que tange em concreto ao email junto como doc. 2 da contestação, nele apenas se reproduzem as cláusulas da transação judicial efetuada e ainda artigos do contrato-promessa original, esclarecendo o seu teor de acordo com a leitura feita pela Ré, com a posição clara e assertiva do que é o entendimento da Ré, e do que pretende levar adiante. Como se viu, os factos expostos pelos Senhores Advogados nas suas missivas traduzem as posições assumidas pelos seus constituintes, assentando em elementos fornecidos por estes com o intuito real e concreto – com efetiva vontade – de serem levados ao conhecimento da parte contrária. Para que lhes fossem transmitidos nos moldes e condições indicadas.

A norma estatutária aqui em causa, dentro dos seus objetivos, não abrange as comunicações enviadas entre as partes, por intermédio dos seus mandatários, que tenham um carácter declarativo/informativo, que se traduzam numa mera resposta a uma interpelação lacto sensu, isto é, em ambos os casos, destinadas, apenas e somente, a fazer marcar a perspetiva pessoal do caso, a manifestação de vontade e os fundamentos, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário.

De modo que, também por esta via não se verifica qualquer dever de segredo.

 

4. Articulação dos arts. 92º e 113º do EOA – segredo profissional e confidencialidade de correspondência entre Advogados

 

Assume pertinência o esclarecimento de um aspeto prático determinante da proteção da confidencialidade das comunicações dos Advogados, consignada no art. 113º do EOA, e a sua confluência com a previsão legal do art. 92º do mesmo diploma, que postula o Segredo Profissional. Perpassa daquele primeiro dispositivo a condição de, para obtenção do resultado de “absoluta confidencialidade”, o Advogado “exprimir claramente tal intenção”. É clara a ratio da norma, devendo o nº1 desta previsão legal ser interpretado de acordo com a força e gravidade que imprime. Assim, dúvidas não restarão que uma frase com menções genéricas, que se relega para o final de um email, figurando na zona da assinatura do remetente, e abaixo da mesma, por regra utilizando letras mais pequenas que as do corpo do email, ou intercalada (e “sumida”) entre a imagem de um logotipo, surgindo – e seguindo – de forma sistemática e indiscriminada em todos os emails enviados pelo remetente, ainda que com a indicação do artigo 113º, não integra a previsão legal. E, por conseguinte, não assegura o caráter absolutamente confidencial da correspondência – no caso, eletrónica.

Além de que as características destas comunicações não permitem, de per si, adivinhar ou fazer supor que, incluídas com tão pouco destaque e seguindo, conforme referido, sistematicamente em todos os emails, traduzem uma efetiva vontade do seu autor. Na verdade, uma tal utilização (indiscriminada) banaliza a própria mensagem, retirando-lhe o significado. Entendimento este que é, atualmente, consensual[51]. Para que se considere que o Advogado “exprimiu claramente” (nos termos da lei) que uma comunicação está protegida, tal referência há-de ser incluída por este no próprio texto, constante do corpo do email.

Porém, o facto de uma qualquer missiva enviada/recebida por Advogado conter tal referência apenas torna absolutamente impossível a apreciação de eventual pedido de dispensa de segredo profissional. Não isenta – antes fortificando – o dever de guarda de segredo profissional. Não poderá nunca, pois, ter-se que só é sigilosa (não se menciona absolutamente sigilosa) e, portanto, subordinada ao regime do art. 92º do EOA, a correspondência trocada com a menção expressa e destacada do art. 113º do EOA.

 

IV. DECISÃO

 

Com fundamento em todo o exposto, entende responder-se à questão do Tribunal Requerente nos seguintes termos:

A junção, pelo Exmo Senhor Dr. LS..., do email de 03.08.2022 à Contestação, como o seu documento nº 2, não violou o segredo profissional advocatício previsto no art. 92º do EOA, o mesmo sucedendo com a referência ao correspondente teor em tal peça processual, maxime nos arts, 19º, 20º e 21º. E isto porque a mensagem eletrónica em causa não contém matéria sigilosa, não integrando, de modo algum, negociações para acordo e muito menos negociações malogradas.

 

V. CONCLUSÕES

 

1.       A junção de documentos sujeitos a sigilo, assim como a sua narração escrita, designadamente em peças processuais, exige autorização prévia, a conceder pela/o Presidente do Conselho Regional respetivo no âmbito de Processo de Dispensa de Segredo Profissional;

2.       A correspondência entre Advogado e contraparte desacompanhada de Advogado está sujeita a sigilo, salvaguardando-se as situações em que o próprio constituinte manifestamente pretendeu que determinada matéria não ficasse confinada ao conhecimento do seu Mandatário mas, antes, fosse por este transmitida a terceiros;

3.       A correspondência trocada entre Advogados não se encontra, automaticamente, submetida ao regime do segredo profissional, a não ser quando o seu teor é sigiloso;

4.       A contrario, e apenas neste conspecto, não estão a coberto do segredo profissional as missivas que não revistam natureza negocial;

5.       A confidencialidade da correspondência trocada entre Advogados, prevista no art. 113º do EOA, apenas torna absolutamente impossível a apreciação de eventual pedido de dispensa de segredo profissional, não isentando o dever de guarda de segredo profissional;

6.       Não poderá nunca entender-se que só é sigilosa e, portanto, subordinada ao regime do art. 92º do EOA, a correspondência trocada com menção expressa e destacada do art. 113º do EOA;

7.       A genérica narração escrita do teor de um email remetido pelo Advogado Mandatário da Ré ao Mandatário dos AA., por via do qual afirma a posição da sua cliente quanto à questão em discussão, bem como a sua junção com a Contestação apresentada nos autos não viola o segredo profissional advocatício previsto no artigo 92° do EOA, uma vez que a mensagem em causa não contém matéria sigilosa, não integra negociações para acordo, e muito menos negociações malogradas.

 

À próxima sessão.

 



[1] Conselho Regional desde 09.10.2015 (Lei 145/2015).

[2] Cfr. Ata de Audiência Prévia de 15.11.2023, “Objeto do litígio”.

[3] Cfr. art. 7º da Contestação.

[4] Cfr. art. 10º da Contestação.

[5] Cfr. Ata de Audiência Prévia de 15.11.2023, “Objeto do litígio”.

[6] Cfr. art. 12º da Contestação.

[7] Cfr. art. 13º da Contestação.

[8] Os destaques são da nossa autoria.

[9]  “1- Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção. 2- As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92.º. 3- O advogado ou solicitador destinatário da comunicação confidencial que não tenha condições para garantir a confidencialidade da mesma deve devolvê-la ao remetente sem revelar a terceiros o respetivo conteúdo.”

[10]  Cfr. art. 20º do requerimento de 21.11.2023.

[11] Cfr. art. 7º do Requerimento de resposta, de 21.11.2023.

[12] Neste sentido, a Consulta nº31/2007, Relatada por Sandra Barroso; e o Parecer 20/2015, Relatado por Rui Souto, ambos do ora Conselho Regional de Lisboa.

[13] “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”

[14]  Lei 40-A/2016, de 22 de Dezembro.

[15]  Fernando Fragoso Marques, ROA, Ano 59, Ano vol. I, pg. 379.

[16]  Idem.

[17]  Fernando Sousa Magalhães, EOA Anotado e Comentado, Almedina, 2015, 10ª ed., pg. 138 (nota 6).

[18]  Orlando Guedes da Costa, Direito Profissional do Advogado - Noções Elementares, Almedina, 8ª Edição Revista e Atualizada, pg. 389.

[19]  E a todos os que com estes colaboram.

[20]   Relatada por Rui Souto.

[21]  Do Segredo Profissional na Advocacia, CELOA, 1997, págs. 31 e 32.

[22]  Parecer nº49/PP/2011, e O Dever de Guardar Sigilo Profissional – Uma Aproximação Prática, Comunicação do VI Congresso dos Advogados Portugueses, Rui Souto.

[23]  Op. cit., pg. 138, nota 11.

[24]  O sublinhado é da nossa autoria.

[25]  Neste sentido, o Parecer nº 133/05, do Presidente do Conselho Distrital de Lisboa.

[26]  Do Conselho Regional de Lisboa.

[27]  ROA, 57, Vol I, pg. 237.

[28] Regulamento 94/2006, de 12 de junho, aprovado em sessão de 25.05.2006.

[29] Amílcar de Melo, Da Advocacia, ed. Almeida & Leitão, Lda., 2013, pg. 164.

[30] Parecer nº 44/PP/2009-G, do Conselho Geral, de 10.02.2010, Relatado por Ana Costa de Almeida.

[31] Maria Clara Lopes, Segredo Profissional, BOA nº10, pg. 13.

[32] Idem. Os destaques são da autoria de Maria Clara Lopes.

[33] Lopes Cardoso, Op. cit., pg. 57.

[34] Carlos Pinto de Abreu, Consulta nº29/2009, Pareceres do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Triénio 2008-2010, Volume I, pg. 363, publicado pelo CDL.

[35] A violação do dever de sigilo é geradora de responsabilidade disciplinar, além de responsabilidade penal e civil do Advogado.

[36]  Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pg. 55.

[37] V.g., por todos, o Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.06.2012, Relatado por Henrique Antunes.

[38] José Lebre de Freitas, et al., Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. II, pg. 536.

[39] Op. cit., pg. 233.

[40] Arts. 16º e 17º do requerimento de resposta.

[41] Art. 20º do requerimento de resposta.

[42] Op cit, pg 38.

[43]   Cita-se, por todos, a Consulta nº1/2009 do Conselho Distrital de Lisboa, Relatada por Rui Souto.

[44]   Lopes Cardoso, op. cit,, pg. 42.

[45]   Idem, pg. 33.

[46]  Op. cit., pg. 320.

[47] Consulta 10/2015 do Conselho Regional de Lisboa, Relatada por Sandra Barroso.

[48] Orlando Guedes da Costa, op. cit., pgs. 393 e 394.

[49] Parecer do Conselho Geral, ROA 44, Vol. III, pg. 738, relatado por Luís Sáragga Leal.

[50] Despacho do Bastonário (Lopes Cardoso) de 18.11.1989, ROA. 49, vol. III., pg. 1083.

[51] Cita-se, por todos, o Parecer nº 6/PP/21-P do Conselho Regional do Porto, relatado por Joana Magina.

 

Marta Ávila

Topo