Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 9/PP/2024-C

Processo de Parecer n.º 09/PP/2024-C

 

Assunto: Incompatibilidade no exercício da advocacia em simultâneo com exercício de funções ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas

 

Por mensagem de correio eletrónico datada de 21 de março de 2024, endereçada ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados, solicitou a Ilustre Advogada CIFJ..., titular da cédula profissional nº 4…C, com domicílio profissional na Rua Afonso ..., a emissão de parecer, o que fez nos seguintes termos que ipsis litteris se transcrevem:

"Exmos. Senhores,

Apresentando a V.Exas. os meus cordiais cumprimentos, venho pelo presente informar que concorri a um concurso público e em princípio vou iniciar funções como licenciada em Direito no Julgado de Paz no Bombarral, em regime de contrato de trabalho por tempo indeterminado.

Após análise ao Estatuto da ordem dos advogados e na minha modesta opinião, a função que vou exercer não impede nem afeta a minha isenção, independência e dignidade da profissão, uma vez que exerço na Comarca de Alcobaça e vou trabalhar na cidade do Bombarral.

Desta forma solicito o vosso parecer, bem como se será o vosso Conselho Geral ou o de Coimbra a responder à minha questão.

(...)"

Nos termos previstos no nº 6 do artigo 83º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 6/2024, de 19 de janeiro (doravante designado abreviadamente por EOA por uma questão de facilidade de exposição), o Conselho Geral da Ordem dos Advogados, remeteu de imediato o presente expediente ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados.

Em 26 de março de 2024 o pedido foi autuado pelos serviços como processo de parecer a que foi atribuído o nº 09/PP/2024-C.

Seguindo o procedimento habitual o pedido em apreciação foi presente à Sessão do Conselho Regional de Coimbra imediatamente seguinte, in casu, realizada em 5 de abril de 2024, para análise prévia e distribuição à aqui Relatora.

Em 15 de abril de 2024 foi proferido despacho a solicitar à Ilustre Advogada requerente, a junção ao presente processo de parecer de minuta ou cópia do contrato de trabalho por tempo indeterminado a celebrar com o Município do Bombarral, cujo clausulado releva de modo decisivo para a pronúncia a emitir.

No dia 16 de abril de 2024 a requerente, em cumprimento do despacho proferido, remeteu cópia do contrato intitulado “Contrato de Trabalho em Funções Públicas por Tempo Indeterminado”, celebrado em 25 de março de 2024, entre o Município do Bombarral na qualidade de primeiro outorgante ou entidade empregadora e CIFJ..., na qualidade de segunda outorgante ou trabalhadora.

Encontrando-se este Conselho Regional da Ordem dos Advogados munido de todos os elementos relevantes e sendo inequívoco que a situação exposta se reconduz à apreciação da problemática das incompatibilidades para o exercício da advocacia, impõe-se aferir da competência deste órgão para emissão do parecer.

Não sem antes consignar que este órgão cumpre com rigor os procedimentos instituídos no tratamento de todas as questões que lhe são colocadas. Com efeito no que tange aos pedidos de parecer, rege, como não podia deixar de ser, o critério da data da entrada do pedido, sendo que, apenas em casos muito excecionais de manifesta urgência[1] os pedidos anteriores sucumbem perante pedidos ulteriores.

 

Da Competência do Conselho Regional de Coimbra

Ao abrigo do disposto o artigo 54º, nº 1, alínea f) do EOA o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados é materialmente competente para emissão de pareceres em abstrato sobre questões concretas de caráter profissional que se insiram na respetiva esfera territorial.

São questões de caráter profissional, todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.

Não obstante a abrangência das competências consultivas do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, impõe-se a respetiva compatibilização com as competências especificas que legalmente são atribuídas a outros órgãos, como sejam as competências de natureza disciplinar e de controlo do cumprimento das normas de deontologia profissional, estatutariamente acometidas aos Conselhos de Deontologia, a quem incumbe, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 58º do EOA “Velar pelo cumprimento, por parte dos advogados e advogados estagiários com domicilio profissional na área da respetiva região, das normas de deontologia profissional, podendo, independentemente de queixa e por sua própria iniciativa, quando o julgarem justificado, conduzir inquéritos e convocar para declarações os referidos advogados, com o fim de aquilatar do cumprimento das referidas normas e promover a ação disciplinar, se for o caso;”

É apanágio deste Conselho Regional de Coimbra pronunciar-se sobre todas as questões de caráter profissional submetidas à respetiva cognição, salvaguardando que tal apreciação não colida ou represente qualquer ingerência nas competências próprias acometidas a outros órgãos, sendo que, para eventuais apreciações disciplinares propõe-se a remessa do expediente ao Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados.

Aqui chegados, emite-se o parecer solicitado.

 

Das incompatibilidades para o exercício da advocacia

A questão colocada pela Advogada versa sobre a eventual incompatibilidade no exercício da advocacia em simultâneo com o exercício de funções ao abrigo de contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado, in casu, com o Município do Bombarral.

Entende a Ilustre Advogada consulente que no caso vertente inexistirá qualquer incompatibilidade pois exerce a sua atividade enquanto advogada na Comarca de Alcobaça e desempenhará as respetivas funções ínsitas no contrato de trabalho em funções públicas já celebrado e em execução, no Julgado de Paz do Bombarral.

Como nota prévia, impõe-se, esclarecer que, como é consabido, o exercício da advocacia não tem qualquer delimitação territorial, sendo que, os Advogados devidamente habilitados para o efeito, podem exercitar a sua atividade em todo o território nacional e em países estrangeiros que reconheçam os títulos de qualificação profissional, sucumbindo, desde logo, um tal argumento subjacente ao exercício da profissão na Comarca de instalação do domicílio profissional.

 Posto isto, passemos à análise do quadro fático, à luz das normas vigentes em matéria de incompatibilidades.

Estatutariamente a matéria dos impedimentos e incompatibilidades para o exercício da advocacia encontra-se regulada nos artigos 81º e seguintes do EOA.

As regras referentes às incompatibilidades e impedimentos visam, genericamente, a salvaguarda da isenção, independência e dignidade da profissão e encontram previsão legal nos artigos 81º e seguintes do EOA.

 Sob a epígrafe “Princípios Gerais”, dispõe o nº 1 do artigo 81º que “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com a plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável”, prescrevendo o nº 2 do mesmo preceito legal que “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

Da norma citada resulta uma cláusula geral que visa prosseguir a dupla finalidade de defesa não só da relação do Advogado com o seu cliente (na dimensão da isenção e independência), mas também da imagem da profissão na sociedade (dignidade).

Neste conspecto conclui-se que existirá incompatibilidade sempre que a atividade, cargo ou função que o Advogado se proponha exercer afete, ou seja suscetível de afetar, a sua isenção e independência e a dignidade da profissão, ou de algum modo contenda com a autonomia técnica, isenção e independência que se exige ao Advogado no exercício da sua profissão de eminente interesse público.

A este propósito e sintetizando, citamos Orlando Guedes da Costa, sendo que, como bem refere o autor “A independência do Advogado traduz-se em plena liberdade perante o poder, a opinião pública, os tribunais e terceiros, não devendo o Advogado depender, em momento algum, de qualquer entidade. A dignidade do advogado tem que ver com a sua conduta no exercício da profissão e no seu comportamento público, com a probidade e com a honra e consideração pública que o Advogado deve merecer.”[2]

O artigo 82º, nº 1 do EOA, elenca a título meramente exemplificativo, por decorrência da utilização do advérbio “designadamente”, alguns cargos, funções e atividades que se consideram incompatíveis com o exercício da advocacia, concluindo-se, assim que, no que respeita ao elenco ali consignado, dúvidas não restam quanto à incompatibilidade com o exercício da advocacia.

Dispõe a alínea i) do nº 1 do artigo 82º do EOA que são, designadamente, incompatíveis com o exercício da advocacia, a categoria de “Trabalhador com vínculo de emprego público ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local;

Não se suscitando quaisquer dúvidas quanto à natureza pública da entidade contratante – Município do Bombarral – e sendo inequívoco que a atividade profissional será desempenhada ao serviço de tal Município, cremos que, sem necessidade de profundos considerandos, é inequívoco que o exercício da advocacia é incompatível com o contrato de trabalho em funções públicas celebrado pela advogada consulente.

 Ora, o artigo 82º, nº 1, alínea i) prevê, desde logo, esta incompatibilidade, por se considerar de difícil compatibilização o respeito dos deveres a que estão adstritos os funcionários públicos, designadamente, os deveres de obediência, isenção, imparcialidade e prossecução do interesse público[3], com os deveres impostos pelo Estatuto da Ordem dos Advogados, com especial enfoque para os deveres de independência e autonomia técnica.

Além do mais, a própria Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas consigna no seu artigo 20º que “As funções públicas são, em regra, exercidas em regime de exclusividade.”, apenas sendo admissível a cumulação das funções públicas com outras funções concretamente identificadas nos artigos seguintes, mediante autorização prévia para o efeito.

Porém, o nº3 do artigo 82º do EOA, prevê uma exceção à verificação da sobredita incompatibilidade, consignando que “É permitido o exercício da Advocacia às pessoas indicadas nas alíneas i) e j) do nº 1, quando esta seja prestada em regime de subordinação e em exclusividade, ao serviço de quaisquer das entidades previstas nas referidas alíneas, sem prejuízo do disposto no artigo 86º”

Para determinar se o caso em análise se subsume à citada norma de exceção, impõe-se a análise cuidada do clausulado do contrato de trabalho em funções públicas outorgado pela Advogada requerente em 25 de março de 2024.

Assim, quanto à “atividade contratada”, dispõe a cláusula segunda, nos seguintes termos:

“1 – À Segunda Outorgante é atribuída a categoria de Técnico Superior, da carreira de Técnico Superior, sendo contratada para, sob autoridade e direção do Primeiro Outorgante, e sem prejuízo da autonomia técnica inerente à atividade contratada, desempenhar as respetivas funções, cujo conteúdo funcional se encontra descrito no Anexo a que se refere o nº 2 do artigo 88º da LTFP.

2 – A Trabalhadora fica também obrigada a exercer as funções e a executar as tarefas descritas no Mapa de Pessoal da Entidade Empregadora Pública, que carateriza o posto de trabalho que vai ocupar.

3 – A atividade contratada não prejudica o exercício de funções que sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais a Trabalhadora detenha qualificação profissional adequada e não impliquem desvalorização profissional, nos termos do artigo 81º da LTFP.”

O conteúdo funcional descrito no Anexo a que alude o artigo 88º da LTFP consigna o seguinte: “Funções consultivas, de estudo, planeamento, programação, avaliação e aplicação de métodos e processos de natureza técnica e ou científica, que fundamentam e preparam a decisão. Elaboração, autonomamente ou em grupo, de pareceres e projetos, com diversos graus de complexidade, e execução de outras atividades de apoio geral ou especializado nas áreas de atuação comuns, instrumentais e operativas dos órgãos e serviços. Funções exercidas com responsabilidade e autonomia técnica, ainda que com enquadramento superior qualificado. Representação do órgão ou serviço em assuntos da sua especialidade, tomando opções de índole técnica, enquadradas por diretivas ou orientações superiores.”

Da concatenação do clausulado inserto no contrato com a previsão contida no artigo 88º LTFP, resulta inequivocamente que a Advogada consulente não foi contratada para exercício da advocacia em regime de exclusividade e subordinação para a entidade pública contratante, pelo que, dúvidas não restam, de que a situação em análise não se subsume à exceção prevista no nº 3 do artigo 82º do EOA.

  Neste conspecto, conclui-se que o enquadramento jurídico concretamente aplicado à função para a qual a Advogada requerente foi provida é quanto basta para que daí resulte aa incompatibilidade para o exercício da advocacia previsto na alínea i) do nº 2 do artigo 82º do EOA.

Como já se disse, o regime das incompatibilidades estabelecido pelo EOA visa proteger a isenção, independência e dignidade do exercício da advocacia, prevenindo a ocorrência de situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses ou angariação de clientela pelo próprio ou interposta pessoa.

A este propósito refere-se no Parecer nº 47/2008 do Conselho Regional de Lisboa, Relatado pelo Ilustre Colega Jaime Medeiros “esta incompatibilidade é fixada no EOA por se entender que a duplicidade de actividades é susceptível de geral uma promiscuidade contaminadora da independência e dignidade da profissão”.

Em suma, perante os elementos descritos pela Requerente, no cotejo com os elementos juntos e em face das disposições estatutárias aplicáveis dúvidas não restam de que por decorrência expressa e inequívoca do estatuído no artigo 82º, nº 1, alínea i) do EOA, não pode a mesma cumular o exercício da advocacia com o exercício de quaisquer funções ao abrigo do contrato de trabalho em funções públicas celebrado.

 

Em conclusão,

 

a)      O elenco das funções que por natureza são incompatíveis com a advocacia encontra-se plasmado a título exemplificativo no artigo 82º, nº 1 do EOA;

b)      À luz do disposto no nº 2 do artigo 82º do EOA, toda e qualquer atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão é incompatível com o exercício da profissão;

c)      Por decorrência expressa e consequente consagração estatutária o exercício da advocacia em simultâneo com o exercício da atividade visada no contrato de trabalho em funções públicas celebrado com o Município do Bombarral. (artigo 82, nº 1, alínea i) do EOA) são incompatíveis.

 

Considerando que a Advogada requerente celebrou o contrato de trabalho em causa em 25 de março de 2024,  e a respetiva execução se iniciou em 1 de abril de 2024 – sendo que o pedido formulado pela mesma em 21 de março (um dia útil antes da mencionada data de outorga) não poderia - em circunstância alguma e tal como não poderia deixar de ter sido previsto pela Senhora Advogada requerente - face à exigência de observância das regras aplicáveis à emissão de pareceres, ser apreciado até ao momento de celebração do mesmo, propõe-se a remessa do presente expediente ao Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados, para os fins tidos por convenientes.

 


[1] Por exemplo os pedidos apresentados pelo Tribunal com referência a processos, não raras vezes de natureza urgente ou com caráter premente, em que simultaneamente é determinada a suspensão da instância;

[2] Cit. “Direito Profissional do Advogado”, pág. 153, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

[3] Artigo 73º da Lei nº 35/2014 de 20 de junho, que aprovou em anexo a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;

 

Sandra Gil Saraiva

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