PARECER Nº 13/PP/2024-C
Processo de Parecer n.º 13/PP/2024-C
Requerente: Dra. POM...
Assunto: Conflito de Interesses
Por requerimento, remetido por via de correio electrónico, em 19 de Abril de 2024, dirigida à Senhora Presidente do Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Ilustre Colega Dra. POM..., ali devidamente identificada, solicitou a emissão de parecer relativo a eventual conflito de interesses, o qual se transcreve infra:
“Exma. Sra. Presidente do Conselho de Deontologia,
Os meus cumprimentos.
Agradeço que Vª. Exª. me esclareça quanto à seguinte situação, de forma a que fique claro que se há ou não uma situação de violação do Art.º 99º do E.O.A.:
- Há algum tempo, fui contactada por uma senhora, que me chegou por intermédio de uma cliente minha de há vários anos, tendo-me consultado por força duma questão de Direito da Família;
- Na sequência da nossa primeira conversa, a mesma pessoa abordou o nome de um outro Colega, tendo eu questionado se ela já o tinha consultado a propósito da mesma questão;
- A essa minha questão, ela respondeu que esse Colega vinha sendo, até aquele momento, Advogado do casal, inclusivamente tinha-o constituído seu mandatário numa situação de Direito de Trabalho e, logo que os problemas entre o casal começaram, ambos conversaram com ele, até porque a sogra da dita senhora é, inclusivamente, empregada doméstica desse Colega.
- Perante a informação, eu remeti um email ao Colega, informando-o do seguinte:
“Uma vez que o nome do Exmo. Colega foi por ela abordado, transmiti-lhe que, por razões deontológicas, eu teria que contactar o Exmo. Colega previamente e só depois e com a sua concordância, eu poderia assumir a sua defesa.
A verdade, é que ela me informou que o Exmo. Colega também já a tinha defendido a ela e ao Sr. Hugo noutros assuntos e, por isso, fiquei com dúvidas relativamente à incompatibilidade de interesses neste caso em particular.
Mas, naturalmente, esse assunto, apenas ao Exmo. Colega compete avaliar e decidir.
No que diz respeito à possibilidade de eu me constituir Mandatária da ……, pergunto se o Exmo. Colega vê nisso algum impedimento ou impossibilidade, uma vez que já foi contactado antecipadamente a propósito do assunto acima mencionado?
Agradeço que o Colega me transmita a sua posição relativamente a esta questão, em resposta ao presente.
Por outro lado, e porque nada sei a propósito das situações anteriores (nem tenho que saber, na verdade!), questiono se o Exmo. Colega se manterá como Advogado do Sr. …., atenta as minhas dúvidas a propósito do conflito de interesses?”
- Em resposta, o Colega remeteu um outro e-mail, no qual escreveu o seguinte:
“Sobre as questões enunciadas na comunicação da Ilustre Colega, convirá cada um dos visados ser patrocinado por Colegas diferentes, já que, à sensibilidade que pude extrair da conferência telefónica com um e com outro, parece haver divergências e não as convergências necessárias a um patrocínio único.” (sublinhado meu)
- No email de resposta acima mencionado, o Exmo. Colega não me respondeu se iria manter-se como Advogado do marido da senhora que me procurou - que é agora, minha Constituinte - e nunca mais houve qualquer outro contacto entre nós os dois.
- No dia de ontem, recebi um novo e-mail em que o Colega assume a defesa do marido da m/ Constituinte relativamente às questões de facto em discussão no caso concreto, e, em resposta, eu voltei a trazer à discussão a situação de haver conflito de interesses – Art.º 99º E.O.A. – no caso concreto, uma vez que, inicialmente, o Colega conferenciou com ambas as partes, pelo que referi que, para dissipar todas as dúvidas, eu iria requerer um Parecer à O.A. a este propósito.
- A essa minha insistência, o Colega escreveu o seguinte num novo email de resposta:
“A Ilustre Colega persiste com a pretensa questão de conflito de interesses. Tanto quanto me permito alcançar do texto da norma invocada e do seu espírito, não laboro em qualquer conflito, dado que a questão que aconselhei no ano de 2020 para a sua constituinte não é um assunto conexo com este que ora nos ocupa. Na verdade, quem pediu a minha intervenção foi uma pessoa de muita estima, a mãe do …. Quanto a este recente assunto, se é verdade que nos inícios sugeri ao …. para organizar uma reunião a três, não é menos verdade que a sua constituinte a declinou, tomando esta a liberdade de estabelecer uma breve chamada telefónica, na qual apenas se focou no queixume da sua condição, mas sem aportar qualquer facto/proposta/estratégia para a dirimir. Entretanto surge a Ilustre Colega a interceder por esta.
Não vislumbro que tal circunstancialismo tolde a objectividade para tratar o assunto premente, que lese qualquer sigilo confidenciado, e que o patrocínio cause desconforto aos visados. (…)
Destarte, sou do humilde entender que não existe o conflito de interesses que invoca, mas, na dúvida e receios que a Ilustre Colega levantou, aguarde-se então pelo parecer da Ordem dos Advogados que será prontamente acatado.”
- A minha questão é precisamente se é de considerar que houve (ou não) violação do Art.º 99 do E.O.A. no caso concreto, visto que existe um conhecimento prévio e pessoal do Colega relativamente a ambas as parte, o Colega chegou a conferenciar por telemóvel com ambos os cônjuges desavindos e só não houve uma reunião a 3 porque a agora m/Const. se negou a participar.
A m/ Constituinte, todavia, confidenciou-me que o Colega sabe de todos os pormenores, até os mais pessoais e íntimos, da relação desavinda que tem com o seu marido desde o início, o que, na minha opinião, acrescenta risco a uma possível violação do sigilo profissional.
Agradeço, por isso, que esse Conselho de Deontologia me aclare se, a situação concreta constitui ou não um conflito de interesses no âmbito do Art.º 99º do E.O.A. e, a final, de o Exmo. Colega pode ou não manter-se como Adv. Constituído do marido da m/ Constituinte.
Finalmente, este Parecer é solicitado com a máxima urgência, dada a urgência da situação concreta das partes envolvidas, visto que estamos perante questões de Direito da Família que terão que ser urgentemente dirimidas entre ambas as partes representadas.
Aguardo uma resposta ao presente email, tão breve quanto possível.
Sem outro assunto de momento.
A Colega ao dispor”
Por ofício remetido por via de correio electrónico, em 19 de Abril de 2024, o Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados, enviou a comunicação supra aludida para o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, atenta a sua competência nesta matéria.
O referido pedido foi distribuído ao aqui Relator, em 03 de maio de 2024, para emissão do correspondente parecer.
Em 13 de Maio de 2024, foi a Consulente notificada do Despacho, proferido pelo Relator, solicitando a concretização e demonstração da factualidade subjacente ao pedido de parecer.
Em 31 de Maio de 2024, a Ilustre Colega respondeu ao aludido Despacho, nos termos que se transcrevem infra:
“- De acordo com o oportunamente enviado, segundo a m/ Constituinte – e confirmação do Colega, em email -, em momento anterior ao s/ contacto comigo, o Advogado visado – Dr. …, a seguir melhor identificado -, soube de todo o contexto das desavenças familiares ao tempo vividas pelo ora ex-casal – pois que, entretanto e na ausência de resposta ao meu pedido, foi decretado o Divórcio, no qual compareceu o dito Colega, como se pode verificar pela junção das respectivas Atas -, nomeadamente, da situação de Adultério do “seu” Constituinte para com a m/ Constituinte.
- Ou seja, até ao momento em que eu me constitui Mandatária da m/ Const., o Dr. …, foi exclusivo confidente de ambos os ex-cônjuges, conhecendo toda a situação pessoal e até os pormenores mais íntimos que estiveram na base do final do s/ relacionamento.
- Sendo certo que, logo na primeira vez que eu o contactei, o Dr. … teceu juízos de valor relativamente àquela que viria a ser, em momento posterior, a m/ Const. e relativamente aos seus comportamentos, conforme nossa troca de email’s que também aqui junto em anexo.
- Além disso, foi o próprio Colega, Dr. …, que, num dos seus email’s escreveu a propósito da mãe do ex-marido da m/ Const., que, como oportunamente escrevi, é sua empregada doméstica, sendo que, muitos dos pormenores da vida do casal, terão sido transmitidos/confirmados ao Colega pela referida senhora.
- Quanto aos fatos concretos que advieram ao conhecimento do Advogado visado, aqui se remete para a PI do Divórcio e para o Requerimento Inicial que deu início à Regulação das Responsabilidades Parentais dos menores, que também aqui se anexam.
- O Dr. …, muito embora - e tanto quanto é do conhecimento da ora Requerente -, apenas tenha representado a s/ Const. num processo de natureza Laboral, é certo que, como pessoa próxima da família, era o confidente, conselheiro da família em todas as situações de litígio, daí terem ambos os ex-cônjuges recorrido a ele num momento inicial das suas desavenças.
- Para melhor concretização, como acima se expõe, aqui se juntam ambas as PI’s que foram remetidas a Tribunal, bem assim como as Atas das diligências entretanto realizadas em cada um dos processos.
- O Advogado visado é pois o Dr. …, portador da C.P. nº … e escritório na ….
- Se assim se entender necessário, desde já indica a m/ Const., abaixo melhor identificada, como Testemunha do assunto em questão, visto que também ela é a principal interessada em que tudo fique clarificado o quanto antes: …, que poderá ser contactada por Whatsapp ou telefonicamente pelo telemóvel: ….”
Sintetizando, a Consulente pretende que o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados se pronuncie relativamente a um eventual conflito de interesses, do mandatário do ex-marido da sua constituinte, que nessa qualidade teve intervenção nos processos de regulação das responsabilidades parentais e de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, perspectivando-se, também, que venha a intervir no processo de Inventário, considerando que, na pendência do matrimónio, o mesmo causídico assumiu a representação e o aconselhamento jurídico da sua constituinte em assunto de foro laboral.
Alega ainda a Consulente que, ao longo desse período, o Ilustre Colega, por força do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, mas também por ter desenvolvido uma relação de proximidade com a família, assumindo um papel de confidente e conselheiro em situações de litígio, tomou conhecimento de diversos factos que, presentemente, no âmbito dos referidos processos, poderão ser utilizados em prejuízo da sua constituinte.
Feito o enquadramento do pedido de parecer efectuado, cumpre, neste momento, aferir da competência do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados para a respectiva emissão.
Nos termos do disposto no artigo 54º, nº 1 alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro, na sua versão actual (doravante designado por EOA), que compete aos Conselhos Regionais, no âmbito da sua competência territorial, “Pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional;”.
A jurisprudência da Ordem dos Advogados tem sido unânime em definir como questões de carácter profissional todas as que assumam natureza estatutária, resultantes de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas dos Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.
Considerando, de acordo com o supra vertido, que este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados é competente, material e territorialmente, cumpre emitir parecer quanto à questão suscitada no presente processo.
Compulsado o teor do requerimento apresentado pela Consulente, é possível distinguir duas questões que cumpre analisar, para efeitos do presente parecer, ambas decorrentes da conduta profissional do Ilustre Colega, que agora é mandatário do ex-marido da constituinte da primeira, um eventual conflito de interesses e a possível violação de segredo profissional.
As questões suscitadas pela Consulente são de foro deontológico, concretamente sobre a relação entre o advogado e o cliente e, bem assim, sobre eventual conflito de interesses entre o mesmo e o cliente que representa ou quer representar, podendo também verificar-se uma violação do segredo profissional, um dos mais importantes princípios gerais norteadores do exercício da advocacia.
No que tange ao conflito de interesses, importa examinar o seu contexto jurídico para, de seguida, verificar a sua aplicabilidade à situação em análise.
A problemática do conflito de interesses no exercício da advocacia encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA, que dispõe o seguinte:
Artigo 99.º
Conflito de interesses
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”
O supra citado normativo salvaguarda e preserva valores essenciais da advocacia como a independência, confiança e lealdade e, bem assim, a salvaguarda do segredo profissional.
O artigo 99º do EOA enuncia, nos seus números 1 e 2, situações que determinam, ao advogado, a recusa, perentória, do patrocínio.
Assim, o advogado deve abster-se de assumir o mandato:
- Em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;
- Em questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;
- Em questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
O nº 3 do citado artigo determina ainda que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
Por seu turno, o nº 4 dispõe sobre a hipótese de um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como, sobre a hipótese de ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, situações em que o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
Nos termos do n.º 5, o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, procurando-se, assim, defender a comunidade e os clientes dos advogados em especial, de atuações ilícitas destes, conluiados ou não, com outros clientes, bem como, defender o advogado da hipótese de sobre ele recair a suspeita de uma atuação visando qualquer outro fim, que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.
Finalmente o nº 6 determina que sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores do artigo 99º do EOA é aplicável quer à associação quer a cada um dos seus membros.
Sendo certo que, em regra, o processo de aferição da existência ou não de um conflito de interesses é um exercício eminentemente casuístico, certo é que o legislador estabelece, a priori, alguns casos em que o conflito de interesses impõe um dever de recusa do patrocínio, não porque em concreto e no imediato se verifique o conflito de interesses, mas porque, objetivamente, as circunstâncias, em si mesmo, promovem esse conflito.
Ao longo do tempo, o Conselho Regional de Coimbra tem proferido inúmeros pareceres sobre o conflito de interesses, sendo entendimento recorrente que é ao advogado que cabe a responsabilidade maior de avaliar, casuisticamente, se ocorre, ou não, uma situação de conflito de interesses.
Genericamente, o advogado não se encontra impedido de exercer patrocínio contra um anterior cliente desde que o patrocínio não configure uma situação de conflito de interesses.
Como já se referiu, o artigo 99º do EOA pretende evitar o risco sério, ainda que meramente potencial, de um conflito de interesses entre clientes, ou ex-clientes do causídico, quando os mesmos acabam em lados diferentes da barricada.
Compulsados os requerimentos apresentados pela Consulente, parece-nos inequívoco que, nesta matéria, a factualidade não tem enquadramento no supra citado artigo.
Senão vejamos, a constituinte da consulente contraiu casamento, em 28 de Abril de 2012, com Hugo Filipe Craveiro da Silva Cardoso.
Esse casamento foi dissolvido em processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, convolado em divórcio por mútuo consentimento, em 02 de Maio de 2024.
Na constância do matrimónio, o Ilustre Colega terá representado a constituinte da Consulente num processo do foro laboral, não sendo possível determinar, com base nas informações prestadas e nos documentos juntos, a natureza jurídica desse processo e se o mandato se traduziu em efectiva representação judicial ou extrajudicial.
Salienta-se ainda que o Ilustre Colega, na constância do matrimónio, terá assumido um papel de confidente e conselheiro do casal, a quem recorriam em situações de litígio, não sendo possível, uma vez mais, determinar, com base na informação carreada, se esses dissídios tinham a sua génese na relação entre o casal ou na sua relação com terceiros e se a intervenção do Colega, na gestão dos mesmos, ocorreu em contexto profissional ou extraprofissional.
Da factualidade referida pela Consulente destaca-se ainda, com relevo para o presente parecer, que o Ilustre Colega representou judicialmente a parte contrária nos processos de regulação das responsabilidades parentais e de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
Tem sido entendimento pacífico da Ordem que existe conexão “quando se verifique uma “relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valoração de certos factos”, conforme Parecer do Conselho Geral nº E-14/00, aprovado em 13 de Outubro de 2000.
Considerando que artigo 99º nº 1 do EOA refere, taxativamente, que um advogado deve recusar o patrocínio de uma questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária, exige-se, para emissão de parecer nesta matéria, uma concretização fáctica dos serviços, alegadamente, prestados pelo Ilustre Colega que permitam avaliar a sua eventual conexão.
É inequívoco que a concretização e demonstração da factualidade subjacente ao pedido formulado pela Consulente fica aquém desde desiderato, particularmente por falta de concretização da factualidade que permita percecionar a natureza jurídica do processo do foro laboral, no qual o Ilustre Colega representou a constituinte da Consulente.
A falta desses elementos obsta a que se identifique uma conexão entre o processo laboral, no qual a constituinte da Consulente foi representada pelo Ilustre Colega, e os processos de regulação das responsabilidades parentais, de divórcio sem consentimento do outro cônjuge ou no subsequente processo de inventário, pois é da sentença de divórcio que emerge o direito à partilha dos bens comuns do casal.
Pelo exposto, será de concluir que não existe conflito de interesses que, nos termos do disposto no artigo 99º nº 1 do EOA, impeça o Ilustre Colega de aceitar o patrocínio da questão.
A Consulente alega ainda que o Ilustre Colega terá tido conhecimento de diversos factos que conduziram ao fim do matrimónio, adquiridos através da mãe do seu constituinte e também por ter assumido o papel de confidente/conselheiro do casal.
À semelhança do que foi feito anteriormente, importa enquadrar juridicamente esta questão, aferindo da eventual quebra da obrigação de sigilo profissional do advogado.
Dispõe o artigo 92º do EOA, no seu nº 1 que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
Dispõe o nº 2 daquele artigo que “A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.”.
O nº 3 determina que “O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”.
O nº 4 daquele artigo dispõe da seguinte forma: “O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”.
O nº 5 diz-nos que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”.
Do exposto resulta a regra da absoluta confidencialidade dos factos de que o Advogado tenha conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas.
O sigilo profissional é pedra angular da advocacia, assente na relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, na função social da mesma, de interesse público, e na coesão da classe. O segredo profissional é considerado “um dos pilares em que (...) [esta] firma a sua dignidade e independência” e, simultaneamente, “condição da sua existência” (cfr. Fernando Fragoso Marques, ROA, Ano 59, Vol. I, pg. 379).
Para se determinar a vinculação, ou não, ao segredo profissional é necessário averiguar se os factos têm enquadramento em alguma das alíneas, meramente enunciativas, ou se têm cabimento na cláusula geral do já referido artigo 92º nº 1 do EOA.
Assim sendo, nem tudo que chega ao conhecimento de um advogado no exercício funcional da sua atividade está sujeito ao dever de sigilo. Com efeito existem factos que o mesmo terá, inevitavelmente, de partilhar, com terceiros ou no foro judicial, e outros que, muito embora sejam fruto do exercício de funções, não estão sob a sua égide.
Certo é que, aqueles que se encontram a coberto do sigilo, só em casos muito excecionais, que se encontram previstos na lei, podem ser revelados pelo advogado, recorrendo, para o efeito, ao mecanismo da dispensa de segredo profissional.
O Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados tem proferido inúmeros pareceres acerca do segredo profissional, sendo recorrente o entendimento de que a norma do nº 1 do artigo 92º do EOA terá, inevitavelmente, de ser interpretada de forma muito restritiva, sujeitando, em regra, o advogado ao dever de segredo, pelos motivos já referidos anteriormente.
Feito este enquadramento, ainda que de forma abreviada, importa examinar os requerimentos da Consulente, exercício que se reveste de particular importância para a decisão a proferir.
Refere a mesma que o Ilustre Colega conferenciou, telefonicamente, com a sua constituinte e que propôs a realização de uma reunião, que não se concretizou porque a sua constituinte se recusou a participar na mesma.
Uma vez mais, constata-se que a Consulente não concretiza quais factos de que o Ilustre Colega teve conhecimento e não esclarece se os mesmos foram adquiridos por via do exercício das suas funções como advogado ou porque partilhou momentos de lazer/convívio com o casal que era seu cliente.
Ainda que se admita que a conversa telefónica que o Ilustre Colega teve com a constituinte da Colega ocorreu em contexto profissional, a escassez de elementos não permite aferir se o mesmo efectuou esse contacto, na qualidade de advogado da segunda ou na qualidade de mandatário do seu ex-marido.
Por outro lado, muito embora faça alusão ao conhecimento prévio de factos da vida íntima do casal, a Consulente não logra esclarecer se os mesmos resultaram do exercício da actividade profissional ou se os mesmos são fruto da relação de proximidade com o casal e do seu papel de confidente/conselheiro dos mesmos, sendo certo que a Consulente não afirma, em momento algum, que esses factos tenham, pelo mesmo, sido utilizados, em prejuízo da sua constituinte, para benefício da parte contrária.
Importa referir que nem todos os factos estão sujeitos a segredo profissional. Com efeito, como já se referiu, o seu carácter sigiloso resultará, obrigatoriamente, de uma análise casuística, com recurso ao designado “triplo crivo”, que se traduz no seguinte exercício analítico:
a) Como o é que o advogado teve conhecimento do facto, quem o divulgou e em que quadro fáctico;
b) Do teor do próprio facto;
c) Das concretas circunstâncias do conhecimento e da revelação.
Atento o supra referido e considerando o relatado pela Consulente, nesta matéria, ainda que de forma abstracta e não concretizada, resulta uma insuficiência de matéria que permita levar a cabo o referido exercício analítico, porquanto não concretiza os factos que, no seu entender, evidenciam que o Ilustre Colega violou a obrigação de segredo profissional, nem estabelece uma relação directa e evidente entre o alegado incumprimento do sigilo e o desfecho dos processos de regulação das responsabilidades parentais e de divórcio que, refira-se, terminaram por acordo das partes envolvidas.
Finalmente, importa salientar que os factos de que o Ilustre Colega teve conhecimento, no âmbito de uma relação de amizade com o casal não se encontram a coberto do sigilo profissional.
Pelo exposto, entendemos que, nesta matéria, inexistem elementos que permitam concluir pela existência de violação da obrigação de sigilo profissional a que o Ilustre Colega está vinculado, em virtude da revelação de factos de que obteve conhecimento por via do exercício das suas funções enquanto advogado da constituinte da Consulente.
Conclusões:
1. A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia concerne, encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA, no qual são elencadas as situações concretas em que o Advogado deve recusar o patrocínio, por se afigurar que naqueles casos concretos a independência, confiança, lealdade e dever de guardar sigilo profissional, podem ficar irremediavelmente comprometidos.
2. Para se determinar a vinculação, ou não, ao segredo profissional, com a consequente sujeição à regra da absoluta confidencialidade, é necessário averiguar se os factos de que o Advogado teve conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas, têm enquadramento em alguma das alíneas, meramente enunciativas, ou se têm cabimento na cláusula geral do já referido artigo 92º nº 1 do EOA.
3. A emissão de um juízo sobre conflito de interesses e violação do dever de segredo profissional pressupõe a concretização dos pertinentes factos no pedido de parecer.
4. A falta de concretização da factualidade que consubstancie as questões sob apreciação inviabiliza a emissão de juízo de valor sobre a verificação de um eventual conflito de interesses e/ou violação do dever de guardar segredo profissional.
5. Os factos cujo conhecimento advenha de uma relação de amizade com os clientes não se encontram a coberto do sigilo profissional.
O Conselho Regional de Coimbra detém competência para a emissão do presente parecer, por lhe estar subjacente situação e conduta praticada por Advogado com escritório na sua área de circunscrição territorial, por um lado, e porque em causa está questão de carácter profissional expressamente submetida à sua apreciação, nos termos do art. 54º, nº1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), por outro.
São questões de carácter profissional todas aquelas que se prendem com o exercício da advocacia, tradicionalmente concebidas como decorrentes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam a profissão resultantes, em especial, das normas do nosso Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados. (neste sentido, a Consulta nº31/2007, Relatada por Sandra Barroso e o Parecer 20/2015, Relatado por Rui Souto, ambos do ora Conselho Regional de Lisboa).
Os poderes atribuídos aos Conselhos Regionais para a emissão de parecer têm, necessariamente, de ser harmonizados com a competência específica conferida a outros órgãos da estrutura da Ordem dos Advogados, como é o caso dos Conselhos de Deontologia a quem cabe o exercício do poder disciplinar e de zelar pelo cumprimento das normas de deontologia profissional (art. 58º do EOA).
O respeito pela estrutura orgânica e consequente repartição de funções e competências materiais para o seu exercício, determina, pois, que o Conselho Regional de Coimbra – no que importa à apreciação de assuntos referentes a deontologia ou ética profissional – apenas possa pronunciar-se quanto a tais matérias, em termos de mera orientação, em estrita resposta à consulta colocada.
O exercício da indicada competência ocorre, como se disse, por via da resposta às questões profissionais que lhe são colocadas, sem embargo, contudo, de, por respeito ao princípio da legalidade, comunicar ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os efeitos tidos por convenientes, os casos identificados como condutas passíveis de configurar violação de deveres e princípios ético-deontológicos.
No caso em apreciação foi solicitada a emissão de Parecer, tendo sido juntos documentos pela Consulente, concretamente diversa correspondência electrónica trocada entre mandatários, que, pela sua natureza, podem estar abrangidos por sigilo profissional, caso em que a sua junção depende de prévia autorização do Presidente do Conselho Regional, territorialmente competente.
Ora, porque uma situação de tal natureza se revela apta a configurar conduta disciplinarmente censurável, impõe-se a extracção de certidão do mesmo e da aludida documentação e a sua remessa ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os efeitos tidos por convenientes.
É este o nosso parecer.
Carlos Santos Silva
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