PARECER Nº 15/PP/2024-C
PROCESSO DE PARECER N.º 15/PP/2024-C
I. Relatório
1. Por ofício datado de 19.04.2024, dirigido ao Conselho Distrital de Coimbra – atualmente[1] Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados (CRC), presidido pela Exma. Senhora Dra. Teresa Letras[2], com registo de entrada nos correspondentes Serviços Administrativos em 23.04.2024 (Reg. 3494), enviou o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu - Juízo de Execução de Viseu, certidão “para que se possa aferir da eventual violação do alegado dever de sigilo profissional, bem como, para averiguação ou não da violação de quaisquer regras deontológicas por parte da (…) habilitada/executada”, Exma. Senhora Dra. CMSGBL..., Advogada com escritório em Viseu, usando como nome profissional CB...;
2. Tal solicitação veio acompanhada de CD, que integra a certidão em causa, “e contém agravação dos depoimentos prestados em audiência” de julgamento do ali identificado processo nº 2512/11... – Oposição à Execução Comum, realizada em 11.04.2024;
3. Foi ainda transmitido ter aquela interveniente “informa[do] em audiência de julgamento que já havia requerido o levantamento de sigilo”, tendo sido dada nota de que se encontrava designada a sessão seguinte para o dia 16.05.2024;
4. Suscitando-se dúvidas, em 14.05.2024 foi proferido despacho, com caráter urgente, através do qual se solicitou, “por se afigurar que sem tal aclaramento não se mostra possível satisfazer cabalmente o pretendido”, qual a efetiva pretensão do Tribunal, designadamente “se o que é pretendido (…) é a emissão de Parecer sobre (…) questão de natureza profissional e suas implicações.”;
5. Ao mesmo foi dada resposta em 16.05.2024, confirmando-se que o pedido visa “precisamente a emissão do parecer sobre a natureza profissional e as implicações” e, indicando-se a nova data da continuação do julgamento – 19.09.2024 –, solicitou o Tribunal “os bons ofícios no sentido da informação a prestar o seja antes daquela”;
6. Em 19.06.2024, antes da audiência de discussão e julgamento, foi enviado ao Tribunal o extrato da decisão proferida em sede de dispensa de sigilo, tendo sido proferido despacho para dar conhecimento que, “atendendo à imperatividade de apresentação e votação de todos os Pareceres em sessão do Conselho Regional de Coimbra, e sendo certo que a próxima terá lugar esta 6ª feira, dia 21.06.2024”, o mesmo apenas poderia seguir após a sua aprovação;
7. Em causa está o Depoimento de Parte de Advogada em causa própria – Oposição à Execução comum nº2512/11..-A... – “a toda a base instrutória”, na parte em que foi considerado ter sido revelado o segredo profissional;
8. Isto, sendo certo que prestou as suas declarações sem estar munida de autorização do CRC que o legitimasse, já que o pedido de dispensa de segredo profissional que mencionou tem registo de entrada nos Serviços Administrativos no CRC em data posterior ao julgamento e, portanto, já depois de prestadas as suas declarações. O mesmo será dizer que prestou depoimento sem a devida autorização;
9. A sua inquirição foi levada a cabo pela sua Estagiária, munida de procuração forense com poderes especiais, constando da “Ata de Audiência e Julgamento” (que integra a certidão) como “Mandatária da Executada (…): advogada estagiária e (…) [a própria]”;
9. “Não tendo havido oposição por parte das mandatárias presentes” à prestação de Declarações de Parte pela Exma. Senhora Advogada a litigar em causa própria – requerida que foi pela sua Estagiária – durante as mesmas, porém, foi suscitada pela Exequente a questão da sujeição de determinada matéria a Segredo Profissional e consequente violação deste dever;
10. De modo que requereu para a ata “Que seja extraída certidão e remetida à Ordem, porque entendemos que (…) não podia prestar depoimento, sem requerer o levantamento e pede a anulação do mesmo.”;
11. Encerrando a questão, foi proferido Despacho pela Exma. Senhora Juiz, que, no que tange à matéria em causa, determinou: “1. A fim de se aferir da eventual violação do alegado dever de sigilo profissional por parte da aqui habilitada/executada, determino que se proceda à transcrição do seu depoimento e, com cópia da presente ata, se remeta o mesmo à Ordem dos Advogados, para averiguação ou não da violação de quaisquer regras deontológicas, após o que nos pronunciaremos sobre a requerida anulação das suas declarações de parte.”;
12. O Conselho Regional de Coimbra analisa os pedidos de Parecer e de Dispensa de Sigilo que dão entrada com explícita indicação e fundamentação, pelos requerentes, do seu caráter urgente, dando prioridade de decisão a todos os que dão entrada completos e têm diligências agendadas/prazos em curso, tratando, primeiramente aqueles cujas datas se encontram mais próximas;
13. Tal circunstância, que determina o modus procedendi do CRC nessa sede, bem como o elevado número de entradas de processos desta natureza, implica não só a comunicação expressa, e cautelosamente atempada, das datas das diligências e/ou prazos que possam estar em causa; como ainda a devida instrução e fundamentação do pedido apresentado – sob pena de impossibilidade de emissão de Parecer/Decisão, designadamente em tempo útil;
14. De salientar ainda a que todos os pedidos devem ser encaminhados aos Órgãos que detêm a competência decisória na matéria, utilizando os seus endereços corretos, assim se evitando equívocos e atrasos desnecessários e absolutamente evitáveis.
II. Apreciação
A. A competência consultiva do Conselho Regional de Coimbra
O Conselho Regional de Coimbra detém competência para a emissão do presente parecer, não apenas por estar subjacente situação verificada em localidade pertencente à sua área de competência territorial, mas ainda porque a mesma configura questão de carácter profissional expressamente submetida à sua apreciação, nos termos do art. 54º, nº1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
Procedendo à delimitando do âmbito material da norma, avança-se que questões de carácter profissional são todas aquelas que se prendem com o exercício da advocacia, tradicionalmente concebidas como decorrentes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam a profissão. Resultantes, em especial, das normas do nosso Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.
Porém, os poderes atribuídos aos Conselhos Regionais para a dita pronúncia têm, necessariamente, de ser entendidos e conciliados com a competência específica que é conferida, em áreas concretas, a outros órgãos da estrutura da Ordem dos Advogados. É o caso do poder disciplinar, e do de velar pelo cumprimento das normas de deontologia profissional, atribuído aos Conselhos de Deontologia (art. 58º do EOA).
Uma tal consideração, com o respeito que é devido à estrutura orgânica e consequente repartição de funções e competências materiais para o seu exercício, determina, pois, que o Conselho Regional de Coimbra – no que importa à apreciação de assuntos referentes a deontologia ou ética profissional – apenas possa pronunciar-se, quanto a tais matérias, em termos de mera orientação, de estrita resposta à consulta colocada. Precisamente por, neste âmbito, deter unicamente competência consultiva, e carecer, portanto, de competência decisória. Por tal razão, não foi o Senhor Advogado visado notificado nos termos e para os efeitos do art. 121º do CPA.
Tem sido prática deste Conselho responder às questões profissionais deste foro que lhe são colocadas, sem embargo de, em função do respeito pelo princípio da legalidade, comunicar os casos identificados como condutas passíveis de integrar, ou que integram, violação de deveres e princípios ético-deontológicos, ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os devidos efeitos.
Esta concreta opção determina, não apenas a circunscrição da apreciação – estritamente a efetuar a partir dos elementos trazidos ao processo pelo requerente –, mas ainda a natureza não vinculativa da correspondente decisão, que não configura, nem pode alcançar relativamente à questão de fundo, uma decisão de mérito.
Assim apresentada, a situação subsume-se ao critério, sendo que a resposta importará/incidirá, naturalmente, no prisma da validade da prova.
Isto, embora o efeito útil, direto e imediato, da posição ou juízo a emitir pelo CRC, aproveite ao próprio Tribunal da causa, em particular no momento da sua decisão, o que, aliás, justifica o Pedido formulado, o seu esclarecimento e os seus precisos termos. O interesse no sentido do Parecer é, em primeira instância, do Tribunal, que, no exercício da sua função jurisdicional, resultante do art. 202º da CRP e art. 2º, nº2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário[3], detém a competência exclusiva para decidir da validade dos meio probatórios.
Ressalta, desde logo, a conjugação da possibilidade da Advocacia em causa própria e da prestação de Declarações de Parte nos termos do art. 466º do CPC.
Assim:
B. ADVOGADO EM CAUSA PRÓPRIA - FACULDADE CONCEDIDA AO PROFISSIONAL
O Código de Processo Civil Português, tratando no Livro I Da acção, das parte e do tribunal, aborda especialmente o Patrocínio judiciário, no Capítulo III do seu Título III, a propósito Das partes, sendo que o preceito do art. 40º determina as diversas situações em que é obrigatória a constituição de advogado, de onde toma a sua epígrafe. O que é igualmente contemplado no art. 58º – Patrocínio judiciário obrigatório – por remissão para as disposições especiais sobre execuções. São ainda previstos casos em que “podem as próprias partes pleitear por si” (arts. 42º e 40º, nº3), designadamente nas causas em que não é obrigatória a constituição de advogado.
É neste envolvimento que encontramos o Advogado-parte. Com todos os direitos e obrigações que impedem sobre qualquer (outra) parte processual. Deparamo-nos, pois, com o profissional da advocacia que, em simultâneo, intervém ativamente no processo – também – como parte legítima, i.e., com interesse direto em demandar ou contradizer, conforme dispõe o art. 30º do mesmo diploma.
Esta possibilidade dos Advogados – tal como sucede com os Magistrados Judiciais e do Ministério Púbico – poderem advogar em causa própria, decorre da interpretação articulada do atual art. 196º do Estatuto da Ordem dos Advogados, 21º do Estatuto dos Magistrados Judiciais[4], e atual art. 114º do Estatuto do Ministério Público[5]; não podendo olvidar-se a importância do art. 4º, do atual Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores[6], cujo nº1 determina que “… apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução podem praticar os atos próprios dos advogados e dos solicitadores”, com correspondência material patente nas normas referentes ao Exercício da Advocacia, grosso modo, nos arts. 66º a 72º do EOA. Com efeito, e como resulta diretamente do nº1 do art. 66º do EOA vigente, apenas pode exercer advocacia, nomeadamente em causa própria, o Advogado que tenha título profissional atribuído e, logo, a sua inscrição em vigor na Ordem dos Advogados. Porque apenas a estes é reconhecida competência e, portanto, legitimidade para a prática dos referidos atos próprios daqueles profissionais.
É bom de ver a existência de uma relação de interdependência entre a inscrição na ordem profissional e o exercício da profissão. Escrevia já a este propósito António José de Lima, nem decorridos ainda 10 anos sobre a criação da Ordem dos Advogados que, “Para exercer a profissão de advogado não basta, pois, ser graduado por qualquer das Faculdades de Direito (…). Dois requisitos se impõem: estar inscrito na Ordem dos Advogados; exercer efetivamente a profissão”[7].
Sendo certo que, desde o Estatuto Judiciário[8] até ao atual EOA, nunca o legislador se preocupou em colocar a situação em letra de lei, além de nunca ter referido claramente a hipótese de o Advogado poder litigar em causa própria, certo é, igualmente, que sempre o admitiu. O que se justifica, de acordo com Pires de Almeida, “seguramente por pressupor que esta faculdade é imanente à (…) própria condição de advogado, em exercício de tal profissão e devidamente inscrito na Ordem dos Advogados e (…) muito melhor preparado, por dever de ofício”[9] do que os docentes e professores de direito, a quem tal era reconhecido pelo Estatuto Judiciário. E mesmo do que os Magistrados, Judiciais e do Ministério Público, em cujos Estatutos, como se viu, tal se encontra consagrado.
Trata-se de uma real possibilidade, desde sempre assumida. De modo que o facto de não ter previsão legal expressa não a torna proibida. Aliás, atente-se nas fontes de direito, relembrando que uma das suas fontes formais é, precisamente, o costume. Assim como é, igualmente, a jurisprudência. E esta, por sua vez, tem sempre aceite aquela real possibilidade. O Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.06.1997, refere expressamente “O direito reconhecido aos advogados, de litigar em causa própria, decorrente do (…) Estatuto da Ordem dos Advogados...”, fazendo constar que este é um “direito unanimemente reconhecido ao advogado”. Focando-nos, aqui, no que nos importa, à sede civil.
Não se discute, portanto – precisamente porque não chega a colocar-se – a questão da legalidade da situação, ou da admissibilidade de um Advogado poder “advogar em causa própria”. Porém, a qualificação jurídica dessa circunstância tem sido debatida pela doutrina e pela jurisprudência, constituindo, para alguns, o exercício da advocacia em causa própria, ao passo que para outros, traduz o exercício do patrocínio de si próprio. Trata-se, pois, da apreciação, como questão teórico-académica, do que é, efetivamente, uma realidade prática inequivocamente assumida e reconhecida.
Todavia, ainda que esta seja uma prática permitida pela lei portuguesa – como pela italiana, aliás –, é repudiada por muitos autores, com destaque de Lopes dos Reis, cuja argumentação vai no sentido que, “[n]o nosso direito a idoneidade do representado para agir em juízo é uma mera qualificação negativa retirada da sua falta de habilitação profissional.” Com efeito, sumariza o raciocínio em que assenta a sua posição afirmando que “Mais correto seria qualificar negativamente a parte, enquanto tal: é que, ainda que tenha a preparação técnica e a habilitação necessárias, a parte não tem decerto objetividade – e não tem, com frequência serenidade – para agir por si em juízo”[10]. O que, nessa parte, de tão verdadeiro, é irrefutável.
Alberto Jorge Silva, em Parecer do Conselho Superior[11], sustenta, incutindo uma precisão, que embora esta seja “uma prática que a lei portuguesa permite, (...) não é isso que autoriza a qualificá-la de patrocínio”. E fundamenta a sua tese na definição e essência do que é “Patrocinar” – “dar patrocínio, protecção, amparo, auxílio, sendo que patrono é o «advogado, em relação a seus clientes»”[12].
Não obstante as várias nuances, ou as retificações teórico-práticas introduzidas na discussão, ponto é, como se demonstrou, que o advogado com inscrição em vigor pode litigar/advogar em causa própria. E se assim é, passa a participar/intervir no processo – também, e em simultâneo – na qualidade de parte. Castro Mendes, abarcando ambas as vertentes – própria e de terceiro –, sintetiza: “é aquele que pede em seu próprio nome, ou em cujo nome se pede, a actuação de uma vontade da lei, e aquele frente à qual ela é pedida.”[13] Repete-se, abstraindo-se da qualificação jurídica atribuída à dita faculdade detida pelo Advogado – seja vista como o exercício do seu próprio patrocínio, o simples “advogar” em causa própria, ou aquilo que, tão somente, não se consegue enquadrar numa figura ou circunstância particular a não ser aquela mesma – é por todos dado como adquirido que tal situação é permitida e reconhecida. Que, ademais, tem vindo a assumir uma dimensão prática muitíssimo relevante, maxime nos últimos tempos, especialmente na propositura de ações de cobrança de honorários.
1. O Advogado-Parte e o direito à prova
O Advogado, só pelo facto de o ser, não poderia, por qualquer forma, ver coartados os seus direitos de cidadão.
A Constituição da República Portuguesa assegura, no seu art. 20º, o “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”, prescrevendo que “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.” Garantia que, integrada nos “Direitos e deveres fundamentais”, reflete a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1950, assinada por Portugal em 1976, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948[14], e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em vigor na ordem internacional desde 1976. Respetivamente, os seus artigos 6º, 10º e 14º, de acordo com os quais, em síntese, todos têm direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por Tribunais independentes e imparciais, perante os quais todos são iguais.
Em harmonia, o art. 2º do nosso Código de Processo Civil estabelece a “Garantia de acesso aos tribunais”[15], conferindo em particular o direito de ação. Apresentando como consequência a produção de efeitos jurídicos, este direito tem como indissolúvel reverso, a sujeição das partes à própria ação. Por conseguinte, cabe aos interessados na causa, detentores da legitimidade para agir em juízo, não apenas a iniciativa processual, mas ainda a própria conformação do objeto do processo. A estes pertence, portanto, a exposição da causa de pedir, na qual assenta o pedido concreto a formular. Assim como, por inerência, sobre eles impende o ónus da prova da matéria alegada.
Pois se é permitido ao advogado pleitear em tais condições específicas, significando litigar em causa na qual tem interesse, e está pronto a “representar-se”, naturalmente que lhe assistem os mesmos direitos que se reconhecem e atribuem a todas as partes, em especial quanto ao recurso aos meios probatórios admissíveis por lei.
Ora, a específica qualidade detida por uma das partes, como é a de ter a advocacia por profissão, dela fazendo uso, na ocasião, para demandar no seu próprio interesse, poderá suscitar diversas questões. Que se colocam na esfera deontológica, nomeadamente quanto ao respeito, pelo Advogado, de princípios e normas ético-jurídicas. Em particular no que concerne ao Sigilo Profissional. Porque “o advogado que tem a si próprio como cliente”, como identifica a sabedoria popular, tem necessidade de em juízo apresentar prova, sempre que sobre si recai tal ónus.
E, por exemplo, quanto à apresentação de prova documental, deverá revestir-se de cautelas, assegurando-se que a mesma não está sujeita ao dever de manutenção de segredo profissional, ou que dele foi dispensada, nos termos do disposto no art. 92º, nº4 do EOA. Não poderá, é bom de ver, indicar-se como testemunha (“Advogado e testemunha, nunca!”), podendo vir a ser requerido o seu depoimento de parte, situação que lhe exigirá, igualmente, cuidados. Isto, por forma a precaver a eventual, mas irreparável, consequência da prova realizada com violação desta obrigação, pois “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”[16] E tal apenas poderá ser assegurado mediante prévio pedido de dispensa de sigilo profissional, dirigido à/ao Presidente do Conselho Regional competente.
Já no que tange às declarações de parte suscita-se a (averiguação da) possibilidade de o Advogado-parte, o Advogado em causa própria, lançar mão deste meio probatório. Note-se bem que a questão não é colocada quando uma das partes é advogado, tendo este emitido procuração a Colega que, assim, o representa em juízo.
Vejamos:
2. O Advogado-Parte e a prestação de Declarações de Parte
Este meio probatório, com consagração legal em 2013, foi incluído pelo legislador no Capítulo do CPC relativo à “Prova por confissão e por declarações das partes”. Assim, de acordo com o disposto no art. 466º, sob a epígrafe Declarações de parte, “As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.”
E embora tenha constituído uma inovação, certo é que não se trata de um meio de prova excecional[17], surgindo, antes, a par de todos os outros meios legalmente admissíveis, acrescendo-lhes. Porém, na prática, funcionará em situações de exceção. Por um la9do, porque, recaindo sobre factos que terão ocorrido unicamente entre as partes, sem que tenham sido presenciados por terceiros, figurarão como seu único meio de prova. E, em especial, porque constituem a última chance de que a parte dispõe precisamente para demonstrar factos que, cabendo naquelas estreitas linhas delimitadoras, lhe são – desta feita – favoráveis. Trata-se, pois, da derradeira hipótese da parte, de os provar. Assim se entendendo, portanto, que as declarações a prestar pela parte não incidam, e muito menos genericamente, sobre os temas de prova, encontrando-se, ao invés, absolutamente delimitado aos ditos factos em que interveio pessoalmente ou de que tem conhecimento direto – dentro daqueles temas –, tal como descrito no corpo do artigo.
Figurando uma verdadeira auto-proposta – o que atribui, ab initio, caráter voluntário ao seu recurso – esta prova pode vir a ser requerida e, consequentemente, realizada, até ao momento que antecede as alegações orais em audiência de discussão e julgamento. Assume-se, nas palavras de Luís Filipe Pires de Sousa[18] como um “direito potestativo processual”.
A reunião destas particulares características tem determinado a crítica de que este meio de prova incorpora um regime mais permissivo, atendendo em especial à “flexibilidade” do momento em que podem ser requeridas e, por tal via, produzidas. Com efeito, tendo em conta a oportunidade da sua dedução, por comparação com os restantes meios de prova, há que considerar-se “generosa”. Precisamente por não existir qualquer outra que possa ter lugar até “tão distante” momento processual – pode, efetivamente, ser requerida praticamente até ao fim da fase judicial do processo.
Porém, das declarações de parte pode ainda resultar a obtenção de outros meios de prova, com valores probatórios distintos, como estabelece o nº3 do art. 466º. É o caso da confissão e, nessa medida, este instituto não se traduz numa exata inovação no nosso ordenamento jurídico. Questão diversa é que a confissão assim obtida não pode ser valorada pelo Tribunal[19]. Pode ainda suceder que, ao invés, as declarações de parte conduzam ao reconhecimento de factos desfavoráveis que, apesar de tudo, não podem valer de confissão. De igual forma, também esta situação não poderá considerar-se nova. Realmente inovadora é, na verdade, a confirmação ou demonstração de factos favoráveis. Neste caso, consistem em meio probatório distinto dos restantes, fixados no Código Civil, sendo valoradas pelo Tribunal de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
Explica Luís Filipe Pires de Sousa, na sua perspetiva de juiz e, portanto, de apreciador da prova, que “as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. (…) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.”[20] Mas adverte: “Em última instância, nada obsta a que (…) constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o «standard» de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.”
Na medida em que se referem a factos em que a parte interveio ou de que tem/teve conhecimento por via direta, traduzem-se, afinal, na opinião de Elizabeth Fernandez[21], naquilo que a parte testemunhou. Defende, partindo da definição de testemunha, que aquela parte será uma testemunha qualificada, ou detentora de um conhecimento privilegiado (depoimento direto). O que, aliás, consiste numa restrição probatória, por não permitir declarações de hearsay (depoimento indireto). A circunscrição deste novo tipo de depoimento, considera a mencionada autora, “equivale a afirmar que as partes vão prestar um depoimento sobre factos que testemunharam”. E “se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma o que testemunharam, e porque o testemunharam, não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque processualmente são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha.” Isto, pese embora reconheça que “a tipificação das declarações de parte como meio de prova se reveste de manifesta importância no que diz respeito à garantia de um processo equitativo para as partes e sobretudo na tarefa de assegurar um efetivo grau de tutela jurisdicional efetiva para as mesmas em casos em que a prova se apresente como particularmente difícil.”
Aliás, no Parecer da Ordem dos Advogados, de 22.03.2012, quanto à Proposta de Lei nº 113/XII, que Aprovou o Código de Processo Civil, foi exposta posição muito semelhante. As declarações de parte foram expressamente indicadas como o instrumento probatório “em que a parte se assume como testemunha de si própria”, com alusão ao facto de ninguém ser bom juiz em causa própria. De acordo com diversos autores, aberto estará, portanto, o caminho conducente a um novo instituto – a prova por testemunho de parte.
A mencionada flexibilidade deste novo meio probatório comporta, porém, outras implicações.
Desde logo, o timming para a sua ocorrência viabiliza a possibilidade de vir a tornar-se um meio residual de prova, já que, como se deixou dito, a sua grande vantagem reside em poder ocorrer após a produção de toda a prova testemunhal, em audiência de julgamento, portanto. Nessa ocasião, em função da análise cuidada da prova já produzida, a parte verificará o sentido dessa prova que logrou obter, e as suas consequências para a defesa da sua tese. Então, devidamente ponderada a situação, e como ato consciente e voluntário, poderá requerer as suas próprias declarações (de parte), como último recurso. Estas assumirão, pois, um caráter de complementaridade, relativamente àquela até ali produzida.
Na verdade, uma das principais características deste meio probatório é, precisamente, o facto de poder ser requerido, em concreto, em tal momento já tardio/adiantado, do julgamento, como a derradeira chance da parte processual fazer valer a sua razão. No nosso ordenamento as partes pronunciam-se por escrito e, via de regra, através de mandatário. Pelo que, aquando da fase de julgamento já explanaram as suas posições. E em cumprimento das regras introduzidas pela mesma alteração legislativa operada ao CPC em 2013, as provas foram juntas com os articulados, tendo, àquela altura, já sido alegados os factos essenciais, e indicadas a prova necessária, e disponível, para demonstração dos mesmos. Por conseguinte, muito se temeu que as declarações dos sujeitos processuais viessem a ocorrer, sobretudo, nos casos de inexistência de outra qualquer prova. Visando ainda ultrapassar falhas na produção da prova, completando ou compondo a sua versão dos factos, com o objetivo único de persuadir o juiz da sua verdade.
Constata-se, igualmente, a existência de uma outra especificidade distintiva, muitas vezes minimizada: o requerimento dirigido à prestação destas declarações há-de ser devidamente fundamentado. Impõe-se a avaliação da razão e utilidade da produção de uma tal prova, pelo decisor, não só em face do espírito do legislador com a sua implementação – a celeridade processual –, mas ainda o ultrapassar de uma questão antiga, que se afigurava injusta, como era a não participação direta das partes no processo. Desta forma, e porque há que decidir quanto à relevância do meio de prova para a demonstração dos factos, impõe-se a indicação, de forma especificada, da matéria sobre a qual a parte incidirão as declarações. Este concreto meio probatório terá, ou não, lugar, em função de uma averiguação apriorística, a efetuar pelo juiz da causa. E será ou não admitido, precisamente consoante a conclusão resultante de tal averiguação.
Nesta mesma linha, de rigor processualista, admitida a prova por declarações de parte a inquirição seria conduzida pelo próprio Juiz, encontrando-se, é bom de ver, sujeita a pedidos de esclarecimentos pelos Senhores Advogados. Porém, a jurisprudência já veio mostrar o seu entendimento relativamente a tais formalidades, resultado da experiência que o tempo já permitiu. Assim, por exemplo o Ac. da Relação de Lisboa, de 21.12.2015[22], citando o aresto da mesma Relação, de 29.04.2014[23], deixa registado que “«tais declarações devem ser encaradas como qualquer outro momento de recolha de prova, à qual assistem os advogados das partes com plena liberdade ao nível do exercício do contraditório, não se justificando um tratamento diverso, designadamente daquele que têm os depoimentos de parte oficiosamente determinados pelo Tribunal já em sede de julgamento»”
De acordo, não só com a doutrina, mas ainda com a mais recente jurisprudência, às declarações de parte – envoltas em diversas peculiaridades e assumindo-se como meio de prova complementar, além de supletivo, por tardio – é atribuído um cunho que se afirma como um plus a acrescer à restante prova já produzida em juízo. Estando já mais afastada a perspetiva inicial de que, em face dos outros meios de prova passíveis de utilização, terá valoração “inferior”, apresentando-se, pois, como prova mais frágil; quer no que respeita à sua valoração, quer ainda quanto à real hipótese de incorrer em redundância, designadamente do já alegado por escrito, quanto à factualidade em discussão.
Ademais, assiste-se já a uma certa divisão no entendimento dos tribunais quanto a estas declarações, com uma corrente a manifestar expressamente que estas declarações “devem ser entendidas e valoradas com algum cuidado(...). As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, e que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.”[24] Pela doutrina, Lebre de Freitas sintetiza o valor deste meio probatório, deixando exposto que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas.”[25]
B. O Segredo Profissional do Advogado
Do recenseamento dos elementos constantes dos autos, após cuidada análise da certidão, em particular da ata, e bem ainda da leitura criteriosa da transcrição das Declarações de Parte prestadas e sobretudo, da audição integral da sua gravação, afigura-se-nos imprescindível o enquadramento teórico do tema.
1. O dever de guardar segredo profissional
O segredo profissional inscreve-se “no património cultural da advocacia”[26], constituindo “um dos pilares em que a advocacia firma a sua dignidade e independência. Mas é também condição da sua existência.”[27]
Este especial dever pressupõe – e exige – uma “relação de causalidade necessária”[28] entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos sigilosos, precisamente “em termos de causalidade adequada.”[29]
Ora, é no nº1 do art. 92º do EOA, que o legislador define o âmbito subjetivo da obrigação de sigilo: o próprio advogado que, no exercício das suas funções, toma conhecimento de (certos) factos. Dúvidas não restarão de que consubstancia uma obrigação daquele que exerce a profissão. Logo, será sempre dever que impende exclusivamente sobre um Advogado.
O EOA e, no que aqui importa, esta sua norma, é aplicável linearmente, como se viu, a Advogados e Advogados-Estagiários[30] inscritos na Ordem dos Advogados, não vinculando – além dos que com estes colaboram – terceiros.
Para aferir se determinada matéria está, ou não, sujeita ao dever de segredo profissional, há que averiguar a natureza dos factos, verificando se os mesmos se enquadram em alguma das alíneas enunciativas daquela norma, ou se caem na cláusula geral estipulada pelo nº1.
A amplitude aplicativa da norma resulta, desde logo, do emprego pelo legislador do vocábulo “designadamente”, que a transforma numa norma aberta, i.e., de caráter que, não sendo taxativo, é, antes, meramente indicativo. Como, aliás, foi explicado na Consulta 1/2009 do então Conselho Distrital de Lisboa[31], sufragando o entendimento do Bastonário Lopes Cardoso: “Sob a fórmula constante do [atual nº1 do art. 92º] do EOA, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. As demais regras previstas nas alíneas da mesma, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação. O sentido da letra de tal disposição, bem como a utilização do advérbio «designadamente», não deixam, a este propósito, grandes margens para dúvidas.” [32]
Salienta-se que a expressão utilizada na formulação desse segmento normativo, no que respeita a “todos os factos” que o advogado é obrigado a guardar segredo no exercício da sua profissão, deverá ser interpretada cum grano salis, e não no seu estrito sentido literal, sob pena de se ultrapassar a ratio do comando legal, esvaziando de sentido o próprio sigilo[33]. Assim, como ensina Sousa Magalhães, “O conceito de «factos» para efeito do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais susceptíveis de alegação, como os próprios documentos”[34].
A exegese implica, pois, um trabalho de equilíbrio e razoabilidade, com início no reconhecimento de que factos há que são transmitidos ao advogado precisamente para que este os leve e transmita, os dê a conhecer a terceiros, sejam outras pessoas ou mesmo processos judiciais[35]. Tal como outros existem que não se encontram, sequer, abrangidos pela obrigação do segredo advocatício.
Impõe-se, pois, determinar ab initio o conteúdo do nomen iuris “segredo”. Ora, a Ordem dos Advogados tem já um considerável filão jurisprudencial[36] que, através do que é designado “triplo crivo”, identifica o que é “segredo”, permitindo traçar o perímetro da norma estatutária. O sigilo dependerá, então:
- Da forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
- Do teor do próprio facto; e
- Das concretas circunstâncias do conhecimento e da revelação.
A natureza da questão exige uma prévia análise casuística, levando a concluir, contudo, no que se acompanha de perto Rodrigo Santiago, que “estarão a coberto do segredo facto ou factos relativamente aos quais a pessoa com quem ele ou eles respeitem tenham um «interesse objectivamente fundado» em que se mantenham reservados.”[37]
2. A concessão de dispensa de sigilo profissional
Sendo certo que o Exmo. Requerente solicita parecer “sobre Existência de Quebra do Dever de Segredo Profissional e …”[38], e ainda “de Nulidade de Arguição e Prova de Factos a ele sujeitos”, deixando claro que “é entendimento da Autora que a exposição (…) na contestação quebra com o estatuído”[39] no EOA, importa fixar as coordenadas axiais da problemática.
2.1. A possibilidade legal de levantamento do sigilo
A excecional possibilidade de desvinculação do Segredo Profissional encontra-se consagrada no nº4 do mencionado art. 92º do EOA, a interpretar rigorosamente no seu sentido literal. Na mesma linha, refletindo o nosso entendimento tradicional, o Regulamento de Dispensa de Sigilo determina, no nº1 do art. 4º, que a autorização de cessação do segredo tem caráter excecional. Ou seja, e a contrario, a regra é a da manutenção do segredo advocatício, pelo indeferimento do levantamento da sua obrigação.
Como não podia deixar de ser. Sendo este o mais importante e característico dever do advogado, na verdade, “uma questão de honra e de dignidade profissional”[40], naturalmente que só poderá ceder em circunstâncias de exceção, verificados que sejam os estritos requisitos legais. Além de que o seu levantamento terá de ser apreciado, e decidido, dentro de precisos e rigorosos limites, escalpelizando a situação e os factos a desvelar, e realizando uma minuciosa subsunção legal. Sempre, atendendo aos superiores interesses a salvaguardar.
Tanto mais que “Uma banalização da desvinculação dos Advogados do dever de guardarem segredo profissional descaracterizaria e desvirtuaria a Advocacia perante a comunidade.”[41] Atente-se: A obrigação de segredo profissional, há muito estabelecida no interesse geral, é indissociável da imagem do advogado. [42] De tal modo que a violação deste especial dever extravasa o Homem e o profissional que o desrespeitou e, com tal atitude, atraiçoou quem confiou em si. Na verdade, “fere uma sociedade inteira, porque retira à profissão, uma das bases sobre que a sociedade se apoia, ou seja, a confiança que a deve cercar.”[43]
É absolutamente determinante que a consciência da amplitude do dever de guardar segredo profissional, i.e., a consciência da sua dimensão ético-profissional, social e mesmo cívica, e bem como das suas efetivas repercussões, esteja a tal ponto imprimida na pessoa do próprio advogado, que se assuma, mais do que como uma regra, como um imperativo de conduta. Que integre e faça parte da essência do advogado e, assim, da profissão que exerce e da forma como a exerce. Como adianta Carlos Pinto de Abreu, “não perdendo, todavia, o horizonte mais vasto que a preservação da imagem pública do advogado implica, como face da mesma moeda que garante e justifica as prerrogativas no exercício da advocacia, nomeadamente o dever de sigilo profissional”[44]. Trata-se do dever-ser do advogado.
2.2. Momento do pedido de desvinculação
O levantamento do segredo advocatício encontra-se subordinado a condição: a prévia autorização do/a Presidente do Conselho Regional, que averiguará as circunstâncias extraordinárias da absoluta necessidade da desvinculação, tendo exclusivamente como fim “a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes” (art. 92º, nº4 do EOA).
A dispensa de segredo profissional tem, pois, forçosamente, de ser solicitada em momento prévio à revelação do segredo, a priori - o que não sucedeu no caso que nos ocupa.
E isto, sob pena de, após a sua divulgação, tal formulação ser desprovida de qualquer sentido. Na verdade, nessa ocasião já não existe segredo, assistindo-se a uma verdadeira impossibilidade de autorização.
Qualquer pedido de levantamento de sigilo efetuado posteriormente à exposição dos factos sigilosos importa que não possa, já, emitir-se decisão – seja de deferimento ou indeferimento. Tendo deixado de haver segredo a dispensar, a situação apresenta-se como um non liquet, implicando a comunicação ao Conselho de Deontologia, por violação do dever.
3. A prova obtida com violação de segredo profissional
A violação do dever de sigilo é geradora de responsabilidade disciplinar do Advogado, além de o fazer incorrer em responsabilidade penal e civil.
No entanto, tem ainda implicações imediatas a nível processual, no campo da prova, encontrando-se a correspondente cominação especificamente prevista no próprio dispositivo. Com efeito, preceitua o nº5 do art. 92º do EOA que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, traduzindo-se numa expressa proibição de valoração da prova. “O que significa que, quando se emprega o termo «prova» neste contexto, se pensa no resultado obtido através de um determinado meio de prova.”[45]
A prova assim obtida é materialmente proibida constituindo, consequentemente, prova ilícita[46]. Será, então, nula, com sujeição ao regime geral das nulidades processuais[47] sempre que “possa influir no exame ou decisão da causa” (art. 195º, nº1 CPC).
Rodrigo Santiago aborda o tema nas suas Considerações Acerca do Regime Estatutário do Segredo Profissional dos Advogados, adiantando que, “da perspetiva processual – seja ela civil, seja penal, seja estatutária, ou qualquer outra – o dever de guarda de segredo profissional corporiza aquilo que nesta sede a doutrina vem chamando de «regra de proibição de produção de prova»”, rematando que “Como quer que seja ou deva ser: o referido nº5 do artigo [92º atual] constitui comando da maior importância pela respetiva aplicação a vastos âmbitos do processo civil e do penal, «heteronomamente determinada».”[48]
III. Pronúncia
Delineada a necessária perspetiva teórica das questões, passa a apreciar-se a situação apresentada.
Em causa está, pois, a eventual revelação, durante a prestação de depoimento de parte de Advogada a litigar em causa própria, de matéria sujeita a sigilo profissional relacionada com “declarações” existentes nos autos judiciais. Sucede que, conforme consta do extrato da decisão proferida no pedido – enviado ao Tribunal – foram efetivamente expostos, previamente ao pedido de dispensa do segredo advocatício – e, naturalmente, antes de obtida decisão da Exma. Senhora Presidente do CRC sobre a questão – factos sigilosos. Consequentemente, a mesma já não se encontra a coberto do sigilo profissional, tendo deixado de existir, na verdade, qualquer segredo quanto àquele segmento.
Acresce que, dos elementos que instruíram o pedido de emissão do presente parecer constam as declarações de parte prestadas pela Sra. Advogada cuja conduta se encontra sob sindicância, resultando rigorosamente concretizados os termos em que aquelas ditas declarações se traduzem e, assim, permitindo realizar criteriosa e exaustivamente o respetivo enquadramento em sede de sujeição ao dever de guardar segredo. Renovando o sobredito juízo a que se alude, a conclusão é, pois, no sentido da violação do sigilo profissional.
IV. DECISÃO
Com fundamento em todo o exposto, entende-se que a situação verificada integra a previsão da norma do nº5 do art. 92º do EOA, que determina que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”. Isto, atendendo a que a Exma. Senhora Advogada revelou, durante as suas declarações de parte em processo no qual Advoga em causa própria, matéria a coberto do especial dever de segredo profissional sem a prévia e imprescindível autorização da Exma. Senhora Presidente do CRC.
V. CONCLUSÕES
1. É absolutamente pacífico que em sede civil o Advogado possa litigar em causa própria, passando a assumir, também, a posição de parte processual;
2. É absolutamente pacífico que, como sucede com qualquer outra parte processual, possa ser requerida as declarações de parte de Advogado em causa própria;
3. É absolutamente pacífico que a revelação de assuntos submetidos ao dever de segredo advocatício tem de ser precedida de pedido de dispensa de segredo profissional, sob pena de cair na previsão do art. 92º, nº5 do EOA;
4. Na situação em apreço, verifica-se que nas declarações de parte prestadas por Advogada a litigar em causa própria foi revelada matéria que se encontrava submetida ao especial dever de segredo, pelo que integra as consequências da citada norma;
5. Cabe, pois, ao Tribunal, a decisão final e a harmonização dos dispositivos em causa (art. 92º, nº5 do EOA e art. 466º, nº3, in fine, do CPC)
[1] Lei 145/2015, de 09 de Setembro.
[2] Empossada em 24.01.2023.
[3] Lei 40-A/2016, de 22 de Dezembro.
[4] “1. Os magistrados judiciais podem advogar em causa própria, do seu cônjuge ou descendente.
2. Nos casos previstos no número anterior os magistrados podem praticar os atos processuais por qualquer meio, não estando vinculados à transmissão eletrónica de dados.”
[5] “1. Os magistrados do Ministério Público podem advogar em causa própria, do seu cônjuge, unido de facto e descendentes.
2. Nos casos previstos no número anterior os magistrados podem praticar os atos processuais por qualquer meio, não estando vinculados à transmissão eletrónica de dados.“
[6] Lei 10/2024, de 19 de Janeiro
[7] Do Segredo Profissional – Ensaio, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1939, pg. 97.
[8] DL 33.547, de 23 de Fevereiro de 1944
[9] Parecer nº26/PP/2012-G, de 23.22.2012, relatado por Pires de Almeida.
[10] Representação Forense e Arbitragem, Coimbra Editora, 2001, pg. 20, nota 16.
[11] Parecer R-64/07, de 22.05.2007.
[12] Novo Dicionário AURÉLIO da Língua Portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, apud o referido Parecer relatado por Alberto Jorge Silva.
[13] Direito Processual Civil, 1967, 1º, pgs 361.
[14] Publicada no Diário da República, I Série A, n.º 57/78.
[15] “1. A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.
2. A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.”
[16] Art. 92º, nº5 do EOA.
[17] Estrela Chaby, O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pgs. 49 e 50.
[18] As Malquistas Declarações de Parte, Revista Julgar online, Julho de 2015.
[19] “Art. 466º, “3. O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”
[20] Op. cit, pg. 21.
[21] Um Novo Código de Processo Civil? - Em Busca das Diferenças, Ed. Vida Económica, 2014, pgs 70 a 76 e 86 a 99. Nemo Debet Esse In Propria Causa? Sobre a (in)coerência do sistema processual a este propósito, Revista Julgar, Número Especial 2013, Coimbra Editora, publicado em Julho de 2014, pgs 34 e 36.
[22] Proc. 4059/15.8T8LSB-4, relatado por Leopoldo Soares.
[23] Proc. 211/12.6TVLSB.L1-7, relatado por Conceição Saavedra.
[24] Ac. Tribunal da Relação do Porto, de 15.09.2014, Proc. 216/11.4TUBRG.P1, relatado por António José Ramos.
[25] A Acção Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2014, pg. 278.
[26] Fernando Fragoso Marques, ROA, Ano 59, Ano vol. I, pg. 379.
[27] Idem.
[28] Fernando Sousa Magalhães, EOA Anotado e Comentado, Almedina, 2015, 10ª ed., pg. 138 (nota 6).
[29] Orlando Guedes da Costa, Direito Profissional do Advogado - Noções Elementares, Almedina, 8ª Edição Revista e Atualizada, pg. 389.
[30] E a todos os que com estes colaboram.
[31] Relatada por Rui Souto, e disponível em www.oa.pt
[32] Do Segredo Profissional na Advocacia, CELOA, 1997, pgs. 31 e 32.
[33] Parecer nº49/PP/2011, e O Dever de Guardar Sigilo Profissional – Uma Aproximação Prática, Comunicação do VI
Congresso dos Advogados Portugueses, Rui Souto, www.oa.pt
[34] Op. cit., pg. 138, nota 11.
[35] Neste sentido, o Parecer nº 133/05, do Presidente do Conselho Distrital de Lisboa.
[36] Do Conselho Regional de Lisboa.
[37] ROA, 57, Vol I, pg. 237.
[38] A fls. 2 dos presentes autos.
[39] A fls. 3 dos presentes autos.
[40] Amílcar de Melo, Da Advocacia, ed. Almeida & Leitão, Lda., 2013, pg. 164.
[41] Parecer nº 44/PP/2009-G, do Conselho Geral, de 10.02.2010, Relatado por Ana Costa de Almeida.
[42] Maria Clara Lopes, Segredo Profissional, BOA nº10, pg. 13.
[43] Idem. Os destaques são da autoria de Maria Clara Lopes.
[44] Carlos Pinto de Abreu, Consulta nº29/2009, Pareceres do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Triénio 2008-2010, Volume I, pg. 363, publicado pelo CDL.
[45] Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pg. 55.
[46] V.g., por todos, o Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.06.2012, Relatado por Henrique Antunes, www.dgsi.pt
[47] José Lebre de Freitas, et al., Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. II, pg. 536.
[48] Op. cit., pg. 233.
Marta Ávila
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