Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 14/PP/2024-C

PARECER 14/PP/2024-C

 

 

Por comunicação escrita dirigida a este Conselho, veio a Mmª. Juiz de Direito do Juízo de Competência Genérica de O..., no âmbito do processo de prestação de contas n.º 309/19.0T8O..-A, que corre termos no Juiz 2 daquele Juízo, requerer a emissão de parecer, no sentido de se apurar se existe conflito de interesses na representação, em simultâneo, da acompanhante e do maior acompanhado, pela mesma mandatária.

 

Para melhor esclarecimento e contextualização do objecto do presente parecer, transcrevemos infra o conteúdo do despacho que o solicitou:

 

 

“Nos autos foi suscitada a questão do conflito de interesses da II. Mandatária da Acompanhante face à junção de procuração outorgada pela mesma Acompanhante em nome da Acompanhada.

Os autos em curso são de prestação de contas anuais da Acompanhante, relativas ao património por ela gerido, da Acompanhada.

Trata-se a nossa ver de autos que, inseridos na tramitação própria do regime do Maior Acompanhado, não seguem sem mais o regime de “processo contraditório” do art. 941° do Código de Processo Civil.

Na verdade, tendo presentes os interesses em presença há que ter em conta que ao processo especial de acompanhamento de maiores aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de decisão e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art. 891. °, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Porém, cautelarmente e vista a litigiosidade impressa nos autos, entendemos ser de solicitar ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados parecer urgente no sentido de apurar se existe conflito de interesses na representação em simultâneo pela II. Mandatária da Acompanhante também da Representada.

Para tanto, com certidão da sentença dos autos principais e bem assim dos presentes autos, solicite parecer em não mais de 30 dias.” 

 

 

A matéria sobre a qual versa o pedido de parecer formulado enquadra-se no âmbito das questões de carácter profissional, abrangidas pelo disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro, na sua versão actualizada, (doravante designado, de modo abreviado, por E.O.A ou Estatuto), que se insere na delimitação territorial do Conselho Regional de Coimbra.

 

Sendo que, na esteira do entendimento acolhido no seio da Ordem dos Advogados, as questões de carácter profissional são todas as que assumam natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, emergentes, em especial das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.

 

O Conselho Regional de Coimbra é, assim, material e territorialmente competente, impondo-se a emissão do parecer solicitado.

 

Isto posto, examinado o pedido de parecer, cumpre responder à seguinte questão:

               

Um(a) mesmo Advogado(a) pode assumir, simultaneamente, a representação de um acompanhado, e do acompanhante - que àquele tenha sido nomeado no processo de acompanhamento de maior - em consequência e por força de mandato atribuído no âmbito do apenso de prestação de contas?

 

I.                    DO CONFLITO DE INTERESSES

A exposição apresentada reconduz-se, abstractamente, a uma questão de conflito de interesses no exercício da advocacia, regida, estatutariamente, pelo artigo 99.º do E.O.A.

 

A ratio do citado normativo abarca a preservação dos valores da independência, confiança e lealdade, fundamentais e imprescindíveis ao exercício da actividade, constituindo expressa manifestação do princípio geral consagrado no artigo 89.º do E.O.A., segundo o qual, o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

 

Com efeito, no exercício da profissão, o Advogado está vinculado ao cumprimento do vasto leque de deveres plasmados no seu Estatuto, impondo-se-lhe uma observância conscienciosa, contínua e intransigente, absolutamente indispensável a assegurar e garantir a dignidade e o prestígio da profissão.

 

Sendo pacífico o entendimento de que, para aferir da (in)existência de um conflito de interesses, se revela mister a análise do caso concreto, entendeu o legislador consagrar, desde logo, um universo de situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque, em concreto e no imediato, se verifique um conflito de interesses, mas porque, objectivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

 

Assim, dispõe o artigo 99.º do E.O.A, que se transcreve, o seguinte:

 

Artigo 99.º

Conflito de Interesses

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

Face ao exposto, à luz das enunciadas previsões normativas contidas sob os números 1 e 2 do invocado artigo 99.º temos que o Advogado deve recusar o patrocínio:

- De questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;

- De questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;

- De questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

 

Resulta, ainda, do inciso que compõe o n.º 3 do citado artigo que o Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

 

Por outro lado, dispõe a norma vertida sob o n.º 4 que, se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, ou se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, o Advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito; e sob a que compõe  o n.º 5, que o Advogado(a) deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente.

 

Da concatenação de tais normas resulta, inequivocamente, que se uma tal disciplina visa, em primeira linha, defender a comunidade em geral e os clientes em particular de eventuais actuações ilícitas de advogados menos escrupulosos - conluiados, ou não, com outros clientes -  não pode deixar de considerar-se que a mesma tem, igualmente, por finalidade, a defesa do Advogado, desta feita do labéu da suspeita de uma actuação tendente à prossecução de qualquer outro fim que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.

 

Importa, outrossim e de forma congruente com o entendimento vindo de expressar, realçar o facto de a matéria do conflito de interesses ser, também, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, sempre que colocado numa concreta situação susceptível de conformar um tal quadro, avaliar se o mandato cuja atribuição subsiste/perspectiva não esbarra/esbarrará noutro conferido, ao ponto de se verificar um objectivo impedimento ao exercício livre e sem constrangimentos da sua actividade, tal como exigido pelas normas que compõem o seu Estatuto Profissional.

 

A acrescer, regressando ao caso que aqui nos ocupa, dispõe o artigo 150º do Código Civil que o acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o acompanhado (nº1) e deverá requerer ao tribunal a autorização das medidas tidas por convenientes quando a sua actuação seja necessária numa situação em que tal conflito surja (nº 3 do citado artigo).

 

E sempre que exista conflito de interesses entre o acompanhante e o maior acompanhado, este dever ser representado, na acção, por um curador especial – cfr. artigo 17.º, n.º 3, do CPC.

 

É, pois, à luz destes normativos que deve ser encontrada a solução para dar resposta ao parecer solicitado.

 

Vejamos:

 

II.                  DA NATUREZA E CONEXÃO DOS PROCESSOS AQUI EM CAUSA

 

O processo de acompanhamento de maior é um processo especial, de natureza formalmente contenciosa e substancialmente de jurisdição voluntaria – cfr. artigos  nº1, do 891º, nº2, do 986º, 987º e 988º, do CPC -, com carácter urgente, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (v. art. 891º a 905º, do CPC) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que estabelecido se encontra para o processo comum (v. nº1, do art. 549º, de tal diploma).

O acompanhamento de maior só é decretado se estiverem preenchidas duas condições: uma condição positiva (ter de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e para aplicar uma das medidas enumeradas no artigo 145.º do Código Civil) e uma condição negativa (o Tribunal não deve decretar aquela medida se os deveres de cooperação e assistência forem suficientes para acautelar as necessidades do maior).

Em face do disposto no artigo 145º do Código Civil, o regime do acompanhamento goza de maior flexibilidade, devendo respeitar, sempre que possível, a vontade do beneficiário e a sua autodeterminação e reduzir-se ao necessário, tendo o Tribunal a possibilidade de escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que melhor possam contribuir para alcançar o seu objectivo.

No entanto, tal regime não deixa de contemplar as situações de absoluta incapacidade do beneficiário, pelo que, em casos-limite e excepcionalmente, continuam a ser admitidas medidas de substituição, como o instituto da representação geral ou administração total de bens.

 

 

A acrescer, resulta da conjugação dos artigos 140º e 143º, ambos do Código Civil, que o critério a observar na designação do acompanhante é o do “imperioso interesse do beneficiário”, que se reporta aos direitos humanos e liberdades fundamentais da pessoa, nomeadamente, aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia.

Na designação do acompanhante, a lei atribui, assim, preferência à escolha feita pelo próprio acompanhado/beneficiário, pois não só a dignidade da pessoa humana implica que se respeite a sua vontade como uma pessoa da confiança do acompanhado é, por regra, aquela que está em melhores condições para promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente.

Só não será de respeitar a escolha do acompanhado se as suas faculdades mentais não lhe permitirem fazer uma tal avaliação, isto é, se não tiver capacidade para compreender e avaliar a realidade que o cerca, ou se a pessoa por ele escolhida não se revelar idónea para o exercício do cargo.

Cabendo, assim, ao tribunal, de acordo com o critério do “imperioso interesse do beneficiário”, confirmar, ou não, a escolha do próprio acompanhado ou do seu representante legal ou, na falta de escolha por parte destes, designar o acompanhante ou acompanhantes, que devem estar em condições de exercer um conjunto de poderes-deveres de cuidado e diligência, dirigidos a promover, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do Código Civil, o bem-estar e a recuperação do acompanhado, na concreta situação considerada.

 

Já no que concerne ao processo de prestação de contas, o regime jurídico do maior acompanhado não só estabelece medidas de controlo das decisões do acompanhante, como prevê expressamente a imposição de prestação de contas pelo acompanhante, se tal se vier a revelar necessário - cfr. art.º 151º, do Código Civil.

 

Assim, quando cesse a sua função ou, na sua pendência, quando assim seja judicialmente determinado, o acompanhante tem de prestar contas ao acompanhado e ao tribunal (artigo 151.º, n.º 2 do Código Civil).

 

Trata-se, pois, de um processo especial que, na situação que aqui nos ocupa, corre por apenso aos autos do acompanhamento de maior, onde é sindicada toda a actuação do acompanhante relativa à gestão e administração do património do acompanhado.

 

 

III.                DA (IN)EXISTÊNCIA DE CONFLITO DE INTERESSES NO CASO EM CONCRETO

 

Como se pode extrair das peças processuais juntas aos presentes autos (fls. 134 a 139), a administração e gestão do património da acompanhada, executada pela acompanhante, é colocada em causa, suscitando-se a questão de esta última utilizar dinheiro da acompanhada para seu próprio benefício.

 

Com efeito, no âmbito do identificado  processo de prestação de contas e entre o mais, mostra-se questionado o pagamento de serviços de advocacia feito à mandatária da acompanhante, à custa e com meios da acompanhada – questão que, inquestionavelmente, se constitui como matéria enquadrável, entre o mais, na previsão do conflito de interesses.

 

 

Face a tal concreta problemática é patente a existência de interesses antagónicos entre a acompanhante e a maior acompanhada, relacionados com a administração e gestão do património desta, designadamente porque daquela alegada conduta poderão resultar consequências para a acompanhante, como seja, e desde logo, a remoção do cargo que ocupa.

 

Em suma, por ser manifesta a existência de conflitos de interesses entre os intervenientes processuais acompanhada e acompanhante, inexistem condições para a manutenção de qualquer das representações.

 

E se assim é, pelas graves implicações que a assunção simultânea de tais patrocínios desferem na obrigação da senhora Advogada estar acima de qualquer suspeita, garantindo o cumprimento dos deveres de isenção, independência, salvaguarda do dever de sigilo profissional, decoro e probidade que lhe são impostos, outra não pode ser a conduta da senhora Advogada que não seja a  de renunciar, de imediato, aos mandatos que lhe foram conferidos por cada uma das partes, no processo de prestação de contas, e uma vez que os efeitos de tais renúncias se estenderão aos demais, designadamente  ao processo principal e a quaisquer outros apensos.

 

Pois que, no caso em apreço, encontram-se preenchidas as circunstâncias plasmadas no artigo 99º do EOA e no artigo 150.º do Código Civil, existindo um patente conflito de interesses na representação de ambas as partes.

               

CONCLUSÕES

I.                    A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia se refere, encontra-se regulada no artigo 99º do E.O.A., sendo as normas que o incorporam expressa consagração dos princípios da lealdade, isenção, independência, confiança e decoro, quais valores fundamentais no exercício da advocacia.

II.                  O escopo visado pelo indicado conjunto de normas é, para além da defesa da comunidade em geral e dos clientes em particular ante eventuais actuações ilícitas de Advogados, o da defesa do próprio Advogado, desta feita do labéu da suspeita de uma actuação tendente à prossecução de qualquer outro fim que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.

III.                Na análise casuística sobre a existência de conflito de interesses deve ser considerado, entre o mais, o referencial exemplificativo previsto no artigo 99º do EOA, cujo elenco de situações impõe o dever de recusa do patrocínio, não porque em concreto e no imediato o mesmo se verifique, mas porque, objectivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

IV.                Nos termos do disposto no artigo 150.º do Código Civil, o(a) acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o(a) acompanhado.

V.                  Existe conexão relevante, para efeitos de subsunção à hipótese geradora de conflito de interesses, entre um processo de maior acompanhado e um processo de prestação de contas, que corre por apenso àquele.

VI.                É patente a existência de interesses antagónicos entre acompanhante e maior acompanhado, relacionados com a administração e gestão do património desta, num processo de prestação de contas.

VII.              Por se verificar um claro conflito de interesses, um(a) mesmo (a) Advogado(a) não pode assumir, simultaneamente, num processo de prestação de contas apenso ao principal de acompanhamento de maior - ao qual se estendem os mandatos atribuídos - a representação forense do(a) acompanhado(a) e do(a) acompanhante.

 

 

----------------------------------------------------------------------------------

 

Os poderes atribuídos aos Conselhos Regionais para a emissão de pareceres devem ser conciliados com a competência específica conferida a outros órgãos da estrutura da Ordem dos Advogados, como é o caso dos Conselhos de Deontologia, a quem cabe o exercício do poder disciplinar nos termos do artigo 58º do E.O.A..

                O exercício da indicada competência ocorre, como se disse, por via da resposta às questões profissionais que lhe são colocadas.

                Contudo, por respeito ao princípio da legalidade, os Conselhos Regionais devem comunicar aos respectivos Conselhos de Deontologia, para os efeitos tidos por convenientes, os casos identificados como condutas passíveis de configurar violação de deveres e princípios ético-deontológicos.

                Ora, no caso que aqui nos ocupa, emerge a verificação de uma situação de conflito de interesses, abstractamente, apta a configurar uma conduta disciplinarmente censurável.

 

Pelo que, impõe-se a extracção de certidão do presente parecer, acompanhado pela totalidade das peças processuais que serviram à instrução do mesmo, e a sua remessa ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os efeitos tidos por convenientes.

 

É este, salvo melhor entendimento, o nosso parecer.

 

Sandra Gil Saraiva

Topo