Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 21/PP/2024-C

Processo de Parecer n.º 21/PP/2024-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

Por comunicação escrita, datada de 08 de outubro de 2024, remetida através de correio eletrónico, dirigida à Senhora Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, Dra. Teresa Letras, a Senhora Advogada Dra. J..., portadora da cédula profissional 6…C com escritório na Rua …, solicitou a emissão de parecer que coloca nos seguintes termos e que se transcreve:

 

“1. A aqui expoente exerce funções de advogada em regime de subordinação jurídica, numa empresa privada, ou seja, atua ao abrigo de contrato de trabalho com a referida empresa;

2. No âmbito do exercício das suas funções, pretende saber se não se encontra no âmbito de conflito de interesses do art. 99.º do EOA, representar os colaboradores da empresa, em ações judiciais contra a AIMA, a pedido da entidade patronal.

3. Neste sentido, pretende acautelar não só os interesses dos colaboradores com processos pendentes na AIMA, como também da entidade patronal, razão pelo qual motiva o presente pedido de parecer, tendo em conta que em virtude da subordinação jurídica deve exercer a sua atividade no exclusivo interesse da entidade empregadora.”

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 54.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante designado EOA) o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, tem competência para a emissão do parecer solicitado, porque configura uma questão de carácter profissional diretamente submetida à sua apreciação, pelo que, cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada nos termos que se seguem:

 

A exposição apresentada relaciona-se com a questão do conflito de interesses, no que ao exercício da advocacia diz respeito, regido estatutariamente no artigo 99º do EOA, conforme resulta desde logo no enquadramento previamente efetuado pela Exma. Advogada consulente que pretende, a título preventivo, aferir junto deste Conselho Regional, se ao aceitar o patrocínio dos colaboradas da empresa - onde exerce funções de advogada em regime de subordinação jurídica ao abrigo de um contrato de trabalho - em ações judicias contra a AIMA, a pedido da entidade patronal, se coloca numa situação de conflito de interesses.

 

Ora o objetivo do citado normativo (artigo 99.º do EOA) integrado no Título III sob a epígrafe “Deontologia Profissional”, Capítulo II que versa sobre a relação entre advogados e clientes, assenta na preservação dos valores de independência, confiança e lealdade, fundamentais no exercício da advocacia, e constituiu expressa manifestação do princípio geral estabelecido no artigo 89º do EOA, de acordo com o qual, o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

O Advogado, no exercício da profissão, está assim, vinculado ao cumprimento do vasto leque de deveres plasmados no seu Estatuto, impondo-se-lhe uma observância conscienciosa contínua e intransigente, absolutamente indispensável a assegurar e garantir a dignidade e o prestígio da profissão.

Sendo pacífico o entendimento de que para aferir da (in) existência de um conflito de interesses se revela necessária a análise do caso concreto, entendeu o legislador consagrar, desde logo, um universo de situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique um conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

Dispõe o artigo 99.º do EOA (e que se transcreve):

 

Artigo 99.º

Conflito de Interesses

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

Ora, à luz do enunciado normativo, as situações previstas nos números 1 e 2 determinam que o advogado deve recusar o patrocínio:

De questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;

De questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;

De questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

Resulta ainda do inciso que compõe o nº 3 do citado artigo que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

Por outro lado, dispõe o nº 4 que, se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como, se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

Segundo o n.º 5, o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, procurando-se, assim, defender a comunidade e os clientes dos advogados em especial, de atuações ilícitas destes, conluiados ou não, com outros clientes, bem como, defender o advogado da hipótese de sobre ele recair a suspeita de uma atuação visando qualquer outro fim, que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.

 

Da concatenação de tais normas resulta, inequivocamente, que se uma tal disciplina visa, em primeira linha, defender a comunidade em geral e os clientes em particular de eventuais atuações ilícitas de advogados menos escrupulosos - conluiados, ou não, com outros clientes - não pode deixar de considerar-se que a mesma tem, igualmente, por finalidade, a defesa do advogado, da suspeita de uma atuação tendente à prossecução de qualquer outro fim que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.

 

No entanto, a matéria do conflito de interesses é também uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, pois, avaliar se o novo mandato não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua atividade, conforme exigido pelas normas ínsitas no Estatuto Profissional.

É, pois, à luz destes normativos que deve ser apreciada a questão em apreço.

 

O que se impõe ajuizar no caso concreto é se ao assumir a representação dos colaboradores da empresa - onde exerce funções de advogada em regime de subordinação jurídica ao abrigo de contrato de trabalho - em ações judiciais contra a AIMA, a Exma. Advogada consulente se coloca numa situação de conflito de interesses, conforme previsão contida no artigo 99.º do EOA.

 

Qualquer situação de conflito de interesses deverá ser sempre analisada por reporte a uma ação/causa ou assunto anteriormente tratado, e na/o qual a Senhora Advogada tenha tido já intervenção (qualquer intervenção) como frisa a lei, ou, conforme estatui o segundo segmento da norma contida no n.º 1 do artigo 99.º do EOA, quando se esteja perante uma questão que seja conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária.

 

Constitui entendimento jurisprudencial da Ordem dos Advogados que “conexão” significa “relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valoração de certos factos.”

 

O citado artigo do EOA prevê, pois, que a proibição de patrocínio ocorre em causas em que o (a) Advogado (a) já tenha intervindo em qualquer qualidade ou que sejam conexas com outras em que tenha representado a parte contrária, contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente e, em causas que possam colocar em crise o sigilo profissional relativamente a assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

 

Como defende Carlos Mateus, Ob. cit. “Deontologia Profissional - Contributo para a formação dos Advogados Portugueses” pág. 121 “(…) O Advogado não está inibido de patrocinar uma acção, seja de que natureza for contra um ex-cliente, desde que: i) Já não o represente noutra acção ainda pendente; ii) Não tenha intervindo na nova causa em qualquer outra qualidade; iii) A nova causa não seja conexa com outra em que tenha representado o ex-cliente; iv) Não ponha em crise o segredo pro?ssional sobre assuntos do seu anterior cliente, ou que do conhecimento destes assuntos resultem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente”.

 

Revisitando a factualidade enunciada, extrai-se que as ações judiciais que a Exma. Advogada consulente pretende patrocinar contra a AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo, conjeturam questões e situações relacionadas com documentação /processos de legalização de cidadãos estrangeiros, e nas quais, a empresa onde exerce funções de Advogada não terá, em princípio, qualquer intervenção processual. Neste conspecto, e perante uma tal factualidade poderia, em tese, assumir-se que as questões que a Exma. Advogada equaciona patrocinar não se subsumem a qualquer das previsões plasmadas no artigo 99.º do EOA, ou outras, de cuja verificação se vislumbre poder emergir a existência de conflito de interesses.

 

Parece-nos, no entanto, que uma tal visão pode assumir-se como excessivamente redutora, uma vez que, desenvolvendo-se um exercício de prognose mais amplo, não pode deixar de considerar-se que a intervenção que a Exma. Advogada pretende levar a cabo pode potenciar uma situação de conflito de interesses. Com efeito, equacione-se a hipótese de a empresa - para a qual prestam trabalho quer a Senhora Advogada Consulente, quer os trabalhadores a que hão-de respeitar as ações instauradas contra a AIMA – vir a ser, por qualquer razão, chamada a intervir no pleito judicial que oponha o interessado/ trabalhador à AIMA ou noutro que com o mesmo seja conexo. Num tal quadro hipotético, ressalta desde logo a circunstância de à Senhora Advogada Consulente que exerce a respetiva atividade ao abrigo de contrato de trabalho ser exigível o exercício de funções atinente à defesa dos interesses da sua entidade patronal – seja por via de representação judicial e/ou extrajudicial, circunstância que, como é bom de ver, face à prévia assunção de patrocínio do trabalhador que é parte no pleito, pode fazer eclodir, de imediato, uma situação de conflitos de interesses.

 Ora, ocorrendo um tal conflito de interesses, a Senhora Advogada, não estará em condições de exercer a sua atividade, podendo até considerar-se a possibilidade de vir a ficar numa situação de objetiva impossibilidade de prestação de trabalho.

Com efeito, atento o vínculo que mantém com a empresa sua entidade patronal, a Senhora Advogada poderá vir a ser colocada numa situação de objetiva impossibilidade de desempenho pleno de funções, na justa medida em que, atenta a imposição do n.º 4 do artigo 99.º do EOA – a de cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito do conflito que entre eles surja, não poderá dar continuidade à execução do mandato que lhe tenha sido conferido para defesa dos interesses da sua entidade patronal. Tudo por exigência do estrito cumprimento dos deveres deontológicos que impendem sobre a Senhora Advogada, designadamente, o dever de independência e isenção (cfr. artigo 89º do EOA), o dever de defesa dos interesses da cliente (cfr. artigo 97.º do EOA) e de um modo geral o dever de pautar toda a sua atuação pelo cumprimento das regras impostas pelo EOA.

 

Face ao que se deixou dito e perante a situação exposta, a Exma. Advogada deverá ter particular atenção e cuidado na verificação da existência de condições que lhe permitam aceitar o patrocínio de questões que, antecipada e previsivelmente, possa potenciar, ou potenciem, situações de conflito de interesses.

 

 

Com efeito, nunca será demais sublinhar que, para se concluir pela existência de um conflito de interesses à luz do preceituado no artigo 99º do EOA, não se impõe a sua efetiva verificação, bastando-se, a comprovação da conexão do assunto em causa e/ ou a mera suscetibilidade de ainda que abstratamente a situação configurada ser potenciadora de violação dos deveres deontológicos do Advogado.

 

Conclusões:

I.                    A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente sob o artigo 99.º do E.O.A, resulta da confluência e consagração dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, tendo-se por entendimento pacífico que a respetiva regulação deriva expressamente do princípio geral da independência, consagrado no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.

II.                  A matéria do conflito de interesses é, também, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, sempre que colocado numa concreta situação suscetível de conformar um tal quadro, avaliar se o mandato cuja atribuição subsiste/ perspetiva não esbarra/esbarrará noutro conferido, ao ponto de se verificar um objetivo impedimento ao exercício livre e sem constrangimentos da sua atividade, e tal como exigido pelas normas que compõem o seu Estatuto Profissional.

III.                Ainda que para aferir da (in) existência de um conflito de interesses se revele fundamental a análise do caso concreto, o legislador optou por, ainda assim, consagrar um universo de situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique um conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

IV.                Numa situação em que um(a) Advogado(a) equaciona patrocinar colaboradores da empresa onde exerce a sua atividade profissional ao abrigo de contrato de trabalho, em ações judiciais contra a AIMA, não se subsuma imediata e diretamente a nenhuma das hipóteses previstas no artigo 99.º do EOA, não pode deixar de ser equacionada a hipótese de, vindo a ser espoletada a intervenção da empresa na ação a instaurar ou noutra que lhe venha a ser conexa, o (a) Advogado(a) que a favor desta e ao abrigo de contrato de trabalho desenvolve a sua atividade, vir a ser colocado(a) numa situação de objetiva impossibilidade de desempenho pleno de funções, atento o dever de cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito do conflito que entre eles surja (n.º 4 do artigo 99.º do EOA).

V.                  A Advogada consulente deverá, pois, ter particular atenção e cuidado na verificação da existência de condições que lhe permitam aceitar o patrocínio de questões que, antecipada e previsivelmente, possam potenciar, ou potenciem, situações de conflito de interesses.

 

É este, salvo melhor entendimento, o nosso parecer.

 

Luisa Peneda Cardoso

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