PARECER Nº 22/PP/2024-C
PROCESSO DE PARECER Nº22/PP/2024-C[1]
I. Relatório
1. Por comunicação da Exma. Senhora Bastonária da Ordem dos Advogados, de 20.09.2024, foi dirigido à Exma. Senhora Presidente do Conselho Regional de Coimbra (CRC), o órgão competente para o efeito, expediente através do qual o Juízo de Competência Genérica do S... - Tribunal Judicial da Comarca de V... solicita, sem mais, emissão de parecer “sobre se a junção aos autos dos documentos que se anexam (redigidos em francês e respectiva tradução para português) pode estar a violar ou não o segredo profissional dos advogados”;
2. Em 24.09.2024 a Exma. Senhora Presidente deste Conselho proferiu despacho que constata que “Nem das cópias dos documentos disponibilizados pelo Tribunal, nem do ofício que os capeia é possível extrair que tipo de processo está em causa, qual é o respectivo objecto, quem são as partes, quem são as pessoas indicadas nas comunicações, quem juntou os documentos, em que circunstâncias e para prova de quê”, determinando, em consequência, a transmissão àqueles autos das identificadas informações, dado que, sendo “tais elementos (…) absolutamente essenciais à apreciação da questão colocada”, apenas na sua posse o CRC reunirá as condições imprescindíveis à emissão do Parecer;
3. Em 30.10.2024 respondeu aquele Tribunal nos seguintes termos:
“Em causa está um processo crime, no qual é imputada à arguida a prática de um crime de abuso de confiança agravado (…)
As pessoas identificados nas comunicações – email’s – são:
E-mail datado de 10.02.2021
- Remetente: Mê...: advogado suíço da arguida;
- Destinatário: Dr. Em...: advogado português da arguida;”
- Destinatária: Teresa...: arguida.
E-mail datado de 20.11.2020
- Remetente: Mê...: advogado suíço da arguida;
- Destinatária: Teresa...: arguida.”[2];
4. Adianta ainda ter “sido a arguida, por sua vez, que requereu a junção das referidas comunicações aos autos, para prova da falta do elemento subjetivo do tipo ilícito de crime que lhe está a ser imputado.”;
5. Da “Ata de Audiência de Discussão e Julgamento” de 10.07.2024, que integra os presentes autos, resulta que as comunicações eletrónicas em causa foram juntas pela arguida, em tal diligência, através da sua Mandatária;
6. De onde sobressai que não foram carreadas ao processo diretamente por aquela, de motu proprio, eventualmente, até, mediante requerimento elaborado e enviado por si;
7. Na súmula da intervenção da Senhora Advogada que a representa foi feito constar que “Relativamente aos documentos, a arguida apenas só juntou aos autos a tradução dos dois e-mails, que na sua perspetiva relevam para o processo”;
8. O Parecer em análise foi solicitado atendendo a que “todos os intervenientes e o M.P. estão de acordo que terá o Tribunal de se dilucidar se efetivamente poderá ou não com a junção aos autos destes documentos traduzidos estar a violar-se ou não o segredo profissional de advogados”, e visto que “os e-mails em causa e os seus anexos foram enviados, segundo cremos, por advogado suíço”;
9. Quanto ao email de 20.11.2020, tem este por assunto “seu dossier”, configurando uma normal comunicação enviada por Advogado a um seu cliente com a finalidade de o informar que já estudou documentação disponibilizada, e transmitindo a sua opinião sobre o assunto que lhe foi confiado;
10. Este Senhor Advogado suíço remeteu, ainda, em 10.02.2021, email ao Mandatário da arguida em Portugal, tendo dado conhecimento do mesmo à sua cliente, ao colocá-la, aquando do respetivo envio, em Cc – o que significa que ambos receberam a mensagem, já que foi enviada, em simultâneo, aos dois;
11. Nessa comunicação menciona aquele Colega estrangeiro que, “na sequência de videochamada” com o representante português da sua cliente, envia “uma cópia da (…) [sua] mensagem de correio eletrónico dirigida à Sra. da Teresa…”, informando que lhe deu “a (…) [sua] opinião sobre a questão do montante atribuído pelo fundo de pensões do seu falecido companheiro”; envia “também o documento referido na (…) [sua] carta [email], ou seja, o regulamento das contas de livre passagem da Fundação de Livre Passagem do BCV (Banque cantonale vaudoise)”; e, “Por último, (…) a Lei Federal sobre Previdência Profissional, de Sobrevivência e de Invalidez (LPP)”, concluindo que “Esta é a base jurídica suíça que rege os fundos de pensões.”;
12. Tais emails contêm, em rodapé e em letras muitíssimo pequenas, a seguinte advertência: “Esta mensagem eletrónica destina-se exclusivamente ao seu destinatário e pode conter informações confidenciais e/ou protegidas pelo sigilo profissional do advogado”[3];
13. O presente pedido de Parecer foi objeto de redistribuição, tendo sido recebido pela Relatora a 02.12.2024.
II. Apreciação
A. A competência consultiva do Conselho Regional de Coimbra
O Conselho Regional de Coimbra detém competência para a emissão do presente parecer, não apenas por estar subjacente situação verificada em localidade pertencente à sua área de competência territorial, mas ainda porque a mesma configura questão de carácter profissional expressamente submetida à sua apreciação, nos termos do art. 54º, nº1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
Procedendo à delimitação do âmbito material da norma, avança-se que questões de carácter profissional são todas aquelas que se prendem com o exercício da advocacia, tradicionalmente concebidas como decorrentes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam a profissão. Resultantes, em especial, das normas do nosso Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.
Porém, os poderes atribuídos aos Conselhos Regionais para a dita pronúncia têm, necessariamente, de ser entendidos e conciliados com a competência específica que é conferida, em áreas concretas, a outros órgãos da estrutura da Ordem. É o caso do poder disciplinar, e do de velar pelo cumprimento das normas de deontologia profissional, atribuído aos Conselhos de Deontologia (art. 58º do EOA). Uma tal consideração, com o respeito que é devido à estrutura orgânica e consequente repartição de funções e competências materiais para o seu exercício, determina, pois, que o Conselho Regional de Coimbra – no que importa à apreciação de assuntos referentes a deontologia ou ética profissional – apenas possa pronunciar-se, quanto a tais matérias, em termos de mera orientação, de estrita resposta à consulta colocada. Precisamente por, neste âmbito, deter unicamente competência consultiva, e carecer, portanto, de competência decisória.
Tem sido prática deste Conselho responder às questões profissionais deste foro que lhe são colocadas, sem embargo de, em função do respeito pelo princípio da legalidade, comunicar ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os efeitos tidos por convenientes, os casos identificados como condutas passíveis de integrar, ou que integram, violação de deveres e princípios ético-deontológicos. Esta concreta opção determina, não apenas a circunscrição da apreciação – estritamente a efetuar a partir dos elementos trazidos ao processo pelos requerentes –, mas ainda a natureza não vinculativa da correspondente decisão, que não configura, nem pode alcançar relativamente à questão de fundo, uma decisão de mérito.
Assim apresentada, a situação subsume-se ao identificado dispositivo, sendo que a resposta importará, naturalmente, no prisma da validade da prova. Isto, embora o efeito útil, direto e imediato, da posição ou juízo a emitir pelo CRC, aproveite ao próprio Tribunal da causa, em particular no momento da sua decisão. Efetivamente, o interesse no sentido da resposta às questões colocadas é, em primeira instância, do Tribunal que, no exercício da sua função jurisdicional, resultante do art. 202º da Constituição da República Portuguesa e art. 2º, nº2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário[4], decidirá da validade dos meio probatórios.
B. O Segredo Profissional do Advogado
Compulsados os autos e partindo do quadro factual apurado, entende-se que, para a devida apreciação da questão em apreço, emerge como imprescindível o enquadramento teórico do tema.
1. O dever de guardar segredo profissional
O segredo profissional inscreve-se “no património cultural da advocacia”[5], constituindo “um dos pilares em que a advocacia firma a sua dignidade e independência. Mas é também condição da sua existência.”[6] Como especial dever consagrado, pressupõe – e exige – uma “relação de causalidade necessária”[7] entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos sigilosos, precisamente “em termos de causalidade adequada.”[8]
Ora, é no nº1 do art. 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) que o legislador define o âmbito subjetivo da obrigação de sigilo: o próprio advogado que, no exercício das suas funções, toma conhecimento de (certos) factos. Dúvidas não restarão de que consubstancia uma obrigação daquele que exerce a profissão, pelo que será sempre dever que impende exclusivamente sobre um Advogado.
O nosso Estatuto e, no que aqui importa, esta sua norma, é aplicável linearmente, como se viu, a Advogados e Advogados-Estagiários[9] inscritos na Ordem dos Advogados, não vinculando – além dos que com estes colaboram – terceiros.
Para aferir se determinada matéria está, ou não, sujeita ao dever de segredo profissional, há que averiguar a natureza dos factos, verificando se os mesmos se enquadram em alguma das alíneas enunciativas daquela norma, ou se caem na cláusula geral estipulada pelo nº1.
A amplitude aplicativa da norma resulta, desde logo, do emprego pelo legislador do vocábulo “designadamente”, que a transforma numa norma aberta, i.e., de caráter que, não sendo taxativo, é, antes, meramente indicativo. Como, aliás, foi explicado na Consulta nº 1/2009 do então Conselho Distrital de Lisboa[10], sufragando o entendimento do Bastonário Lopes Cardoso: “Sob a fórmula constante do [atual nº1 do art. 92º] do EOA, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. As demais regras previstas nas alíneas da mesma, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação. O sentido da letra de tal disposição, bem como a utilização do advérbio «designadamente», não deixam, a este propósito, grandes margens para dúvidas.”
Salienta-se que a expressão utilizada na formulação desse segmento normativo, no que respeita a “todos os factos” que o advogado é obrigado a guardar segredo no exercício da sua profissão, deverá ser interpretada cum grano salis, e não no seu estrito sentido literal, sob pena de se ultrapassar a ratio do comando legal, esvaziando de sentido o próprio sigilo[11]. Assim, como ensina Sousa Magalhães, “O conceito de «factos» para efeito do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais susceptíveis de alegação, como os próprios documentos”[12].
A exegese implica, pois, um trabalho de equilíbrio e razoabilidade, com início no reconhecimento de que factos há que são transmitidos ao Advogado precisamente para que este os leve e transmita, os dê a conhecer a terceiros, sejam outras pessoas ou mesmo processos judiciais[13]. Tal como outros existem que não se encontram, sequer, abrangidos pela obrigação do segredo advocatício.
Impõe-se, pois, determinar ab initio o conteúdo do nomen iuris “segredo”. A Ordem dos Advogados tem já um considerável filão jurisprudencial[14] que, através do que é designado “triplo crivo”, identifica o que é “segredo”, permitindo traçar o perímetro da norma estatutária. O sigilo dependerá, então:
- Da forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
- Do teor do próprio facto; e
- Das concretas circunstâncias do conhecimento e da revelação.
A natureza do problema implica uma prévia análise casuística, levando a concluir, contudo, no que se acompanha de perto Rodrigo Santiago, que “estarão a coberto do segredo facto ou factos relativamente aos quais a pessoa com quem ele ou eles respeitem tenham um «interesse objectivamente fundado» em que se mantenham reservados.”[15]
2. A concessão de dispensa de sigilo profissional
Sendo certo que o Parecer solicitado tem por finalidade aferir se a junção aos autos, pela arguida, através da sua mandatária, de dois emails enviados pelo seu Advogado na Suíça, viola ou não o dever de segredo profissional, importa fixar as coordenadas axiais da problemática.
2.1. A possibilidade legal de levantamento do sigilo
A excecional possibilidade de desvinculação do segredo profissional encontra-se consagrada no nº4 do mencionado art. 92º do EOA, a interpretar rigorosamente no seu sentido literal. Na mesma linha, refletindo o nosso entendimento tradicional, o Regulamento de Dispensa de Sigilo estabelece, no nº1 do art. 4º, que a autorização de cessação do segredo tem caráter excecional. Ou seja, e a contrario, a regra é a da manutenção do segredo advocatício, pelo indeferimento do levantamento da sua obrigação. O que determina que a análise da situação tem, impreterivelmente, de ser delimitada. Circunscrita e circunstanciada. Não é possível, pois, conceder autorizações genéricas, ou amplas. Ou resultantes de meras conclusões extraídas – por via indireta, portanto – de elementos dos autos, ou até das regras da experiência. Por outro lado, sendo a dispensa do segredo advocatício casuística, é de notar que exige imperativamente uma apreciação conjunta e articulada dos elementos trazidos ao processo – peças processuais, despachos, decisões judiciais, etc. Razão pela qual foi proferido pela Exma. Senhora Presidente do CRC o despacho de 24.09.2024.
Ora, “Esta muito melindrosa tarefa”[16]exige, não apenas a minuciosa análise do conjunto de toda a prova existente, mas ainda da eventual prova alternativa possível. Ao que o Senhor Bastonário Lopes Cardoso se refere como o dever, que recai sobre o/a Senhor/a Presidente do Conselho Regional, de “ponderar as circunstâncias de invocação e prova, formular um juízo pré-judicial, integrar o seu raciocínio na natureza e características do processo judicial concreto, designadamente atender ao «onus probandi» e à essencialidade dos factos para a procedência ou improcedência da acção”[17].
Como não podia deixar de ser. Sendo este o mais importante e característico dever do advogado, na verdade, “uma questão de honra e de dignidade profissional”[18], naturalmente que só poderá ceder em circunstâncias de exceção, verificados que sejam os estritos requisitos legais. Além de que o seu levantamento terá de ser apreciado, e decidido, dentro de precisos e rigorosos limites, escalpelizando a situação e os factos a desvelar, e realizando uma minuciosa subsunção legal. Sempre, atendendo aos superiores interesses a salvaguardar. Tanto mais que “Uma banalização da desvinculação dos Advogados do dever de guardarem segredo profissional descaracterizaria e desvirtuaria a Advocacia perante a comunidade.”[19] Atente-se: A obrigação de segredo profissional, há muito estabelecida no interesse geral, é indissociável da imagem do Advogado. [20] De tal modo que a violação deste particular dever extravasa o Homem e o profissional que o desrespeitou e, com tal atitude, atraiçoou quem confiou em si. Na verdade, “fere uma sociedade inteira, porque retira à profissão, uma das bases sobre que a sociedade se apoia, ou seja, a confiança que a deve cercar.”[21]
É absolutamente determinante que a consciência da amplitude deste dever, i.e., a consciência da sua dimensão ético-profissional, social e mesmo cívica, e bem como das suas efetivas repercussões, esteja a tal ponto imprimida na pessoa do próprio Advogado, que se assuma, mais do que como uma regra, como um imperativo de conduta. Que integre e faça parte da essência do Advogado e, assim, da profissão que exerce e da forma como a exerce. Nas palavras de Carlos Pinto de Abreu, “não perdendo, todavia, o horizonte mais vasto que a preservação da imagem pública do advogado implica, como face da mesma moeda que garante e justifica as prerrogativas no exercício da advocacia, nomeadamente o dever de sigilo profissional”[22]. Trata-se do dever-ser do Advogado.
2.2. Legitimidade para o pedido de dispensa de sigilo
Estabelecido que está que o segredo profissional subjacente ao desenvolvimento da atividade advocatícia é um segredo do profissional, i.e., do próprio Advogado enquanto profissional que, integrado numa associação pública representativa da sua classe – a pessoa coletiva de direito público[23] que é a Ordem dos Advogados –, se encontra sujeito à sua disciplina, é este a única pessoa com legitimidade para requerer a correspondente desvinculação, conforme resulta diretamente do art. 2º do Regulamento 94/2006, de 25 de Maio (RDSP)[24].
Carece, portanto, de legitimidade para tal efeito, não apenas o seu cliente, como qualquer terceiro, como seja a contraparte de um processo ou mesmo o Tribunal. É esta, pois, “a única perspetiva coerente com a natureza do Instituto.”[25] Refira-se que o art. 92º, nº4 do EOA – norma cuja leitura há-se ser conjugada com o disposto no RDSP – permite, como se deixou dito, a dispensa do nosso segredo profissional em termos absolutamente excecionais. Isto é, apenas quando absolutamente necessário para defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do Advogado ou do seu cliente (ou representantes). Porém, nunca para terceiros e, por princípio, nunca contra o cliente. Sendo certo, repete-se, que esta obrigação impende, naturalmente, sobre o Advogado, e não sobre o cliente.
A menos que se verifique uma situação de quebra, ou obrigação. Exatamente porque o levantamento do dever de sigilo que onera o Advogado pode ocorrer, além do caso especial de revelação por obrigação ex lege (como é o caso do branqueamento de capitais), por uma dúplice via – voluntariamente, mediante pedido de dispensa, ou através do incidente de quebra de sigilo.
2.3. Momento do pedido de desvinculação
O levantamento do segredo advocatício encontra-se subordinado a condição: a prévia autorização do/a Presidente do Conselho Regional, que averiguará as circunstâncias extraordinárias da absoluta necessidade da desvinculação, tendo exclusivamente como fim “a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes” (92º, nº4 do EOA). Tal dispensa tem, pois, forçosamente, de ser solicitada em momento prévio à revelação do segredo, a priori. Sob pena de, após a sua divulgação, a sua formulação ser desprovida de qualquer sentido. Na verdade, nessa ocasião já não existe segredo, assistindo-se a uma verdadeira impossibilidade de autorização.
Por conseguinte qualquer pedido de levantamento de sigilo efetuado posteriormente à exposição dos factos sigilosos importa que não possa, já, emitir-se decisão – seja de deferimento ou indeferimento. Tendo deixado de haver segredo a dispensar, a situação apresenta-se como um non liquet, implicando a comunicação ao Conselho de Deontologia, por violação do respetivo dever.
3. A prova obtida com violação de segredo profissional
A violação da obrigação de sigilo é geradora de responsabilidade disciplinar do Advogado, além de o fazer incorrer em responsabilidade penal e civil.
No entanto, tem ainda implicações imediatas a nível processual, em termos probatórios, encontrando-se a correspondente cominação especificamente prevista no próprio dispositivo. Com efeito, preceitua o nº5 do art. 92º do EOA que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, traduzindo-se numa expressa proibição de valoração da prova. “O que significa que, quando se emprega o termo «prova» neste contexto, se pensa no resultado obtido através de um determinado meio de prova.”[26]
De onde resulta que aquela assim obtida é materialmente proibida, constituindo, consequentemente, prova ilícita[27]. Será, então, nula, com sujeição ao regime geral das nulidades processuais[28] sempre que “possa influir no exame ou decisão da causa” (art. 195º, nº1 do Código de Processo Civil).
Rodrigo Santiago aborda o tema nas suas Considerações Acerca do Regime Estatutário do Segredo Profissional dos Advogados, adiantando que, “da perspetiva processual – seja ela civil, seja penal, seja estatutária, ou qualquer outra – o dever de guarda de segredo profissional corporiza aquilo que nesta sede a doutrina vem chamando de «regra de proibição de produção de prova»”, rematando que “Como quer que seja ou deva ser: o referido nº5 do artigo [92º atual] constitui comando da maior importância pela respetiva aplicação a vastos âmbitos do processo civil e do penal, «heteronomamente determinada».”[29]
III. Pronúncia
Delineado o necessário referencial teórico da matéria, passa-se à apreciação da situação submetida a análise.
Em causa está a eventual revelação de matéria sigilosa mediante a junção aos autos judiciais, em sede de audiência de julgamento, de dois emails da autoria do Advogado Suíço da ali arguida.
As comunicações eletrónicas em causa encontram-se encadeadas, consubstanciando a primeira uma breve consulta escrita, no sentido de transmissão, pelo Advogado à sua cliente, de opinião formada após estudo de documentação e subsunção da situação à lei. Tanto que a mensagem tem como única destinatária a cliente. Assim, a segunda comunicação acaba por ser, no que ao seu teor concerne, uma repristinação da precedente. Dirigindo-se, desta feita ao Mandatário da sua constituinte em Portugal – mas, sublinhe-se, com conhecimento daquela (Cc) –, o Colega estrangeiro estabelece contacto, organiza e envia os elementos indispensáveis ao prosseguimento da questão, adiantando ter já reportado àquela a sua opinião técnica.
O primeiro email, de 20.11.2020 – a dita transmissão pelo Advogado à constituinte, da sua posição jurídica relativamente ao assunto confiado – configura correspondência que foi direta e exclusivamente dirigida à ora arguida, pelo que, embora pertencendo ao seu foro privado, não é confidencial, nem se enquadra no que é o segredo do Advogado. O seu conteúdo revela unicamente a resposta do profissional contactado naqueloutro país para prestar aconselhamento especializado, enquadrando-se numa normal relação Advogado/cliente e contendo, enquanto tal, diversas informações abreviadas referentes ao trabalho desenvolvido no exercício do mandato. Não está, pois, de modo algum, sujeito ao especial dever de sigilo profissional do Advogado. O qual, quando existe, é deste profissional e nunca do cliente ou de qualquer terceiro externo à relação. De tal forma assim o considerou, que a aqui arguida entendeu socorrer-se daquele documento para sua defesa.
A mesma conclusão é alcançada no que respeita ao email de 10.02.2021 (o 2º). Desde logo porque o seu teor não revela aspetos que envolvam, ou sequer expressem, dados sigilosos. Trata-se, sem margem de dúvida, da mera transferência de elementos de um Colega a outro. Ademais, esta mensagem não foi enviada de forma resguardada, dado que seguiu “abertamente” e sem reservas, também para a sua constituinte. Certamente para garantir o cumprimento de obrigação a que aquele Colega se terá comprometido, ou seja, para dar a conhecer a concretização de ato que, estamos em crer, terá sido realizado de acordo com as instruções da cliente. O que sai reforçado pela evidência de que factos há que são levados ao Advogado precisamente para que este os leve a terceiros – pessoas, aqui se incluindo Colegas, ou processos judiciais, conforme oportunamente já avançado. No mesmo sentido releva ainda um outro argumento, já que a arguida, para proceder à junção aos autos dos emails aqui em causa, não teve necessidade de os solicitar a qualquer dos Advogados. Ela própria estava, sempre esteve, na posse não apenas da primeira, como ainda da segunda mensagem. Sendo suas, e não se enquadrando o seu teor na previsão do art. 92º, podia perfeitamente, como efetivamente fez, levá-las a juízo para sua defesa, atendendo, até, à natureza criminal do processo e à sua concreta posição processual.
Frisa-se que, independentemente da questão de fundo, e como supra se aflorou, o segredo que deriva da concreta atividade do Advogado é, imperativamente, um segredo do profissional, de um profissional em concreto. De modo que apenas este – o próprio, enquanto interveniente ativo e direto, com relação estabelecida com o seu cliente – se encontra dotado de legitimidade para solicitar a inerente desvinculação, conforme inequivocamente resulta do art. 2º do RDSP. Porque, reforça-se, tem unicamente legitimidade para requerer a respetiva cessação o Advogado sobre o qual recai a obrigação de guardar segredo relativamente a matéria que, revestindo cunho sigiloso, tenha chegado ao seu conhecimento por via da sua atuação profissional. Assim se tendo por obrigação pessoal e exclusiva, de modo que, a existir segredo e motivo justificativo, apenas este pode solicitar o seu levantamento. Posição pacífica, largamente sustentada pela doutrina e pela jurisprudência da Ordem, com realce para o facto de que “A grande regra é também a de que só possui legitimidade para solicitar o levantamento do segredo o Advogado detentor do sigilo.”[30] Concluindo-se, portanto, que esta é, pois, uma obrigação pessoal e exclusiva daquele que é tido como seu detentor original.
Uma nota apenas quanto à advertência que figura no rodapé dos emails enviados pelo Senhor Advogado suíço, em letra de tamanho quase ilegível, e independentemente do entendimento atual no nosso ordenamento jurídico, quanto à aposição de “Nota de Confidencialidade”, com reporte ao art. 113º do EOA, sob a epígrafe “Correspondência entre advogados e entre estes e solicitadores”, maxime ao seu nº2.
De acordo com o entendimento estabelecido[31], a invocação deste dispositivo reveste apenas o estrito valor ali previsto quando inserida de forma clara, direta e inequívoca – destacada, portanto – no texto do próprio email. Porém, no caso das comunicações que integram os autos, a frase inserida não indica qualquer norma legal expressa, além de que o seu texto aponta para interpretação diversa da fixada no nº2 do identificado normativo do EOA, quer na estrita letra da lei, quer no sentido da sua particular leitura. Efetivamente, indica que a mensagem pode conter informações confidenciais e/ou protegidas pelo sigilo profissional do advogado. O que não significa que tal suceda, não ocorrendo, efetivamente, na presente situação. Ao que acresce que, tal como consta do início desse texto, a “mensagem destina-se exclusivamente ao seu destinatário”. Ora, tendo a cliente rececionado ambos os emails remetidos por aquele seu Advogado, sempre poderia utilizá-los.
Todavia, caso assim se não entenda/ se não entendesse, sempre se diria que, tendo em conta que em causa estava comunicação a enviar a um Colega de outro país, sendo essa a sua intenção, certamente teria o Senhor Advogado Suíço destacado a questão ou, pelo menos, teria acionado a funcionalidade de envio de “mensagem confidencial”. E, com isto, por via da inerente proteção do seu conteúdo criaria, desde logo, um alerta para essa característica da mensagem, designadamente referente à restrição da sua utilização. O que não sucedeu.
Por último, deixa-se questão complementar, embora de distinto cariz. Atendendo a que um dos emails continha a identificação de um concreto Colega, assim o identificando – segundo se conclui, tratar-se-á do anterior Mandatário – poderia a Mandatária da arguida, antes da junção da correspondência eletrónica e em face da consequente exposição, tê-lo contactado, se não por razões de cortesia, dando eventualmente cumprimento à obrigação de respeito pelos deveres recíprocos entre advogados, prima facie pelo dever de lealdade (art. 108º do EOA), ou até do dever de solidariedade entre Colegas (art. 111º do EOA). Entramos já, portanto, no domínio das relações entre Colegas.
IV. DECISÃO
Com fundamento em todo o exposto, entende-se que a situação submetida a apreciação não se integra no art. 92º do EOA e, não estando em causa matéria sujeita a segredo profissional, os emails juntos não violam este preciso dever.
V. CONCLUSÕES
1. O segredo profissional, enquanto especial dever consagrado no art.92º do EOA, pressupõe – e exige – uma “relação de causalidade necessária” entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos sigilosos;
2. O segredo profissional subjacente ao desenvolvimento da atividade advocatícia é um segredo do profissional, i.e., do próprio Advogado enquanto profissional integrado numa associação pública representativa da sua classe – a pessoa coletiva de direito público que é a Ordem dos Advogados;
3. Emails remetidos por Senhor Advogado que exerça num país estrangeiro exclusivamente a uma sua cliente ou, simultaneamente, a esta e ao seu Advogado português, que consubstanciem uma breve consulta escrita, no sentido de transmissão, pelo Advogado à sua cliente, de opinião formada após estudo de documentação e subsunção da situação à lei não integram, por qualquer forma, matéria sigilosa, não se enquadrando na previsão do art. 92º do EOA;
4. Em tal tipo de situações não há, igualmente, lugar a aplicação do art. 92º do EOA dado que as partes/terceiros não estão, nem podem estar, sujeitas ao sigilo profissional que impede exclusivamente sobre o Advogado;
5. Assim, a junção aos autos judiciais de tais emails não fere o especial dever de segredo profissional e, como tal, não pode implicar a sanção prevista no art. 92º, nº5 do EOA.
[1] Todas as referências a Advogados são igualmente e na mesma medida aplicadas a Advogadas.
[2] O destaque a bold é da nossa autoria.
[3] O destaque em bold é da nossa autoria.
[4] Lei 40-A/2016, de 22 de Dezembro.
[5] Fernando Fragoso Marques, ROA, Ano 59, Ano vol. I, pg. 379.
[6] Idem.
[7] Fernando Sousa Magalhães, EOA Anotado e Comentado, Almedina, 2015, 10ª ed., pg. 138 (nota 6).
[8] Orlando Guedes da Costa, Direito Profissional do Advogado - Noções Elementares, Almedina, 8ª Edição Revista e Atualizada, pg. 389.
[9] E a todos os que com estes colaboram.
[10] Relatada por Rui Souto, e disponível em www.oa.pt
[11] Parecer nº49/PP/2011, e O Dever de Guardar Sigilo Profissional – Uma Aproximação Prática, Comunicação do VI
Congresso dos Advogados Portugueses, Rui Souto, www.oa.pt
[12] Op. cit., pg. 138, nota 11.
[13] Neste sentido, o Parecer nº 133/05, do Presidente do Conselho Distrital de Lisboa.
14 Maxime do Conselho Regional de Lisboa.
[15] ROA, 57, Vol I, pg. 237.
[16] Lopes Cardoso, Do Segredo Profissional na Advocacia, 2ª Ed. Actualizada e Completada, Almedina, 2020, pg. 102.
[17] Op. cit., pg. 141.
[18] Amílcar de Melo, Da Advocacia, ed. Almeida & Leitão, Lda., 2013, pg. 164.
[19] Parecer nº 44/PP/2009-G, do Conselho Geral, de 10.02.2010, Relatado por Ana Costa de Almeida.
[20] Maria Clara Lopes, Segredo Profissional, BOA nº10, pg. 13.
[21] Idem. Os destaques são da autoria de Maria Clara Lopes.
[22] Carlos Pinto de Abreu, Consulta nº29/2009, Pareceres do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Triénio 2008-2010, Volume I, pg. 363, publicado pelo CDL, disponível em www.oa.pt
[23] Art. 1º, 1 e 2 do EOA.
[24] Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
[25] Rui Souto, op. cit.
[26] Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pg. 55.
[27] V.g., por todos, o Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.06.2012, Relatado por Henrique Antunes, www.dgsi.pt
[28] José Lebre de Freitas, et al., Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. II, pg. 536.
[29] Op. cit., pg. 233.
[30] Lopes Cardoso, Do Segredo Profissional na Advocacia, 2ª Ed. Actualizada e Completada, Almedina, 2020, pg. 119.
[31] Cita-se, por todos, o Parecer nº 6/PP/21-P do Conselho Regional do Porto, relatado por Joana Magina.
Marta Ávila
Topo