PARECER Nº 1/PP/2025-C
Processo de Parecer n.º 1/PP/2025-C
Requerente: Dra. MBD...
Assunto: Conflito de Interesses
Por requerimento, remetido por via de correio electrónico, em 04 de Fevereiro de 2025, dirigido à Senhora Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Ilustre Colega Dra. MBD..., ali devidamente identificada, solicitou a emissão de parecer relativo a eventual conflito de interesses, o qual se transcreve infra:
“Exma. Senhora
Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados
Dra. Teresa Letras,
Começo por lhe remeter os meus melhores cumprimentos.
Venho junto de V.Exa., solicitar que me esclareça quanto à seguinte situação, por forma a que fique claro se há ou não uma situação de conflito de interesses e, portanto, violação do artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA):
Represento um cliente, sempre que o mesmo necessita dos meus serviços jurídicos, seguramente há mais de 20 anos.
No ano de 2021 representei este mesmo cliente e a sua mulher, à data, num procedimento de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos na conservatória, e onde foram homologados também os respectivos acordos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, casa de morada de família e a respectiva relação de bens – o normal em muitos destes casos.
Entre 2021 e 2024, sempre que ocorriam pequenas questões entre o ex-casal, relativamente aos filhos menores, quer o meu cliente, quer a ex-mulher ligavam-me e, com alguma ponderação e bom senso sempre consegui que as dificuldades que surgiam fossem ultrapassadas. De notar, que sempre salientei, quer a um, quer a outro, que só podia representar os dois, enquanto houvesse entendimento. E, assim, aconteceu.
Mais recentemente, a ex-mulher do meu cliente, num contacto telefónico estabelecido comigo, informou-me, que, por um lado, não queria gastar mais dinheiro com honorários, e por outro, também não queria deixar-me sempre numa posição ingrata entre os dois, e que, portanto, ía solicitar um patrono oficioso, o que de imediato compreendi e aceitei, sem qualquer problema.
Há cerca de 10 dias, na sequência de outra questão entre ambos, o meu cliente contactou-me e informou-me que a ex-mulher tinha uma advogada e perguntou-me se podia ajudá-lo a dirimir a questão. Entrei em contacto com a I.Colega, por telefone, no dia 20.01.2025 e por e-mail no dia 21.01.2025, para saber se podíamos resolver a situação extrajudicialmente, porque a questão era simples – os menores vivem em semanas alternadas com o pai e com a mãe, e a mãe pretendia que a troca de semanas dos menores passasse a ser efectuada na escola, ao invés de ser efectuada nas residências dos progenitores, como constava do Acordo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, opinião que continuava a ser defendida pelo meu cliente.
Para tratar deste assunto, ao todo, enviei dois e-mails à I.Colega e a mesma respondeu-me também através de dois e-mails. No primeiro e-mail que recebi, datado de 24.01.2025, a I.Colega salientou que estava ao abrigo do patrocínio judiciário e que como tal o assunto tinha que ser tratado em conferência de pais. Continuei a salientar, e respondi por e-mail, datado do mesmo dia, que não via necessidade de levar a questão a tribunal, até porque efectuar a troca das semanas dos menores na escola não era uma decisão viável, uma vez que, no período de férias escolares deixaria de haver esse mesmo local.
No segundo e-mail que recebi da I.Colega, datado de 27.01.2025, a mesma, desagradada com a minha tentativa de resolver extrajudicialmente o assunto, invocou a existência de conflito de interesses, em que me colocava, por ter representado ambos os progenitores no Acordo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais.
Para ser o mais franca possível, fiquei em choque. Jamais me tinha passado pela cabeça a existência, neste caso, de um conflito de interesses, dada a boa vontade da minha parte em resolver a situação existente entre duas pessoas que conheço muito bem e com as quais nutro até uma certa amizade.
Todavia, analisado o artigo 99º do E.O.A quase não me restam dúvidas de que a I.Colega pode ter razão, mas, atento o facto da relação profissional que tenho com o meu cliente ser já tão longa, não quero deixar de o patrocinar sem antes colocar a questão à Ordem dos Advogados, no caso a V.Exa..
Pelo exposto, ficarei, então, a aguardar o entendimento de V.Exa. sobre este assunto.
Agradeço a atenção dispensada e renovo os meus melhores e mais cordiais cumprimentos.”
O referido pedido foi distribuído ao aqui Relator, em 05 de Fevereiro de 2025, para emissão do correspondente parecer.
Em síntese, pretende que o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados se pronuncie relativamente a um eventual conflito de interesses da Consulente que representou os cônjuges em processo de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos na Conservatória do Registo Civil, onde também foi homologado o acordo extrajudicial de regulação do exercício das responsabilidades parentais, que representa agora o progenitor em questão relacionada com a alteração dessas responsabilidades parentais, alteração promovida pela progenitora representada por Patrono, nomeado no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito.
Feito o enquadramento do pedido de parecer, cumpre, neste momento, aferir da competência do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados para a respectiva emissão.
Nos termos do disposto no artigo 54º, nº 1 alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro, na sua versão actual (doravante designado por EOA), compete aos Conselhos Regionais, no âmbito da sua competência territorial, “Pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional;”.
A jurisprudência da Ordem dos Advogados tem sido unânime em definir como questões de carácter profissional todas as que assumam natureza estatutária, resultantes de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas dos Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.
Considerando, de acordo com o supra vertido, que este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados é competente, material e territorialmente, cumpre emitir parecer quanto à questão suscitada no presente processo.
Como já se referiu, cumpre analisar, para efeitos do presente parecer, a verificação de um eventual conflito de interesses, decorrente da conduta profissional da Ilustre Colega que, no exercício do mandato forense, representa o progenitor em questão relacionada com a alteração da regulação das responsabilidades parentais, considerando que, previamente, patrocinou os progenitores no processo de divórcio por mútuo consentimento, no qual foi homologado o acordo que agora se pretende alterar, por iniciativa da progenitora, agora representada por Patrono nomeado no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito.
A questão suscitada pela Consulente é de foro deontológico, concretamente sobre a relação entre o advogado e o cliente e, bem assim, sobre a eventual existência de conflito de interesses que obste à manutenção/ atribuição de mandato conferido por cliente que representa ou quer representar.
Assim, no que se refere ao conflito de interesses, importa examinar o seu contexto jurídico para, de seguida, verificar a sua aplicabilidade à situação em análise.
A problemática do conflito de interesses no exercício da advocacia encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA, que dispõe o seguinte:
Artigo 99.º
Conflito de interesses
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”.
O supra citado normativo salvaguarda e preserva valores essenciais da advocacia como a independência, confiança e lealdade e a defesa do segredo profissional.
O artigo 99º do EOA enuncia, nos seus números 1 e 2, situações que determinam, ao advogado, a recusa, perentória, do patrocínio.
Assim, o advogado deve abster-se de assumir o mandato:
- Em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;
- Em questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;
- Em questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
O nº 3 do citado artigo determina ainda que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
Por seu turno, o nº 4 dispõe sobre a hipótese de um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como, sobre a hipótese de ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, situações em que o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
Nos termos do n.º 5, o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, procurando-se, assim, defender a comunidade e os clientes dos advogados em especial, de atuações ilícitas destes, conluiados ou não, com outros clientes, bem como, defender o advogado da hipótese de sobre ele recair a suspeita de uma atuação visando qualquer outro fim, que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.
Finalmente o nº 6 determina que sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores do artigo 99º do EOA é aplicável quer à associação quer a cada um dos seus membros.
Sendo certo que, em regra, o processo de aferição da existência ou não de um conflito de interesses é um exercício eminentemente casuístico, certo é que o legislador estabelece, a priori, alguns casos em que o conflito de interesses impõe um dever de recusa do patrocínio, não porque em concreto e no imediato se verifique o conflito de interesses, mas porque, objetivamente, as circunstâncias, em si mesmo, promovem esse conflito.
Ao longo do tempo, o Conselho Regional de Coimbra tem proferido inúmeros pareceres sobre o conflito de interesses, sendo entendimento recorrente que é ao advogado que cabe a responsabilidade maior de avaliar, casuisticamente, se ocorre, ou não, uma situação de conflito de interesses.
Genericamente, o advogado não se encontra impedido de exercer patrocínio contra um anterior cliente, desde que o patrocínio não configure uma situação de conflito de interesses.
Como já se referiu, o artigo 99º do EOA pretende evitar o risco sério, ainda que meramente potencial, de um conflito de interesses entre clientes, ou ex-clientes do causídico, quando os mesmos acabam em lados diferentes da barricada.
Retomando a análise da situação concreta, adiantamos, desde já, que se encontra, a priori, sistematicamente preenchida a previsão contida no nº 1 do artigo 99.º do EOA.
Senão vejamos, como já se referiu anteriormente, a Ilustre Colega, em representação do, então, casal, deu entrada de processo de Divórcio por Mútuo Consentimento, na Conservatória do Registo Civil, tendo, a final, sido decretado o divórcio dos requerentes e homologado o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Presentemente, a progenitora recorreu ao Sistema de Acesso ao Direito, solicitando a nomeação de patrono, pedido que foi deferido, para propor acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais.
Tendo sido nomeada patrona à beneficiária/progenitora, é inequívoco que a Consulente fica impedida de exercer o mandato forense, em representação do progenitor, uma vez que a questão juridicamente controversa, no caso a alteração da regulação das responsabilidades parentais, é manifestamente conexa com outra em que representou a parte contrária.
Tem sido entendimento pacifico da Ordem dos Advogado que existe conexão “quando se verifique uma “relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valoração de certos factos”, conforme Parecer do Conselho Geral nº E-14/00, aprovado em 13 de Outubro de 2000.
Aplicando-se o enunciado conceito de conexão à factualidade invocada pelo Consulente, temos de concluir que existe uma evidente conexão entre o acordo extrajudicial de regulação das responsabilidades parentais, elaborado pela consulente em representação dos progenitores, homologado em sede de processo de Divórcio por Mútuo Consentimento, que correu termos em Conservatória do Registo Civil, e uma eventual alteração desse mesmo acordo, promovida pela parte contrária, que se encontra representada judicialmente por patrono nomeado.
Pelo exposto, será de concluir que existe evidente conflito de interesses que, nos termos do disposto no artigo 99º nº 1 do EOA, impede a Ilustre Colega de aceitar o patrocínio da questão.
Conclusões:
1. A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia concerne, encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA, no qual são elencadas as situações concretas em que o Advogado deve recusar o patrocínio, por se afigurar que naqueles casos concretos a independência, confiança, lealdade e dever de guardar sigilo profissional, podem ficar irremediavelmente comprometidos.
2. O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
3. O Advogado que tenha assumido a representação de ambos os Progenitores no âmbito da regulação das responsabilidades parentais do(s) filho(s) menor(es), encontra-se impedido de aceitar a representação do Progenitor, no âmbito de acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais que venha a ser instaurada pela Progenitora.
É este o nosso parecer.
Carlos Santos Silva
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