Comunicados do CR

23-10-2020
O IAPI, a advocacia e os advogados | Paulo Pimenta
 

            Recebi com particular satisfação o convite do Colega Rui Chumbita Nunes, ilustre Presidente do IAPI - Instituto dos Advogados em Prática Individual, para escrever umas palavras a partir da circunstância de os Colegas que integram a Direcção do IAPI terem encetado um périplo pelos Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados, aproveitando para reunir com representantes das Delegações de cada área geográfica.

            Para mim e para o Conselho Regional do Porto foi muito gratificante que tal périplo tivesse começado pelo Porto, desde logo pelo simbolismo que sempre se associa a tudo quanto tem início no Porto (ou não tivesse sido Daqui que houve nome Portugal, para usar o título de um notável livro sobre a cidade, organizado por Eugénio de Andrade). Faço esta alusão, não com qualquer sentido regionalista, mas, e bem pelo contrário, com um intuito abrangente e integrador, na medida em que, a partir do Porto, temos a visão de um país uno, de uma terra onde não há, nem pode haver, lugar para discriminações ou distinções entre uns e outros e entre regiões. Estar no Porto é estar em todo o país, é sentir e perceber um Portugal inteiro.

            Foi esta, estou certo, a nota que os membros da Direcção do IAPI mais profundamente guardaram da sua visita ao Porto e ao edifício onde, nos últimos quase trinta anos, tem funcionado a nossa sede, instalada na Praça da República, lugar que já se chamou Campo de Santo Ovídio e que está indelevelmente ligado à História da cidade e do país, já que, segundo rezam as crónicas, foi aí que, há 200 anos, na madrugada de 24 de Agosto, tiveram início as operações da Revolução Liberal de 1820.

            Perguntar-se-á: o que tem isto a ver com o IAPI e com os advogados em prática individual?

            A conexão, parecendo nenhuma, é enorme, se pensarmos que aquele movimento de 24 de Agosto de 1820 (como outros) se orientou pelo ideal de liberdade e se tivermos presente que a liberdade é imanente à condição de advogado.

            Um advogado que não seja livre não é bem (ou não é tanto) advogado. A advocacia só se exerce plenamente se o advogado não estiver condicionado ou constrangido seja pelo que for. É esta, para mim, a nota fundamental da advocacia. Daqui decorrem, naturalmente, outras notas identitárias da advocacia, como a independência, a coragem (intelectual e física), a capacidade de resistir e de lutar contra injustiças, abusos e discriminações, a capacidade de levantar a voz (mesmo que seja a última voz) em defesa de quem precisa. Tudo isso num quadro de honradez, de seriedade e de intransigente ética profissional.

            A este propósito, a propósito de ser livre e independente, penso sempre na formulação de Henrion de Pansey: “O advogado, livre de todos os entraves que cativam os outros homens, demasiadamente orgulhoso para ter protectores, demasiadamente obscuro para ter protegidos, sem escravo e sem dono, seria o homem na sua dignidade original, se um tal homem assim existisse”. Por utópica ou até romanceada que seja esta formulação, tenho-a por altamente inspiradora.

            Se atentarmos que o IAPI tem como referência primordial “os advogados que exercem a profissão de forma liberal tendencialmente exclusiva e sem estarem integrados em organizações societárias, regulares ou irregulares, com especial atenção aos que têm domicílio profissional em áreas mais desfavorecidas ou mais isoladas”, parece simples intuir que há afinidades entre os profissionais que centram a atenção do IAPI e o advogado que idealizo quando penso em Henrion de Pansey.

            O que pretendo significar é que o advogado que idealizo – e que julgo corresponder à imagem que, de um modo geral, os próprios cidadãos têm do advogado e do seu papel, e até me parece ser aquilo que mais releva da consagração constitucional do patrocínio forense – é alguém individualizado, alguém que os cidadãos procuram pelo seu prestígio, pela sua reputação, pelo seu desempenho (conhecido e reconhecido), numa palavra, por ser quem é.

            Essa individualização do advogado, podendo embora existir noutro contexto organizativo, é muito mais evidente quando falamos de alguém que tem um nome e um rosto e que trabalha no seu escritório. Refiro-me ao profissional que exerce a sua actividade sozinho (ou quase), que arca sozinho com a responsabilidade e a exigência do patrocínio, refiro-me ao profissional a quem o cliente (que também tem um nome e um rosto) entrega a defesa dos seus interesses (a sua liberdade, o seu património). Refiro-me ao profissional que, sozinho e pelos seus meios, com o seu labor e com o seu saber, protege o cliente das adversidades, lhe dá esperança e conforto emocional. Refiro-me ao profissional que, sozinho e na defesa intransigente do seu cliente, luta contra a injustiça, a prepotência, a iniquidade. Tudo isso, toda essa entrega e dedicação do advogado, é tão mais importante quanto mais carenciado ou desfavorecido for o cliente, quanto mais isolada ou desfavorecida for a zona em que o patrocínio se exerce, quanto maiores forem as adversidades, quanto menor visibilidade tiver a questão confiada ao advogado. Refiro-me ainda ao advogado que tem na discrição e sobriedade notas de carácter, que não se põe em bicos de pés e que evita os holofotes efémeros da comunicação social. Refiro-me ao advogado que, por muito empenhado e dedicado que seja o seu patrocínio, é rigoroso na distinção entre a sua esfera de mandatário e a esfera do seu cliente, como garantia de liberdade e independência. Refiro-me ao advogado cujo consolo, longe de ser económico, radica no sentimento do dever cumprido, radica no reconhecimento que, mais do que nas palavras, entrevê na simples expressão do cliente, o que é tão mais significativo quanto mais simples e humilde for esse cliente. Refiro-me também ao advogado que faz da advocacia a sua profissão, vivendo-a com espírito de missão, como um sacerdócio, sem disponibilidade ou sequer interesse em dedicar-se a actividades outras ou a negócios, pois pressente que isso o tornaria menos livre, menos independente, enfim, menos advogado.

            Este elogio do advogado em prática individual corre o risco de ser deslocado ou contra a corrente, numa altura em que (aparentemente) só se fala em sociedades de advogados, em grandes sociedades, em escritórios com dezenas ou centenas de pessoas, em escritórios ibéricos ou ainda mais internacionais, numa altura em que se fala de rankings de volumes de facturação na escala de milhões, que se fala da contratação de advogados ou de transferências de advogados entre escritórios.

            É evidente que não podemos ignorar a realidade das coisas. Não podemos ignorar que uma certa dinâmica empresarial implica dimensão e estrutura. Não podemos ignorar que há operações (jurídicas e económicas) cuja complexidade implica o cruzamento de diversos saberes e a intervenção simultânea de diversos profissionais. Não podemos ignorar a internacionalização dos negócios, que arrasta consigo a reconfiguração da assessoria jurídica e do patrocínio. É certo que não podemos ignorar nada disso.

Mas não será por tudo isso que haveremos de abandonar a matriz da advocacia, razão de ser, aliás, da sua consagração constitucional (e que outras profissões liberais não têm). E não será por isso que deixaremos de assinalar que certos rumos da advocacia, por modernos e glorificados que sejam, comportam o risco de descaracterizar a profissão e de descaraterizar o próprio advogado. Uma certa volúpia a que vamos assistindo, em que tudo se mede numa perspectiva negocial ou mercantil, acaba por colocar a advocacia, melhor dito, acaba por colocar diversos advogados (e os seus desempenhos) paredes meias com actividades que pouco ou nada têm a ver com a profissão, num quadro em que (quase) inexiste uma linha divisória entre ser advogado e ser cliente, o que, como é evidente, diminui a liberdade e a independência da advocacia.

            Com a sua institucionalização, o IAPI tem a enorme virtude de sinalizar que, apesar de tudo, a advocacia em prática individual tem (e sempre terá) razão de existir, não só porque corporiza as notas mais características do ser advogado, mas também porque, convém não esquecer, ainda corresponde à forma mais enraizada de exercer a profissão. Com efeito, a grande maioria dos advogados preenche os “requisitos” do advogado em prática individual. Eu próprio invoco com orgulho essa condição, convicto de que, qualquer que seja a evolução das coisas, há sempre lugar para um advogado que o seja apenas, que não esteja diluído numa organização mais ou menos complexa, que não esteja sujeito a padrões predefinidos quanto aos clientes que patrocina e quanto aos assuntos de que trata e ao modo como os trata, que seja livre de aceitar ou não clientes, que seja livre de não se subordinar a ditames de outros (quer colegas, quer clientes).

            Apesar de todas as dificuldades por que passa a profissão, apesar de a procuradoria ilícita grassar, apesar de diversas medidas legislativas erradas e erráticas (que ora atentam contra o patrocínio forense, ora procuram diluir as profissões forenses numa amálgama que prejudica a dignidade da advocacia), apesar de algum sentimento de isolamento ou desamparo que alguns experimentam, afigura-se que o advogado em prática individual é aquele que mais próximo se encontra daquela dimensão que transforma a advocacia numa profissão singular, tão singular que, recordando Roland Dumas, “o que há de melhor num advogado é que ele está lá quando não há mais ninguém”. É certo que esta grandeza da advocacia também comporta riscos, a ponto de Francesco Carnelutti ter avisado que “a advocacia é a mais difícil e perigosa das profissões”.

            Por isso mesmo é que a profissão deve ser exercida por advogados livres e independentes, únicos capazes de estarem sempre disponíveis quando são precisos e únicos capazes de correrem riscos na defesa daqueles patrocinam.

            Preservar e proteger a advocacia em prática individual não é um desafio vão, não é uma excentricidade, é antes defender a essência do ser advogado. E é também, por inerência, defender o Estado de Direito, pois este não existe sem advogados livres e independentes.

      

 

Paulo Pimenta

Presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados



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