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Tribunais nacionais e Direito da União Europeia
 

Qual o papel dos tribunais nacionais no processo de integração europeia e no desenvolvimento do Direito da União?

Se há um domínio da integração europeia que efectivamente funciona há mais de 50 anos é aquele da integração jurídica. A União Europeia não possui um aparato/aparelho administrativo e judicial difuso – ou seja, quem aplica o Direito da União nos distintos Estados-Membros é a administração nacional, e quem zela pela correcta aplicação daquele Direito são os tribunais nacionais, sendo por isso reconhecidos como tribunais funcionalmente europeus. Ora, não é difícil perceber que uma ordem jurídica que integra e mantém unidas 27 tradições normativas/doutrinárias/jurisprudenciais (por vezes com diferenças muito marcadas) só resulta se as suas disposições receberem uma interpretação uniforme independentemente dos contextos nacionais em que tiverem de ser aplicadas. Por isso se diz que o Direito da União Europeia é o resultado de uma evolução contínua para a qual concorreu a jurisprudência do TJUE, mas também o empenhado envolvimento dos juízes nacionais que lhe bateram à porta e lhe reconheceram autoridade – caso contrário não tínhamos integração jurídica. De qualquer forma, por trás (ou ao lado) do juiz que reenvia para o TJUE há sempre um litigante e um advogado que o representa. De resto, por esta Europa afora, são os advogados que convencem o juiz da necessidade do reenvio e inclusivamente o formulam para que o juiz o submeta ao TJUE – donde decorre que a boa aplicação do Direito da União depende de juízes e advogados que o conheçam e saibam manejar.

E tem sido assim entre nós?

Não propriamente…É actualmente pacífico que mais da metade das normas que regulam o nosso quotidiano são emitidas pelas instituições europeias (ainda que algumas careçam de transposição para a ordem interna), devendo ser interpretadas e aplicadas nos termos definidos pela ordem jurídica europeia. Resulta por isso imperativo que os operadores jurídicos portugueses se familiarizem com a crescente presença do Direito da União. Lamentavelmente, ainda subsiste um profundo desconhecimento sobre o funcionamento da ordem jurídica europeia – ao qual não foi alheia alguma apatia das faculdades de Direito no seu conjunto, é preciso assumi-lo com frontalidade. Ora, se os operadores jurídicos não estiverem minimamente sensibilizados para aquela boa aplicação – se não conhecerem o Direito da União Europeia e a sua lógica de funcionamento –, a própria igualdade jurídica dos cidadãos europeus estará comprometida, na medida em que os portugueses estarão em manifesta desigualdade de condições em relação aos cidadãos dos Estados vizinhos, onde o Direito da União é sobejamente conhecido e adequadamente aplicado. Todos perdemos com isso – e em última análise, a própria legalidade democrática.

Como alterar esta situação?

Estou convicta de que é possível fazê-lo através de acções de formação contínua e cursos dedicados ao aprofundamento de conhecimentos no domínio do Direito da União. Não é por outra razão que o Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados vem estabelecendo uma profícua parceria com o Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU) da Universidade do Minho. De qualquer forma, há sinais positivos e animadores. Uma das formas de se aferir do grau de “europeização” dos tribunais nacionais é através da frequência com que reenviam para o TJUE. E o relatório do TJUE de 2010, disponível no site daquele tribunal, revela que, pela primeira vez desde a adesão, Portugal atingiu a marca de 10 reenvios prejudiciais – quase todos oriundos de tribunais do norte do país (e especialmente na região do Minho). Ainda assim, o histórico português de reenvios somados, desde a adesão, não ultrapassa os 77 – o que corresponde, aproximadamente, ao número de reenvios alemães por ano…Felizmente, por conta do precedente vinculativo, beneficiamos dos reenvios alheios – ou seja, as decisões do TJUE proferidas no âmbito de um reenvio prejudicial produzem uma espécie de efeito erga omnes de acto interpretado, devendo ser aplicadas, no mesmo sentido, por todos os tribunais de todos os Estados-Membros.

E que mensagem deixaria para quem estiver disposto a embrenhar-se no universo do Direito da União Europeia?

Eu costumo dizer que para a correcta compreensão da ordem jurídica europeia são válidos os ensinamentos filosóficos de Friedrich Nietzsche: “é preciso ter ouvidos novos para uma música nova”. Não há nada no Direito da União Europeia que nos deva fazer medo ou atormentar – e sim toda uma panóplia de instrumentos tendentes a assegurar a tutela jurisdicional efectiva. O Direito da União Europeia promoveu a redefinição do espaço processual (interno) dos Estados-Membros e os operadores jurídicos portugueses ainda não estão suficientemente sensibilizados para as consequências disso. O mercado interno foi recentemente impulsionado pela directiva dos serviços (muito especialmente no domínio da saúde) e isto tem passado algo despercebido entre nós. A entrada em vigor do Tratado de Lisboa e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (e a jurisprudência do TJUE proferida desde então) abriu imensas possibilidades ainda pouco exploradas pelos operadores jurídicos portugueses, nomeadamente no que diz respeito ao acesso dos particulares ao padrão de jusfundamentalidade europeu, ao nível de protecção mais elevado, e à cidadania europeia. Importa ler os sinais…

 



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