Notícias de imprensa

02-11-2005
Sistema está em depressão
 

A menos de duas semanas do início do VI Congresso de Advogados Portugueses, o presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados admite expectativas em alta, apesar do balanço muito crítico que faz do estado da Justiça, em Portugal.

Que expectativas tem a Ordem para este VI Congresso dos Advogados?

 

Essencialmente, espera-se uma grande afirmação da advocacia portuguesa, como instrumento essencial para o exercício da cidadania. A advocacia tem, nas últimas duas décadas, tido uma imagem muito negativa, mas é uma profissão essencial para a defesa das liberdades e garantias dos cidadãos. E, acima de tudo, para o aperfeiçoamento do Estado de Direito, com contributos para a melhoria da lei.

 

Este é o primeiro congresso após a alteração estatutária deste ano...

 

Os novos estatutos vieram, basicamente, adaptar a advocacia aos tempos modernos, designadamente na publicidade, na discussão dos casos pendentes, na alteração do regime jurídico das sociedades de advogados. De resto, a substância ética e deontológica da profissão não teve mudanças.

 

A permissão da publicidade é polémica...

 

Não se trata de haver publicidade. O que se ouve e lê é notícia de que existe um advogado em determinado sítio. A polémica tem a ver com o facto de o advogado se afirmar pelo desempenho da sua profissão, pelo seu exercício contínuo, e não por ter melhor ou pior publicidade.

 

Polémica foi, mesmo, a questão das sociedades de advogados...

 

O que sucede é que os novos estatutos traduzem um novo paradigma da advocacia. Ou seja, aquela advocacia que eu comecei a exercer - e que ainda exerço - tem uma vertente social, obviamente com uma expressão económica, pois os advogados pagam impostos, acompanham e aconselham as empresas, no desenvolvimento dos seus negócios. Hoje em dia, por contra, a advocacia tem uma expressão económica notória, com um resíduo de vertente social. Mas coexistem, ambas, ainda hoje. E não pode dizer-se que a universalidade do acesso está em causa, pois as grandes sociedades de advogados estão vocacionados para as grandes empresas e os grandes negócios - e é importante que existam, em Portugal, para impedir que outras, espanholas, inglesas, etc, ocupem esse nicho de mercado -, ao passo que as pequenas empresas e os cidadãos, individuais, recorrem a advogados, cuja intervenção chega a alterar, mesmo, a sensibilidade da jurisprudência.

 

Em Coimbra, porém, subsiste ainda a ideia romântica do advogado solitário..,

 

Já foi mais do que era. Mas é cada vez menos possível a existência do advogado em prática isolada. O Direito tem uma abrangência muito grande e todos os dias sai nova legislação. Daí que a tendência seja a que os advogados se associem de forma a que cada um tenda a conhecer melhor um determinado ramo do Direito e, assim, possa servir melhor o seu cliente. Por conseguinte, essa ideia romântica do advogado solitário tende a desaparecer. Mas, que fique bem expresso, a carga romântica do advogado, enquanto aliado do cidadão, no exercício e na salvaguarda dos seus direitos e na prossecução dos seus legítimos interesses, perante as instâncias judiciais, essa mantém-se.


 

 

Outra característica de Coimbra, no caso do Conselho Distrital da Ordem, é a de uma equidistância activa, perante os órgãos nacionais...

 

E acho que é um benefício para a própria Ordem, porque o olhar de Coimbra, quer do exercício da profissão quer da estrutura da Ordem, é uma mais valia. O território do Conselho Distrital vai de Foz Côa a Alcanena, ou seja, do Douro internacional às portas de Lisboa. Já temos muitas sociedades de advogados, nas capitais de distrito, e muitos advogados em prática individual, mais no interior.

 

Porque diz que o nosso sistema judicial está desmembrado?

 

Eu atrevo-me, até, a usar uma expressão política e linguisticamente menos correcta: está mesmo escangalhado. Como já disse, o nosso sistema judicial está em depressão profunda e a Ordem olha para o sistema com profunda preocupação, até porque quando funciona mal é o próprio Estado de Direito que está em perigo.

 

Como avalia as reformas em curso?

 

Pessoalmente sou muito crítico, relativamente às medidas que o Ministério da Justiça está a implementar. Como já apelidei, são reformas avulsas e pequeninas e o sistema judicial precisa de reformas muito profundas. Ou seja, nunca é bom o sistema judicial que afasta os cidadãos dos tribunais. O apoio judiciário é praticamente só dado a indigentes. Daí que o acesso ao Direito e à Justiça esteja comprometido, no nosso país e, assim, não é possível termos um Estado de Direito pró-activo.

 

A Ordem mantém as críticas aos Julgados de Paz?

 

Não, o que criticamos é o afastamento dos advogados dos cidadãos. Nos Julgados de Paz há um preceito que diz que a parte demandada pode contestar, oralmente, o que contra si é interposto. O que sucede é que a contestação é feita contra um funcionário do Julgado de Paz, que, depois, converte em peça escrita o que lhe é dito, oralmente. Ora isso é uma competência do advogado. Mas há mais: nos casos de demandas por falta de pagamento, pode muito bem acontecer que essa obrigação de pagamento tenha prescrito. Mas o cidadão não conhece os prazos, nem o funcionário dos Julgados de Paz sabe quais as regras de prescrição do Código Civil...

 

Há críticas também à simplificação de processos, na criação de empresas...

 

Volto a dizer que um cidadão bem informado é aquele que tem um advogado ao seu lado. Veja a situação que se criou com os Centros de Formalidades de Empresas e, agora, com o sistema de criação de empresas em 24 horas. Quando um cidadão quer constituir uma empresa, o que tem são quatro ou cinco minutos de pactos sociais, nos CFE ou nas Lojas do Cidadão. Mas fica sem saber o que quer tudo aquilo dizer. Não sabe, por exemplo, o que é o direito à exoneração, o direito à amortização de quotas... Por isso, acaba por escolher, ao acaso, o pacto social. Isto quando está a constituir um contrato de sociedade. Ora, quando a Administração Pública cria mecanismos de "fato à medida", o que acontece é que esse fato não tem a sua medida, mas de um outro cidadão qualquer. E, um dia mais tarde, tem um problema dentro da sociedade e não dispõe de qualquer ferramenta jurídica para ajudá-lo. No fundo, trata-se de um embuste, quase uma burla, ao cidadão.

 

Isso é quase a apologia da complexidade...

 

De forma alguma. Os advogados são o mais anti-burocráticos possível. Nós defendemos meios expeditos, eficazes, rápidos para resolver os problemas aos cidadãos. Por exemplo, a constituição de sociedades deve ser simples e económica. Mas a resolução de um conflito exige o acompanhamento de quem tem o know-how para aconselhar os cidadãos. Que precisa de saber os seus direitos e, no concreto, de saber o que querem dizer estes e aqueles preceitos.

 

Como está o processo das dívidas de oficiosas?

 

Tanto quanto sei, o Ministério da Justiça transferiu urna verba, de sete milhões de euros, para pagar as dívidas até meados deste ano. Mas devo dizer que a defesa oficiosa é muito mal paga, neste país. Ao contrário do que se diz, é uma defesa de muita qualidade, com os advogados e os estagiários a baterem-se por prestarem o melhor serviço aos cidadãos que não têm meios para pagarem ao seu advogado. Mas não se tem feito essa justiça. Depois, há que dizer que as custas, para os advogados oficiosos, são elevadas e há até juizes que pagam abaixo do preço da tabela. Ora, isto, para além de ilegal, é até ofensivo e indigno, quando se vêem juizes a contestara qualidade do trabalho, sem para tal terem poderes de avaliação.

Como estão as relações en­tre a advocacia e as magistraturas?

 

Admito que já passaram por más épocas. E, durante todos estes anos em que a advocacia foi muito mal-tratada, não vi as magistraturas sair a terreiro em sua defesa. Pelo contrário, olharam para a advocacia corno parente menor da administração da Justiça. Isso é uma mágoa que fica. É evidente que hoje as coisas estão melhores. Mas ainda há muitos tribunais em que se nota que os advogados não são olhados como operadores, mas sim como meros visitantes.

 

Dê-me um exemplo...

 

A Comarca de Alcobaça tem pretendido instalar um fotocopiador, na sala dos advogados. Mas não há meio. É que a senhora secretária do tribunal diz que tem instruções para não deixar, porque a máquina consome electricidade. Eu escrevi ao Instituto de Gestão Patrimonial e Financeira do Ministério da Justiça a dizer que o Conselho Distrital da Ordem dos Advogados não só paga a máquina como se responsabiliza pelos custos de energia. Mas nem assim recebi resposta. E ainda há quem fale em choque tecnológico...

 

Qual o papel da comunicação social nos processos judiciais mais complexos?

 

Eu sou muito crítico em relação à abordagem da comunicação social aos processos judiciais. Digamos que a comunicação social se tomou em empresas, que visam o lucro e, por isso, precisam de vender. Ora, na área da Justiça, isso é muito prejudicial, pois confunde em vez de esclarecer. E os cidadãos têm de ser genuinamente esclarecidos, sobre a aplicação da Justiça e, já agora, também sobre o papel dos advogados. E a imprensa não passa esta mensagem.


Entrevista – Daniel Andrade (Presidente do Conselho Distrital de Coimbra)
Publicada no dia 02/11/2005 no jornal "As Beiras"


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