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Entrevista - “O advogado é uma espécie de médico de família"
 

CONSELHO DISTRITAL DE COIMBRA DA ORDEM DOS ADVOGADOS FESTEJA 80 ANOS

 

“O advogado é uma espécie de médico de família”

 

“É preciso trabalhar com paixão.” Para Daniel Andrade é esta a receita que determina o sucesso profissional e pessoal de qualquer cidadão. Numa altura em que o Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados comemora 80 anos de existência, o seu presidente descreve, em entrevista a “O Despertar”, a importância do advogado na nossa sociedade, tanto a nível pessoal como empresarial. No seu entender, o advogado é um mediador “essencial à boa gestão das empresas”, é “uma espécie de médico de família” que procura resolver os problemas da forma “mais rápida, eficaz e barata para o cliente”.

 


 

 

 

D. - O Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados está a festejar 80 anos. Está satisfeito com o percurso destas oito décadas de existência?

 

D. A. - Não podia estar mais satisfeito, tanto eu como os cidadãos portugueses. A Ordem dos Advogados (OA) é incontornável no Estado de Direito Democrático. O primeiro objectivo da Ordem é, aliás, promover e contribuir para a melhoria do Direito de forma a alcançar a justiça. É isso que temos feito nestes 80 anos. Todo o percurso da Ordem passa pela promoção da cidadania. A Ordem não tem qualquer espécie de poder, é por natureza até anti-poder, porque congrega os advogados que são pessoas independentes que defendem interesses diferenciados mas sempre interesses legítimos dos cidadãos. O seu objectivo fundamental é lutar pela melhoria do Estado de Direito e por uma melhor Justiça.

 

Em oito décadas, a OA deparou-se com períodos sociais e económicos distintos. Isso reflectiu-se na própria profissão?

É natural que haja algum agravamento porque se o país está em crise essa mesma crise vai reflectir-se em todos. De acordo com o último inquérito que se fez à profissão, há uma fatia com alguma expressão de advogados que têm rendimentos inferiores àquilo que seria normal.

 

Isso significa que as pessoas estão a recorrer menos aos serviços do advogado?

Pode ser visto de duas formas. As pessoas continuam a recorrer aos serviços dos advogados, os serviços é que podem ser prestados de uma forma mais barata, chamemos-lhe assim. Mas obviamente que as pessoas só recorrem ao advogado em última instância, quando já não têm qualquer outra alternativa. Isso é mau. Por vezes andam por outros profissionais, que não são especialistas da área do Direito, e cometem erros crassos que os vão prejudicar no futuro. Aliás, vai começar este mês uma campanha para a advocacia preventiva precisamente para fazer uma publicidade positiva da advocacia. Queremos afirmar a advocacia pelas suas características de cidadania, ou seja, sempre que uma pessoa tenha problemas de ordem jurídica deve-se aconselhar com um advogado para evitar que, no futuro, surjam problemas que depois se tornam muito mais complicados e mais dispendiosos. Trata-se de uma campanha publicitária de sensibilização, destinada ao cidadão. Por exemplo, uma pessoa quando vai fazer um contrato de trabalho deve consultar o advogado.

 

“O advogado é uma espécie de médico de família, é uma espécie de válvula de escape dentro do sistema judicial.”

 

Trata-se, no fundo, de prevenir antes de tomar uma medida. Mas é frequente as pessoas fazerem-no?

Não. Acontece muito pouco. Mesmo as empresas e os empresários recorrem muito pouco aos advogados e deviam fazê-lo muito mais. À semelhança do que acontece por essa Europa fora, o advogado é um profissional essencial à boa gestão das empresas.

 

A ideia que se tem do advogado é mais a de que surge apenas para resolver algum problema, não para o evitar...

Há essa ideia mas é errado pensar assim. O advogado surge para evitar problemas e devo dizer que estou na profissão há mais de 20 anos e tenho clientes desde essa altura. Portanto, esses clientes nunca deixam de recorrer ao advogado sempre que têm um problema. Às vezes até por telefone. Quando surge qualquer tipo de problema já estão à vontade e telefonam. O advogado é uma espécie de médico de família, é uma espécie de válvula de escape dentro do sistema judicial, porque só leva para o sistema judicial aquilo que não tem solução fora dele, porque é mais rápido, mais eficaz e mais barato para o cliente. Portanto, não tem que andar no percurso do sistema judicial ou pelos tribunais. Digamos que – isto sem grande rigor – que o que chega ao tribunal rondará os 40 por cento daquilo que passa pelos escritórios dos advogados, ou seja, há uma triagem muito grande.

 

Diz-se que a justiça é muito lenta em Portugal. O que é que conduz ao atraso na resolução dos processos?

Eu acho que o sistema judicial tem vários andamentos, é quase como uma orquestra. Há coisas que funcionam rapidamente. Obter uma decisão judicial normalmente não demora muito tempo. O que demora muito é executar depois essa decisão judicial, estamos a falar do processo executivo. Obter uma declaração do Tribunal no sentido de ver a viabilidade ou não de uma determinada pretensão que lhe é colocada não demora muito, em média num ano obtêm-se uma decisão judicial. Obviamente que os processos mais complicados demoram mais. Com a redução das férias judiciais mais tempo vão demorar porque os juízes deixaram de poder dedicar, efectivamente, aquele período de um mês a esses processos.

 

Quer com isso dizer que, na prática, os juízes não gozavam os dois meses de férias?

Exactamente. Chamar férias judicias aos dois meses é um erro crasso. A palavra férias nem sequer devia ser aplicada porque é uma interrupção do funcionamento dos tribunais no tratamento de alguns processos para permitir que houvesse uma maior dedicação àqueles processos que, no dia-a-dia, não são possíveis de trabalhar. Os juízes estão assoberbados de trabalho. Trabalham e produzem muito. Isso é do conhecimento geral. Mas obviamente que vão produzir aquilo que exige menos estudo. Aquilo que exige mais estudo também exige mais tempo e, muitas vezes, esse mês servia precisamente para isso. Devo dizer que, normalmente, no fim das férias judiciais os escritórios de advogados recebiam muitas das sentenças que já estavam à espera há alguns meses. Este ano isso não se verificou. Eu continuo à espera de decisões em processos complicados.

 

“Os juízes estão assoberbados de trabalho. Trabalham e produzem muito.”

 

Houve algum melhoramento com a proliferação dos Julgados de Paz no país?

Não. Eu tenho uma visão crítica dos Julgados de Paz porque todas as instâncias que derivam em conflito onde não é necessária a presença do advogado não é um bom sítio para resolver conflitos, porque o cidadão desacompanhado do advogado fica muito vulnerável. Não quero com isto dizer, que o sr. Juiz do Julgado de Paz tome decisões precipitadas ou que não esteja de acordo com a lei. O problema é que a intervenção do advogado pode fazer mudar as coisas. Costumo dar um exemplo muito simples: se um estudante da Universidade de Coimbra esteve numa hospedaria durante uns meses e resolveu abandoná-la sem pagar – isto é um mero exemplo – e se o dono vier oito ou nove meses depois num Julgado de Paz com uma injunção para o obrigar a pagar, se ele lá for sozinho vai dizer que não se lembra e o juiz pede o recibo. Se não tiver vai ter que pagar mesmo que tenha pago porque não tem o comprovativo. Se for com o advogado, este facilmente invoca a prescrição da dívida. Mesmo que não tivesse pago, a dívida está prescrita. Isto faz toda a diferença. A lei permite este tipo de argumentação, é legal.

 

Milhares de jovens advogados continuam a sair todos os anos das universidades portugueses. Há mercado para todos estes profissionais?

O mercado começa a ficar saturado de advogados. Isso é indiscutível. Entretanto a Ordem reformulou a formação e com esta reformulação o estágio tornou-se mais exigente, portanto vai ser mais difícil aceder à profissão. Isto não é uma forma de limitar o acesso, mas é uma forma de tornar mais exigente o exercício da profissão. Dá-se uma garantia adicional da competência dos advogados.

 

Há a possibilidade de especialização?

Sim, em Coimbra já há advogados especialistas reconhecidos pela Ordem, designadamente em Trabalho e Direito Administrativo. Podem não dedicar-se só a estas áreas, mas são especialistas nestas matérias.

 

O novo Tribunal para Coimbra, a construir na Guarda Inglesa, continua sem avançar. Acha que o projecto é viável neste contexto económico?

Isso é aspiração antiga da advocacia. Quando comecei a advogar já se falava no novo Tribunal, que era ao lado do Palácio da Justiça. Depois entendeu-se que aquele terreno já não era adequado e passou-se para a margem esquerda. Aquilo que os advogados querem é um Tribunal funcional e este não é. Aliás, os tribunais não são funcionais. O Palácio da Justiça é escasso. Funcionam lá as varas mistas e os tribunais criminais e não há salas para todos os tribunais que lá estão instalados. É um edifício antigo que não é confortável para as pessoas que lá trabalham. O Tribunal Cível funciona no Arnado e se há ali um incêndio não sei como é que vai ser. O Tribunal de Trabalho é numa vivenda e também tem bastantes limitações. E todos eles têm limitações para as pessoas com pouca mobilidade e o Tribunal existe para servir todos os cidadãos. Portanto, continua a ser fundamental a construção do novo Tribunal.

 

“A imagem da Justiça tem que mudar radicalmente perante os cidadãos.”

 

Para terminar, e uma vez que estão a comemorar 80 anos, qual era a prenda que gostaria de receber?

É difícil dizer porque havia várias pequenas prendas que davam um cabaz. Mas, acho que tudo começa por uma nova postura de todos os profissionais ao serviço da Justiça. É preciso uma postura de alegria, de simpatia. Acho que é importante para o cidadão não olhar para o sistema judicial com as reservas com que olha, um pouco assustados. Acho que colaborar com a justiça é um dever de todos mas é um dever que deve ser cumprido com satisfação. A imagem da Justiça tem que mudar radicalmente perante os cidadãos. Era essa a prenda que gostava de ter. Por outro lado, acho que os profissionais têm que trabalhar com gosto. Falta paixão a alguns advogados. Falta trabalhar com amor à profissão. Estas profissões da Justiça têm uma vida muito stressante. Se não se tem um verdadeiro amor pela profissão, se não se tem paixão pelo que se faz, a pessoa vai sentir-se sempre insatisfeita e vai sentir até uma certa revolta. É preciso ter uma vocação especial porque só assim retira prazer do nosso trabalho.

 

Currículo

Daniel Alexandre da Silva Andrade, 48 anos, natural de Castro Daire, casado, pai de dois filhos, exerce advocacia desde Janeiro de 1986, depois de dois anos de estágio. Foi tesoureiro do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados nos mandatos presididos pelo Dr. José Ferreira da Silva e actualmente assume o cargo de presidente do mesmo.

 

 

Zilda Monteiro

Entrevista publicada no dia 06/10/2006 no jornal "O Despertar"



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