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Entrevista - "Os genéricos na Justiça podem ser perigosos"
 

Daniel Andrade (Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados) afirma

 

A desburocratização é uma medida positiva. Mas a criação de "genéricos" em termos de produtos e serviços jurídicos envolvem riscos consideráveis para quem os utiliza - considera o dr. Daniel Andrade, Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados. Na altura em que são celebrados os 80 anos da ordem dos Advogados, o presidente do Conselho Distrital de Coimbra comenta as mudanças em curso na justiça.

Quanto à desformalização dos actos das sociedades, Daniel Andrade tem uma opinião totalmente favorável. Em entrevista à "Vida Judiciária", considera que não fazia sentido um duplo controlo de legalidade exercido primeiro pelos notários e depois pelos conservadores. E acredita que os conservadores vão assegurar um controlo eficaz nos actos sujeitos a registo mesmo sem a intervenção dos notários.

O presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados considera necessária e urgente a revisão do mapa judiciário. Segundo refere, tem de haver um enorme cuidado para dar outra capacidade de resposta ao sistema mas sem esquecer as populações do interior que poderão ser mais afectadas pela reforma. 

 

VJ - O que pensa sobre a recente reforma do Código das Sociedades Comercias, com a desformalização e simplificação de bastantes actos?

DA - Essa questão divide-se em dois momentos, sendo o primeiro o Simplex e a criação da Empresa na Hora. Antes da reforma do Código das Sociedades Comerciais, houve pequenas alterações que decorreram do Simplex. Eu nada tenho contra a desburocratização, muito pelo contrário. Penso que os advogados são - ao contrário do que muita gente pode pensar -o mais antiburocracia possível. O que acho muito prejudicial para o cidadão e para os empresários é a criação de uma espécie de "genéricos" nos serviços e produtos jurídicos para as empresas. Estes "genéricos" são muito perigosos para o organismo das empresas. Os genéricos são produtos químicos testados. A constituição de empresas é um acto contratual que depende das pessoas e não da química. O facto de nas Lojas do Cidadão haver pactos pré-feitos que nada têm a ver com a vontade em concreto de determinado cidadão de contratar faz com que a sua opinião não seja considerada. Julgo que se prestava melhor serviço ao cidadão se fossem aconselhados a recorrer a um profissional para a elaboração de um pacto social e voltassem depois para criar a "empresa na hora". Sou completamente contra o pré-feito e o genérico que é oferecido na Loja do Cidadão.

Relativamente à desformalização e às alterações do Código das Sociedades Comerciais, elas são obviamente benéficas para a vida das empresas. Foi um grande passo porque tornou mais fácil a vida jurídica das empresas. Isso é indiscutível. Agora, os novos conceitos sobre o governo das sociedades resultam da experiência que outros países têm tido. Mas acho que o Código das Sociedades Comerciais não foi tão longe como podia, porque deixa ainda figuras societárias que não têm qualquer utilização em Portugal. Há décadas que em Portugal ninguém constitui uma sociedade em comandita, e continua a haver essa figura. Creio que podiam ter sido feitas alterações a esse nível, por exemplo.

 

VJ - Acha que o fim da intervenção dos notários em muitos actos é também um passo positivo ou apresenta alguns inconvenientes?

DA - Genericamente, julgo que tem vantagens porque não fazia sentido haver um duplo grau de controlo de alguns actos jurídicos. Em todos os actos sujeitos a registo, a legalidade e conformidade com a lei era fiscalizada pelo notário e, posteriormente, pelo conservador. Pelo que não se justificava esse duplo grau de fiscalização. Havia uma duplicidade, que era um entrave ao bom andamento dos actos jurídicos. Penso que, desse ponto de vista, foi um importante avanço. De qualquer forma, o papel do notário continua a ser fundamental em alguns actos que não têm essa posterior fiscalização pelo conservador.

 

VJ - Acha que os conservadores têm essa vocação e vão exercer o controlo de legalidade que tradicionalmente era assegurado pelos notários?

DA - Os conservadores sempre o fizeram e irão seguramente continuar a fazer talvez agora com mais atenção porque até aqui o controlo pelo notário dava algum conforto. Julgo que esta avaliação poderá ser feita daqui a uns meses. Mas os conservadores vão fazer esse controlo seguramente.

 

VJ - Considera urgente e necessária a reorganização do mapa judiciário?

DA - Penso que sim. Tem-se estado a criar no nosso país uma espécie de sistema judicial "escangalhado". Continuo a entender que o sistema está um pouco desestruturado por diversos motivos. Neste momento, temos em paralelo vários sistemas judiciais, o normal dos tribunais comuns e depois um sistema judicial dos julgados de paz que também emitem sentenças, reconhecem ou negam a existência de direitos em matérias para as quais os tribunais comuns também têm competência. Sempre olhei para este caminho político na perspectiva de descomarcar para municipalizar.

O Ministério da Justiça pretendia, com a criação dos Julgados de Paz, criar uma espécie de justiça municipal, retirando depois as comarcas dos locais onde instalava os julgados de paz. Julgo que isso não é correcto. Acho que a reforma do mapa judiciário deve ter por objectivo - não esquecendo a proximidade da justiça face aos cidadãos - criar uma nova filosofia na gestão de recursos humanos de todo o sistema judicial. Há tribunais em que a procura é muito escassa, e outros sobrecarregados de processos. A distribuição geográfica da procura da justiça é muito diferente do litoral para o interior.

De todo o modo, não podemos esquecer as populações do interior que carecem também de recorrer ao sistema judicial. Por isso, em minha opinião, tem de haver um enorme cuidado no sentido de, por um lado, dar outra capacidade de resposta ao sistema mas sem esquecer as populações do interior que poderão ser mais penalizadas pela reforma do mapa judiciário.

 

VJ - É a favor da contingentação dos processos?

DA - Eu penso que é desumano para qualquer juiz ou procurador ter um número elevado de processos. Todos nós sabemos que a esmagadora maioria dos juízes e procuradores são pessoas que dedicam a sua vida ao trabalho com prejuízo da sua vida pessoal. Senão a situação seria ainda muito pior.

 

VJ - Então considera que ainda não existem os vícios do funcionalismo público?

DA - A este nível, não. Os juízes trabalham muito, fins-de-semana, pela noite dentro. Esta é uma verdade indiscutível para a generalidade dos juízes que são pessoas com grande capacidade de trabalho.

Se não fosse assim, o sistema estaria bem pior. O problema é que não há uma distribuição de acordo com a procura do sistema. Os meios humanos afectos ao sistema judicial não estão bem distribuídos. Há juízes e procuradores e funcionários judiciais em tribunais com pouca procura e faltam alguns em tribunais com muita procura. Eu não sei se a contingentação resolve este problema, porque iria fazer com que houvesse uma necessidade maior de funcionários, juízes e procuradores. Eu penso é que com a revisão do mapa judiciário será possível resolver a situação sem aumento de funcionários, juízes e procuradores. Julgo que é uma questão de gestão de recursos humanos e materiais.

 

VJ - Que balanço faz do primeiro ano de encurtamento das férias judiciais?

DA - Faço um balanço muito negativo. Acho que o Ministério da Justiça deu um tiro no pé. Aliás, deu um tiro que fez ricochete no coração da advocacia. A maior parte dos advogados não teve férias ou teve umas férias muito curtas. Habitualmente, no reinício do ano judicial os escritórios de advogados eram inundados por decisões que aguardavam há meses.

Este ano, as notificações que os escritórios de advogados têm recebido são de expediente normal. Aquelas sentenças que os advogados esperavam que viessem no fim das férias não vão chegar porque os magistrados não tiveram oportunidade de as redigir, dado que não puderam dispor de aquele outro mês que lhes dava tempo para reflectir na produção de decisões e despachos de maior complexidade.

A produtividade apregoada vai resultar em prejuízo. O que se fez durante as férias foi marcação de julgamentos. Alguns que não se efectuaram por as testemunhas estarem de férias. Demagogicamente é fácil dizer que houve uma produtividade muito grande, porque num período em que se fazia zero se fizermos duas ou três coisas aumenta-se 200% ou 300%, o que faz com que seja mentira dizer que houve um aumento substancial de trabalho no período que foi reitrado às férias judiciais.

 

VJ - O que pensa sobre a qualidade das novas leis e o seu efeito prático?

DA - Julgo que há muita produção legislativa, alguma com qualidade e alguma sem a mínima qualidade. Houve de há um tempo para cá uma alteração na preparação da feitura das leis. Até há duas décadas atrás, eram procurados os professores universitários mais reconhecidos cientificamente nas diversas universidades e que preparavam os projectos dos diplomas.

Depois, o Governo ou o Parlamento introduziam as alterações que entendiam mas eram sempre pontuais. Hoje em dia, a preparação e feitura das leis é feita por jovens licenciados que estão nos diversos gabinetes ministeriais. Os professores com conhecimentos profundos nas matérias não são muito solicitados para preparar a feitura das leis e a produção legislativa ressente-se. Vejam-se os problemas que vão surgir com a nova lei do arrendamento urbano. Vários juristas pronunciaram-se sobre os diversos diplomas e encontram contradições e algumas normas de difícil aplicação. Tenho a certeza que isso deriva da não procura dos melhores professores para preparem essa reforma legislativa.

 

VJ - Mas não acha que por vezes os professores podem ser muito competentes do ponto de vista científico mas terem falta de contacto com a realidade?

DA - Não é tanto assim. Muitas vezes, os professores são solicitados para emitir pareceres e quando emitem pareceres conhecem a realidade em questão. Portanto, um professor catedrático é alguém que estudou muito, reflectiu muito, elaborou muitos pareceres, foi muitas vezes consultado por advogados. Ninguém fala em alterar a estrutura do Código Civil que foi feita por professores universitários. Os grandes Códigos portugueses foram sempre produzidos por brilhantes professores universitários e daí o facto de terem perdurado no tempo apenas com alterações pontuais resultantes da evolução da sociedade. E não creio que os jovens juristas que fazem essa assessoria nos Ministérios tenham esse conhecimento da realidade.

 

VJ - O facto de existir em Coimbra uma Universidade com uma grande tradição e prestígio no ensino do Direito tem um peso importante na advocacia praticada na região?

DA - Sim, não tenho dúvida que a advocacia que se pratica em Coimbra e em todo o distrito judicial da região é uma advocacia de qualidade. Isto tem a ver com o facto de a nossa Universidade também ter uma grande proximidade com os advogados. É muito fácil aos advogados acederem aos professores universitários. Tradicionalmente, em Coimbra, os professores universitários não exercem advocacia e dedicam-se apenas à docência, investigação e emissão de pareceres, o que dá outra disponibilidade para corresponderem às solicitações dos advogados. Esta situação tem também um enorme benefício para o Conselho Distrital em termos de formação, ou seja, sempre que solicitamos a um professor para vir fazer uma conferência aqui ou mesmo fora de Coimbra, disponibilizam-se de imediato.

 

Vida Judiciária - Qual a sua opinião relativamente à actividade desenvolvida pelo Conselho Distrital e quais os seus objectivos para o seu mandato?

D.A. - Dando seguimento ao que foi feito pelas anteriores direcções, nomeadamente a que foi presidida pelo Dr. José Augusto Ferreira da Silva, a primeira deliberação que este Conselho Distrital tomou foi dar sustentabilidade jurídica aos agrupamentos de delegações, de forma a gerir de um modo mais eficaz a estrutura da Ordem dos Advogados no distrito judicial de Coimbra.

Optámos por convocar uma reunião com todas as delegações e delegados do distrito judicial onde foi aprovado um projecto prevendo a criação dos agrupamentos de delegações por capital de distrito administrativo. Criaram-se seis agrupamentos de delegação com sede nas capitais de distrito dos seis distritos da região Centro.

Assim, temos agrupamentos em Coimbra, Viseu, Aveiro, Leiria, Guarda e Castelo Branco. E, concedemos meios a essas delegações, atribuindo sede própria, material de escritório, mobiliário, equipamento informático e um funcionário a tempo inteiro para que fosse feita a gestão dos serviços prestados pela Ordem quer aos advogados quer aos cidadãos nessas sub-regiões do distrito judicial. Esta medida aumentou o interesse participativo em todas as delegações que compõem esse conjunto de agrupamentos. Tornou muito mais eficaz o trabalho do Conselho Distrital e deu maior protagonismo às delegações.

 

VJ - Quais são os actuais objectivos do Conselho Distrital de Coimbra?

DA - O grande objectivo era consolidar esta forma de reorganização da Ordem dos Advogados no distrito judicial e ao mesmo tempo fazer um grande investimento na formação. Este agrupamento por delegações também tem esse objectivo, ou seja, permitir que haja uma maior descentralização da formação: com esta reorganização no distrito judicial de Coimbra também se permitiu que esses agrupamentos e respectivas delegações começassem a ter iniciativas de formação. Ao longo do último ano e meio foram feitas dezenas de iniciativas de formação pelos vários agrupamentos. A grande aposta é até ao final do mandato deixar uma estrutura na formação muito sólida e de grande qualidade quer a nível central, quer ao nível das delegações.

 

VJ - A formação dos jovens advogados deve continuar a ser assegurada pela Ordem ou seria preferível passá-la para as Universidades com o apoio e intervenção da Ordem?

DA - As universidades têm um papel formativo essencial, que é formar juristas. Penso que a formação dos advogados compete à Ordem porque é uma formação em profissionalização, ou seja, o candidato à advocacia necessita de formar-se para a profissão já no exercício da profissão.

Pode é haver um tronco comum na formação das profissões forenses, advogados, juízes e magistrados do Ministério Público e aí não tenho oposição nenhuma, pois são profissões muito próximas, embora, depois, cada uma delas deva ter a sua formação final vocacionada para o exercício em concreto da profissão escolhida. Um tronco comum na formação iria permitir que todas as profissões forenses se conhecessem melhor umas às outras e não tivessem as reservas que injustificadamente por vezes ainda se manifestam.

 

VJ - Como tem evoluído o número de inscrições no Conselho Distrital de Coimbra?

DA - Julgo que o número actual de advogados não é adequado. É excessivo. O número de inscrições é excessivo porque muitas das pessoas que procuram a Ordem não vão ser advogados e mesmo assim continua a haver advogados em excesso. Ultimamente, o número de inscrições decresceu de forma substancial. Tínhamos em média 320 a 350 estagiários por ano e neste momento devemos andar entre 250 e 270 estagiários.

 

VJ - Essa diminuição deveria ser ainda maior?

DA - Sim, para que de certa forma estabilizasse o número de advogados. É certo que desde há cerca de três anos o número não tem aumentado substancialmente, ou seja, à medida que surgem novas inscrições como advogados, também há requerimentos a suspender a actividade que são em número idêntico. Na área deste distrito judicial temos tido um número aproximadamente constante de cerca de 3200 advogados.

 

VJ - O peso das mulheres na profissão está a aumentar?

DA - De facto está a aumentar, mas julgo que isso se verifica em todas as profissões forenses. Nota-se mais na magistratura, porque tem mais visibilidade. Há mais juízas e procuradoras mas o peso das mulheres está a aumentar nas várias profissões forenses.

 

João Luís de Sousa

Notícia publicada no dia 16/10/2006 na revista "Vida Judiciária"


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