Notícias de imprensa

Estamos a viver um momento de grandes tensões no Sistema Judiciário
 

DANIEL ANDRADE APELA À UNIÃO DE TODOS OS OPERADORES JUDICIÁRIOS


 

 

 

“No nosso país prendia-se para investigar”

 

Por Zilda Monteiro

 

Prestigiar a Ordem dos Advogados o mais possível, contribuindo para o reforço do seu papel no contexto nacional e colocando-se, cada vez mais, ao dispor dos advogados e dos cidadãos, é um dos objectivos de Daniel Andrade. Releeito para mais um mandato (2008-2010), o presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados lamenta “as grandes tensões” que se vivem neste momento no sistema judiciário e que, no seu entender, “se têm agravado nos últimos 10 anos”. Admite que “estas tensões responsabilizam todos os operadores judiciários” e apela, por isso, à união de todos. Em entrevista a “O Despertar”, Daniel Andrade assume que não concorda com “a tendência actual de retirar ou afastar o pequeno litígio dos tribunais” e lembra que “os tribunais administram a justiça em nome do povo e para o povo”. Aborda ainda a questão dos Julgados de Paz, assume que não são a melhor solução para combater a morosidade da justiça e sublinha que essa questão só será resolvida com mais meios. Em relação à nova lei de processo penal, que conduziu à libertação de muitos presos preventivos, admite que “o sistema estava desadequado”, já que “no nosso país prendia-se para investigar”.

 

 

Foi reeleito para mais um mandato (2008-2010) como presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados (AO). Quais são os grandes desafios para os próximos três anos?

Os desafios são sempre os mesmos. Queremos prestigiar a Ordem o mais possível e contribuir também para que esse prestígio saia reforçado dentro da Ordem Nacional. Pretendemos, por outro lado, colocar a Ordem ao serviço dos Advogados, através da formação com qualidade, e mantermo-nos ao dispor dos cidadãos, designadamente na gestão do apoio judiciário. O grande desafio passa, no fundo, por continuar a fazer o que temos feito até aqui, reforçando a qualidade.

 

Durante a sua tomada de posse o Bastonário da AO, Marinho Pinto, defendeu que o cidadão deve poder escolher o seu advogado, limitando-se o Estado a pagar. Qual é a sua opinião?

Eu tenho uma opinião contrária. Isso foi muito questionado e tem sido debatido ao longo dos anos na Ordem. Embora do ponto de vista conceptual a escolha do advogado pelo cidadão seja a melhor solução, a Ordem tem-se deparado com situações de abuso, que dão lugar àquilo que nós designamos de cambão. Significa isso que dentro das instituições há, normalmente, tendência para indicar um determinado advogado. Portanto, a escolha acaba por não ser livre. Se a escolha fosse verdadeiramente livre para o cidadão, aí tudo bem. Nós aqui no Conselho Distrital de Coimbra, ainda no tempo do Dr. José Augusto, chegámos a propor que o cidadão tivesse uma espécie de um voucheur fornecido pela Segurança Social, com preços diferenciados, dependendo daquilo que pretendia. Depois, com esse voucheur dirigia-se a um advogado. Aí sim, seria a escolha livre porque era-lhe dada uma espécie de um talão, com determinado montante para o cidadão poder escolher o advogado. Dentro das próprias instituições há a tendência para aconselhar “fulano ou sicrano”. Isso seria retomar um cambão que praticamente está quase extinto. Era uma má prática porque o cidadão não escolhia livremente o advogado, era-lhe indicado um.

 

“Ao lado do grande e famoso

- e agora muito na ordem do dia -

mapa judiciário está-se a construir

um mapa para-judiciário.”

 

A nova lei sobre o apoio judiciário restringe ainda mais a isenção das custas judiciais, sendo cada vez mais difícil às famílias conseguirem apoios…

É verdade. Digamos que há uma tendência para retirar ou afastar o pequeno litígio dos tribunais o que é algo de realmente surpreendente num Estado de Direito. Eu aí concordo inteiramente com o sr. Bastonário, quando ele diz que devem ser os tribunais a dirimir as questões da justiça. Eu, há muitos anos que digo isto e tenho-o escrito, porque de facto os tribunais servem para dirimir as causas do povo e não só as grandes questões. Portanto, definir uma estrema, resolver um problema de condomínio ou de um crédito que um merceeiro tem sobre o seu cliente, são questões do povo. Os tribunais existem para isso. Quando se fala em bagatelas quer civis, quer penais, e até há quem lhes chame “lixo”, está-se a fazer uma ofensa enorme ao cidadão, porque a coisa mais pequenina no âmbito jurídico pode ser para aquele cidadão a maior de todas. Os tribunais não podem distinguir o que é pequeno ou o que é grande. Os tribunais administram a justiça em nome do povo e para o povo. Não é para as grandes questões. O que me preocupa também, nesse particular, é que também ao lado do grande e famoso - e agora muito na ordem do dia - mapa judiciário está-se a construir um mapa para-judiciário. Tenho-lhe chamado até, um pouco ironicamente, a justiça de balcão, a justiça de genéricos jurídicos, que é uma forma de desviar os cidadãos dos tribunais e encaminhá-los para instituições que resolvem ou pretendem resolver os problemas dos cidadãos sem o acompanhamento jurídico.

 

Está a referir-se aos Julgados de Paz?

Por exemplo. Eu não tenho nada contra outros mecanismos de redução de conflitos. Têm é que ser mecanismos que estejam dentro do sistema judicial. Até por uma questão de controlo, para que haja uma tutela, porque os tribunais judiciais têm um Conselho Superior de Magistratura e não há um Conselho Superior dos Julgados de Paz.

 

O que é que distingue os Julgados de Paz?

Desde logo quando o cidadão se dirige ao Tribunal é citado, abre-se um processo e o funcionário diz-lhe para se dirigir a um advogado para tratar do assunto. Nos Julgados de Paz não é obrigatório. O cidadão dirige-se lá para apresentar determinada demanda contra um terceiro, faz a apresentação oralmente e um funcionário transforma em escrito aquilo que o cidadão diz oralmente. Está a fazer o trabalho do advogado. Depois é notificada a contra-parte, que vai lá e diz de sua justiça, sem qualquer intervenção do advogado. Portanto as pessoas estão a tratar de assuntos jurídicos sem fazerem a mínima ideia do que é que está em causa. Há uma série de circunstâncias que só os advogados, que são os técnicos preparados, é que podem informar os cidadãos. Nestes meios alternativos de gestão de conflitos, o cidadão comum estando desacompanhado do advogado está numa situação de fragilidade. É a mesma coisa que uma pessoa se automedicar.

 

Em termos de resolução, acha que se justificam os Julgados de Paz?

Tem sido publicada anualmente a produtividade dos Julgados de Paz e, de facto, a produtividade é muito baixa. Os custos que implica a instalação e a manutenção dos Julgados de Paz comparativamente com a sua produtividade é grandemente deficitária.

 

Entende, portanto, que os Julgados de Paz não são uma solução possível para combater a morosidade da justiça em Portugal?

Não. Essa é uma falsa questão porque a morosidade combate-se com mais meios. Acho que se me vez de se instalar um Julgado de Paz se instalar mais um Tribunal as coisas funcionam melhor. Nos Julgados de Paz a justiça é informal mas isto também pode ser feito no sistema judicial, quer dizer é uma questão de alterar os mecanismos processuais para as questões mais simples. E já há esses mecanismos processuais e junção de outros mecanismos que tornam a resolução dos conflitos mais rápida mas é de facto uma falsa questão porque a morosidade do sistema judicial decorre das circunstâncias de nos últimos anos não se ter feito nada para que isso fosse evitado. A morosidade do sistema judicial só se resolve com mais meios, com um forte investimento no sistema judicial.

 

A questão das férias judiciais não passou de utopia?

Completamente e já toda a gente viu que não resolve nada. O problema é que os tribunais não são uma fábrica ou um estabelecimento comercial que possa ser encerrado durante um mês. Os tribunais não podem encerrar, há questões urgentes que têm que ser tratadas. O que acontece é que há magistrados que começam a gozar férias em Julho, ou antes, e outros que prolongam as férias até 15 de Setembro. Portanto, os únicos operadores judiciais que trabalham são os advogados porque são notificados e têm prazos a cumprir. Mas não têm ninguém no Tribunal para despachar aquilo que o advogado teve que fazer durante as férias judiciais. Pela minha experiência própria como advogado e pela experiência dos meus colegas, posso dizer ainda que antes deste sistema, ou seja, quando as férias judiciais tinham aqueles dois meses as primeiras notificações que recebíamos do Tribunal eram as sentenças que estávamos à espera há muito tempo, sentenças em processos muito complicados. Os juízes aproveitavam aquele período para elaborar aquelas sentenças e despachos. Obviamente que eles não gozavam dois meses de férias. Dizer isso é um insulto que se faz aos juízes e aos outros operadores judiciários. Eles gozavam o mês de férias mas no outro mês estavam a preparar essas grandes decisões porque se os juízes não produzissem nesse mês de férias nós não recebíamos aquelas sentenças. Nota-se que a partir do reinicio do ano judicial as pendências eram menores. Nós recebíamos imensas notificações logo nos primeiros dias. Agora não, recebemos apenas as normais.

 

“Dizer que os juizes tinham

dois meses de férias, é um insulto

que se faz aos juizes e aos outros

operadores judiciários.”

 

Como comenta as “tensões” que se vivem neste momento no sistema judiciário?

De facto estamos a viver um momento de grandes tensões no sistema judiciário. Estas tensões não são novas e têm-se agravado nos últimos 10 anos. E é algo que responsabiliza todos os operadores judiciários. Não podemos andar a dizer mal uns dos outros. É isso que cria as tensões. Não é possível viver num sistema em que os diversos intervenientes que têm um desígnio que é servir o cidadão andam a dizer mal uns dos outros. Isto tem que acabar. Nós, no Conselho Distrital, temos feito um esforço enorme para termos um relacionamento muito leal, sério e muito respeitador com os outros operadores judiciários. Mas exigimos que seja dado aos advogados o mesmo tratamento. Ao fim ao cabo, somos todos oficiais do mesmo ofício. Obviamente que temos que respeitar as competências de cada um e a sua posição no âmbito do sistema judicial, mas o advogado tem uma função de grande relevo na organização da justiça, tem uma função com um paradigma social de grande inovação. Portanto, é necessário que haja respeito mútuo e que se recupere uma certa fidalguia entre os operadores judiciários. Os advogados, os juízes e os procuradores tinham um relacionamento entre si de grande elevação e isso veio, de facto, deixar de ser um costume. Claro que isso também tem muito a ver com a massificação, com a entrada de muita gente nova nas magistraturas e na advocacia. Foram-se criando estas tensões aos poucos. Penso que ultimamente começa a haver outro alívio, o sistema começa a ficar mais aliviado e essas tensões começam a diminuir. Mas ainda há muitas tensões. O Conselho Distrital tem tido um papel muito importante na postura que tem tido e na relação que mantém com os outros operadores judiciais, nomeadamente os juízes e os procuradores. Posso dizer que a minha tomada de posse estava repleta de magistrados, algo que me alegrou muito e que vem consubstanciar este esforço que temos feito no sentido de procurarmos ter uma relação respeitadora, leal e solidária entre todos.

 

Concorda com a alteração da Lei, que levou à libertação de centenas de presos em Portugal?

Concordo.

 

Considera que se estão a libertar pessoas perigosas?

É difícil dizer isso. Essa é uma avaliação que não podemos fazer. Uma pessoa que tenha cometido um crime grave pode ser recuperada para a sociedade. Uma conquista da civilização foi a reinserção dos cidadãos na comunidade, ou seja, alguém cometeu um crime, foi punido, cumpriu a sua pena e tem todo o direito de ser reinserido na sociedade. Devia haver mesmo mecanismos para promover essa reinserção social depois de cumprida a pena. Este código de processo veio diminuir o tempo de prisão preventiva, porque no nosso país prendia-se para investigar, ou seja, não se prendia depois da investigação. Prendia-se a pessoa e depois ia-se fazer a investigação. Isto era mau porque havia muita gente que era absolvida ou que era condenada em penas inferiores àquelas que já tinha cumprido. Portanto o sistema estava desadequado. Obviamente que há nesta reforma alguns problemas e a Ordem alertou para eles. Mas no geral este sistema de processo penal veio dignificar o processo penal e veio exigir que os órgãos de administração criminal trabalhem mais rapidamente porque está em causa a liberdade das pessoas. A justiça penal tem que ser eficaz mas tem que ser célere. Enquanto na justiça civil a celeridade é importante mas não é tão importante porque não estão em causa interesses que têm a ver com a dignidade da pessoa humana na sua maioria, no direito penal tem a ver com a própria dignidade da pessoa humana e portanto é importante que haja prazos mais apertados para que haja uma investigação também mais eficaz. Agora obviamente que tudo isto só é possível se, de facto, houver um forte investimento também nos meios de investigação penal. As polícias precisam de meios para poderem investigar com rapidez, os procuradores precisam de meios materiais e humanos para produzirem com rapidez e celeridade. Uma coisa sem outra é impossível. Agora já foi desmontada essa tese de que se estão a pôr perigosos na rua. E nem foram assim tantos aqueles que foram libertados.

 

Só para terminar, continuamos sem o novo tribunal de Coimbra…

É verdade. Nem sei o que é que vai acontecer em relação a isso. Com a reforma do mapa judiciário vai alterar-se também o paradigma das comarcas e dos tribunais de competência especializada. Neste momento, estou sem saber onde é que vai ser o novo Tribunal, como é que vai ser e que características terá. Estou em quer que assumindo Coimbra uma nova centralidade no novo figurino judiciário o projecto que estava previsto para a Guarda Inglesa estará desactualizado.

 

 

Zilda Monteiro

O Despertar de 25 de Janeiro de 2008



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